Por MAURÍCIO VIEIRA MARTINS*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Luis Felipe Miguel
Num dos seus Cadernos do Cárcere dedicado ao estudo da filosofia de Benedetto Croce, Antonio Gramsci se pergunta qual é a postura mais correta a ser tomada diante de um adversário teórico. Recusando a concepção que visualiza o debate científico como um processo judiciário, cujo desfecho é o de que “o réu é culpado e deve ser tirado de circulação”, Gramsci fornece uma indicação teórica e metodológica plena de consequências. Ele afirma que “o ponto de vista do adversário pode indicar um aspecto a ser incorporado, ainda que de modo subordinado à própria concepção”.[i]
O alerta de Gramsci nos veio à mente durante a leitura do livro Marxismo e política: modos de usar, do cientista político Luis Felipe Miguel. Pois o que encontramos ao longo de sua argumentação é um esforço em debater e por vezes incorporar, quando este for o caso, aqueles momentos mais relevantes de uma dada posição teórica, mesmo que ela não seja a adotada pelo próprio autor. Os exemplos seriam vários, mas talvez os mais nítidos sejam os encontrados nas partes dedicadas às opressões de gênero e racial, respectivamente, os capítulos 3 e 4 de seu livro.
Neles, Felipe Miguel debate com algumas correntes do que vem sendo nomeado como as políticas de identidade (de raça, gênero, sexualidade, etnia), tema que gera as mais ásperas controvérsias no interior da esquerda. Sua posição é crítica ao identitarismo, sempre que a “’reificação’ da identidade aprisiona seus integrantes, que devem se conformar ao modelo predeterminado de quem são” (p. 91). Mas nem por isso o autor descarta a inegável relevância dos respectivos movimentos dos grupos submetidos às diferentes opressões, pois eles “estão, na verdade, direcionados à defesa de direitos e ao combate a formas de dominação e opressão que de fato vigoram em nossa sociedade” (p. 90). Donde a proposta de articular estas lutas específicas com uma agenda mais ampla da esquerda, incluindo as questões estruturais de uma sociedade capitalista, como o conflito entre as classes e a extração de mais valor – que alguns dos identitarismos tendem a secundarizar -, configuração de fundo da opressão cotidiana vivida por trabalhadoras e trabalhadores.
Mas não é apenas nos referidos capítulos em que ocorre este esforço por captar o veio mais produtivo de um dado movimento social ou de uma teoria. Também no debate realizado sobre “Democracia, emancipação e capitalismo” (capítulo 6), Felipe Miguel nota que a “crítica mais elaborada ao tipo de consentimento presente na tradição liberal e cristalizada no processo eleitoral, que toma a forma da obrigação de obedecer, vem de uma autora que guarda pouca relação com a tradição marxista” (p. 124, n. 24); e sua referência aqui é o pensamento da filósofa política feminista Carole Pateman. Esta constatação o coloca diante do desafio de se aproximar do tema do consentimento social – que tanto beneficia o conservadorismo – num registro teórico que o questione mais profundamente, a partir das ferramentas presentes no legado marxista.
Contudo, este procedimento argumentativo não deve ser confundido com um ecletismo ligeiro, que agrega aleatoriamente conceitos distintos. A aproximação entre os diferentes autores e autoras é feita ao longo do livro apenas a partir de eixos temáticos bem definidos e demanda, como tal, um trabalho de reelaboração conceitual. Além disso, Felipe Miguel não se furta a enunciar com todas as letras suas divergências com aquelas perspectivas que lhe parecem por demais equivocadas e como tal, praticamente inutilizáveis. Este parece ser o caso daquela que é talvez a interlocução crítica mais recorrente ao longo do livro: a ciência política estadunidense, amplamente hegemônica nesta área do saber.
Tal ciência política concebe os indivíduos como átomos sociais isolados, dispondo de análogas capacidades de ação e de escolha, que poderiam ser quantificadas e matematizadas. Felipe Miguel reserva suas palavras mais duras para os equívocos da violenta abstração operada por esta disciplina, que adere “a modelos formais que operam num vácuo histórico, como as teorias da escolha racional” (p. 181). Além do seu individualismo teórico e metodológico, tal politologia hegemônica busca circunscrever uma suposta essência da política, que estaria preferencialmente alocada nas instituições formais. Num passo seguinte, tudo transcorre como se a ação política existisse sobretudo nas instituições estatais.
