Fernando Haddad

Clara Figueiredo, série Brasília fungos e simulacros, esplanada, 2018
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Por VITOR MORAIS*

Um perfil do ministro da Fazenda do governo Lula

“Vejo a multidão fechando todos os meus caminhos, mas a realidade é que sou eu o incômodo no caminho da multidão” (Chico Buarque, Estorvo).
“Eu sou o homem cordial\ Que vim para instaurar a democracia racial\ Eu sou o homem cordial\ Que vim para afirmar a democracia racial\ Eu sou o herói\ Só Deus e eu sabemos como dói” (Caetano Veloso, O herói).

O historiador Nicolau Sevcenko costumava dizer aos seus alunos que “a USP é um útero”. Prova maior da sentença de Nicolau Sevcenko tive no último semestre, quando meu professor em uma das disciplinas da graduação foi Fernando Haddad. Este ensaio visa a apontar algumas impressões que colhi ao longo deste semestre de convivência com o professor Fernando Haddad em uma disciplina optativa sobre gestão de cidades no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Mais que me ater às aulas, contudo, busco aqui uma síntese (talvez arriscada) do pensamento de Fernando Haddad enquanto professor-político, de modo a tentar compreender como sua formação acadêmica o influencia na tomada de atitudes dentro da política institucional.

 

1.

Fernando Haddad é, antes de tudo, um acontecimento. Toda vez que um intelectual se entroniza na política temos este acontecimento. Desde ao menos Domingo Faustino Sarmiento, que presidiu a Argentina de 1868 a 1874, estabeleceu-se uma tradição na intelligentsia latino-americana de intervir diretamente no Estado em nome da modernização e do progresso, contra o arcaico. Vale lembrar que, no caso de Domingo Faustino Sarmiento, estes entes vieram às custas de muitas espoliações, sobretudo das populações indígenas nas famigeradas campanhas do deserto.

A modernidade seria, neste caso, excludente. O progresso só viria caso se eliminassem e/ou assimilassem certas tradições populares ao cortejo dos vencedores – vide que sua grande obra traga justamente a díade “civilização” e “barbárie” (refiro-me a “Facundo – civilización y barbárie” [1845][i]). Não se trataria, portanto, de uma escolha – civilização ou barbárie – senão de uma constante convivência belicosa entre uma coisa e outra. Acontece que nesta experiência argentina, havia a consciência e o desejo pela exclusão. Era preciso que a civilização pesasse mais na balança que a barbárie.

Na experiência brasileira, uma cena análoga poderia ser encontrada nas campanhas militares contra o arraial de Canudos, Bahia, no findar do século XIX. Ali, a pulsão pela modernidade – conservadora, excludente – fez com que se arrasassem populares enlevados por um líder messiânico como Antonio Conselheiro, monarquista e sebastianista. A mesma modernidade, aliás, que expulsaria populações de cortiços no centro do Rio de Janeiro em nome de uma reforma urbana haussmaniana. Acontece que em 1930 apareceu um ente novo neste processo, que continuava conservador e modernizante ao mesmo tempo. Com Vargas, o Estado corporativo, a indústria e o operariado urbano, parecíamos ser a própria matéria bruta da modernidade enquanto devir.[ii] O arcaico seria aniquilado, mas os seres arcaicos se transformariam em modernos em nome de sua liberdade (numa leitura mais revolucionária, em nome de sua libertação). Celso Furtado, em sua obra pré-1964, talvez tenha sido quem melhor encarnou isso.

Acontece que veio 1964. E logo adiante, seria Chico de Oliveira quem colocaria a equação em termos adequados, ao concluir, em seu Crítica à razão dualista (1972),[iii] que não haveria a oposição entre arcaico e moderno que seu mestre Celso Furtado preconizara em Formação econômica do Brasil (1959).[iv] E isso se daria simplesmente porque sem a manutenção do arcaico não haveria desenvolvimento do moderno, rompendo, desta maneira, com uma longa tradição na intelectualidade brasileira de que o moderno deveria se sobrepor aos nossos arcaísmos estruturantes e que teria tido seu ápice durante o pacto nacional-desenvolvimentista enterrado por 1964. Noutras palavras, desenvolvimento desigual e combinado.

Dei toda esta volta para voltarmos a Fernando Haddad por um motivo: Fernando Haddad é fruto de toda esta longa tradição – e talvez seja ele o último capítulo desta história, como tentarei explicar nas linhas que seguem. Em Fernando Haddad, essa linha interpretativa do Brasil ganha contornos singulares: a modernização seria possível independentemente de depender ou não do arcaico. Trópicos utópicos? Ora, seria ela nosso destino-manifesto – e Fernando Haddad estaria disposto a qualquer coisa para fazê-la existir, inclusive medidas impopulares, como se verá adiante.

 

2.