Contra tal isolamento arbitrário, o que o autor faz é mostrar as profundas relações da atividade política (ocorra ela dentro ou fora das instituições formais) com as outras dimensões da experiência societária. Relações que os títulos dos capítulos do livro ilustram com clareza. Eles são: (i) Política e economia, (ii) As classes sociais, (iii) Divisão sexual do trabalho e classes, (iv) Capitalismo e desigualdade racial, (v) O Estado, (vi) Democracia, emancipação e capitalismo, (vii) Alienação e fetichismo, (viii) A transformação social, (ix) A questão ecológica.
A abrangência do temário abordado por Felipe Miguel – a rigor, cada um dos mencionados capítulos renderia um inteiro livro – pode ser interpretada como a apresentação de um campo de possibilidades da relação entre marxismo e política, a ser aprofundado por pesquisas adicionais. Mas vale destacar dois aspectos bastante centrais na investigação proposta. O primeiro deles se refere à ênfase no caráter cada vez mais limitado da chamada democracia liberal, esta que é cantada em prosa e verso pelo mundo afora.
Tal limitação se deve à progressiva retirada das questões econômicas do campo da política: “a regulação promovida pelo mercado fica imune ao controle político. […]. A fixação da economia como um mundo à parte permite restringir o âmbito da democracia. Graças a isso, sociedades que aceitamos como democráticas convivem com hierarquias altamente autoritárias no âmbito das relações de produção (ou da esfera doméstica)” (p. 33).
Sendo assim, nunca é demais lembrar que questões referentes, por exemplo, à emissão da moeda, ao sistema financeiro, à propriedade privada dos meios de produção, assim como ao controle das Forças Armadas, todas estas dimensões fundantes da experiência societária escapam do alcance do sufrágio popular. E tal ocorre mesmo em democracias ditas consolidadas da “sociedade ocidental”. Na verdade, estamos diante de um drástico esvaziamento da soberania popular em detrimento da classe minoritária da população que domina os instrumentos econômicos e políticos decisivos para o exercício do poder.
Um segundo aspecto central do livro vem a ser, a meu juízo, o que o autor nomeia como um “enquadramento liberal da crítica social”. Onipresente em vários dos meios de comunicação, tal enquadramento se caracteriza por focalizar e operar sobre a dimensão mais aparente da profunda crise societária contemporânea. Enfatizando questões referentes ao acesso desigual à educação, à corrupção, distribuição de renda e opressões de determinadas identidades isoladas, tal enquadramento não as vincula às relações estruturais de uma sociedade capitalista.
Contradição básica desta última, a divisão em classes sociais comparece de modo muito rarefeito nesta concepção de mundo: “‘Classe’, assim, é uma faixa de renda e consumo” (p. 45). Com isso, procede-se ao apagamento da relação com os meios e produção das diferentes classes, que passam a ser concebidas como uma espécie de continuum apenas quantitativo, que não permite visualizar a expropriação sofrida pela maioria da população.
Em termos das respostas que tal enquadramento liberal da crise societária preconiza, destaca-se “uma atenção especial à educação, que um discurso convencional apresenta como o mecanismo por excelência para a mobilidade social ascendente. Uma promessa ilusória, já que, como demonstraram Bourdieu e Passeron, a escola pressupõe competências nativas das classes dominantes, que exigem um esforço muito maior para serem absorvidas pelos dominados” (p. 86).
Tal enquadramento liberal da crítica social acaba por contaminar segmentos políticos que, em sua origem, procuraram no marxismo sua orientação teórica. Na avaliação de Felipe Miguel, foi o que historicamente ocorreu com os defensores do “socialismo de mercado”, que rebaixaram progressivamente seu horizonte, rumo a um socialismo aguado (p. 148), com ênfase em políticas apenas compensatórias. Para contrapor-se a esta perspectiva, os capítulos do livro referentes às classes sociais, à alienação e ao fetichismo oferecem elementos para uma visualização de relações de força presentes na sociedade capitalista.
Daí o alerta para o fato de que “o tema do fetichismo é especialmente importante porque faz a ponte entre a crítica da economia política e a crítica do conjunto das relações sociais sob o capitalismo” (p. 140-141). Nestas relações, avulta em importância a formação de novas subjetividades, que passam a funcionar impregnadas pela visão de mundo liberal e fortemente competitiva.
No que diz respeito a sugestões para um eventual desdobramento da pesquisa, creio que a crítica de Marx e Engels aos anarquistas, e também aos grupos de esquerda sectários de sua época, forneceria elementos adicionais para o delineamento da posição dos fundadores do que hoje se conhece como marxismo. Historicamente, este embate envolveu polêmicas muito duras no interior da esquerda, que giravam não só em torno da conveniência ou não de se participar das instituições liberais de representação, como também qual deveria ser a abrangência da organização a ser seguida.
Apenas como exemplo, é instrutivo um texto rememorativo do velho Engels, de 1884, onde ele recorda sua opção e a de Marx em levantar a bandeira da democracia, pois “se não quiséssemos aderir ao movimento na sua ponta que mais progredira”, só lhes restaria “ensinar comunismo numa pequena folhinha de província e, em vez de um grande partido de acção, fundar uma pequena seita. Mas, de pregações no deserto estávamos nós fartos; tínhamos estudado os utopistas bem demais para isso”.[ii]
Questões análogas a esta retornam ao longo da histórica do movimento socialista e comunista, é certo que sempre marcadas pela especificidade de cada conjuntura. Pensemos em Vladímir Lênin e no seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo, escrito em 1920. Uma das seções deste lúcido escrito intitula-se “Deve-se participar nos parlamentos burgueses?” Pois curioso é notar que, enquanto Lênin responde afirmativamente à pergunta, ontem e hoje revolucionários “de poltrona” preferem a resposta negativa, e buscam convencer a juventude da correção do seu purismo. O resultado disso é uma proliferação de micro-organizações que, embora cônscias das contradições capitalistas, dispõem de uma eficácia política próxima de zero.
Mas hoje a tendência predominante na esquerda é provavelmente outra: a do já mencionado rebaixamento de seu programa político. Se na história da social democracia europeia tal acomodação transcorreu ao longo de algumas décadas, já o caso brasileiro comprimiu num período espantosamente menor sua metamorfose. Tal rebaixamento merece aliás o claro repúdio de Luis Felipe Miguel, que enfatiza que “grande parte da esquerda deixou de lado as questões da economia política, limitando-se a advogar por medidas compensatórias para os mais pobres e canalizando suas energias utópicas para itens como democracia participativa ou multiculturalismo” (p. 148).
Por fim, e apenas a título de contraste, vale lembrar que a poeta Emily Dickinson, conhecida por sua sensibilidade também para questões metafísicas, certa vez escreveu que “The only news I know is Bulletins all day from immortality”, o que poderia ser traduzido como “As únicas notícias que conheço são boletins diários da imortalidade”. Em contrapartida, para nós, comuns dos mortais, conhecer a política tanto como teoria como prática – por mais conflituosa que ela seja – é uma tarefa incontornável e igualmente diária. O livro de Luis Felipe Miguel auxilia sobremodo neste entendimento.
*Maurício Vieira Martins é professor sênior do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF. Autor, entre outros livros, de Marx, Spinoza and Darwin: materialism, subjectivity and critique of religion (Palgrave Macmillan).
Referência
Luis Felipe Miguel. Marxismo e política: modos de usar. São Paulo, Boitempo, 204 págs. [https://amzn.to/3Woimhq]
Notas
[i] Antonio Gramsci. Cadernos do Cárcere: Caderno 10. Rio de Janeiro: IGS-Brasil, 2024, p. 58. Louve-se a recente iniciativa da IGS-Brasil em disponibilizar gratuitamente em seu site a íntegra dos Cadernos do Cárcere gramscianos. Disponível aqui.
[ii] Friedrich Engels. Marx e a Neue Rheinische Zeitung. Disponível aqui.
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