Graduado em Direito, mestre em Economia, doutor em Filosofia e professor do departamento de Ciência Política, sempre pela Universidade de São Paulo (USP), Fernando Haddad se entronizaria na política quando vai, em 2001, integrar o governo de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo, indo dali para compor o governo Lula, em 2003. Mas sua trajetória político-partidária vem de antes: em 1985 seria eleito presidente do tradicional centro acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, a SanFran.

Esta é uma informação importante pois coloca Fernando Haddad no epicentro do movimento estudantil de um novo tempo, apesar dos castigos, que se anunciava naquele momento. Ainda que não tenha aderido ao trotskismo, muito em voga naquela época (vide a atuação anos antes da tendência Liberdade e Luta, a Libelu), Fernando Haddad se colocava na contramão às correntes que defendiam o chamado “socialismo real”. Isto o levava a um marxismo sincopado – que encontraria exemplo em textos futuros seus, como seu doutoramento ou ainda as “Teses sobre Karl Marx”, publicadas na revista do Instituto de Estudos Avançados da USP[v] – o qual seria capaz, por exemplo, de reconhecer a necessidade de se pactuar uma unidade de enfrentamento à ditadura que agonizava.

Em outras palavras, Fernando Haddad seria fruto da redemocratização de 1985 e daquilo que se vislumbrava construir dali para frente. Se é certo que esta democracia também agonizaria até a instauração do Plano Real, em 1994, também o é que após ele se instituiria um pacto social que vigorou ao menos até Junho de 2013, quando um irreconhecível Brasil dormente explodiu. Mas falaremos de Junho mais adiante. Queria aproveitar que mencionei o Plano Real para dar continuidade à sequência com a qual iniciei este perfil: a do intelectual dirigente, trazendo essa tradição, no Brasil, para o centro do debate. Motivo: foi justamente outro uspiano, outro Fernando, ao qual coube o posto de “salvador da pátria”. Refiro-me, como o leitor deve ter atinado, ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC), com o qual Haddad guarda profundas afinidades eletivas, embora pertençam a tempos históricos distintos.[vi]

FHC representava também uma esquerda marxista que, em seu caso desde a Revolução Húngara (1956), rompera com a linha oficial do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, que cria no “socialismo real” e que, após os “Processos de Moscou”, edificaria o chamado “frentismo cultural”, uma aliança com a burguesia para a modernização nacional. Com 1956, no ápice do pacto nacional-desenvolvimentista, FHC começa a tatear uma agenda intelectual, também ela crítica a esse pacto, que se cumpriria somente no momento de agonia deste modelo de país, representado pelo golpe civil-militar de 1964. É à sombra desse evento que FHC concluirá, em Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil (1964)[vii] que a burguesia industrial brasileira não possuía projeto nacional, de modo a ser propensa a integração com o capitalismo global. Qualquer horizonte nacional só poderia vir com a esquerda – “A pergunta será então: subcapitalismo ou socialismo?”, conclui o livro. Roberto Schwarz, no ensaio “Um seminário de Marx”, apontará que foi justamente esta agenda a que FHC se dispôs a cumprir enquanto presidente.[viii]

Marcos Nobre costuma utilizar a expressão “República do Real” para designar o período entre o final do governo Itamar Franco, quando a nova moeda começou a circular, e a disrupção de Junho[ix]. À parte possíveis críticas para esta nomenclatura, acredito ser possível aproveitá-la: não existiria este período sem a causa que elegeu Fernando Henrique. Assim sendo, é o discurso da autoridade intelectual que consegue explicar a eleição e a reeleição de FHC. Sob o discurso da práxis política FHC impôs ao Brasil a autoridade intelectual do Plano Real, que lhe recompensou com o fato até o momento inédito de duas vitórias em eleições presidenciais no primeiro turno. Como veremos, é justamente isso que explicará o malogro de Fernando Haddad nas eleições municipais de 2016, nas quais concorreu à reeleição para o cargo de prefeito de São Paulo. Trata-se, ainda, de algo em torno do lugar das ideias. O que importa para nós neste momento, contudo, é que esta autoridade, característica central do intelectual dirigente, erigiu um império da razão durante a República do Real que se vinculou com o neoliberalismo triunfante e a tecnocracia. Em tudo oposto ao que se refere à autoridade Fernando Haddad, ainda que haja uma confusão em ambos em torno das ideias de “cientificidade” e “racionalização”.

Noutros termos, se em FHC há uma constatação da ineficiência de setores centrais da burguesia brasileira em construir uma agenda própria que não a de passividade aos vencedores do capitalismo internacional, de modo que só sobrariam tenebrosas transações como resultado – vide a aliança com Marco Maciel e o Partido da Frente Liberal que anestesiou a direita dura até Junho –, para Haddad a burguesia brasileira não seria um obstáculo que cancelaria sua agenda, a qual em FHC só se realizaria via aliança com essa. Em Haddad as mudanças rumo à modernização ocorreriam com ou sem acordo com a burguesia. Isso ocorre pois, todas as ações de Fernando Haddad – pragmáticas ou não; impopulares ou não – são baseadas em uma daqueles elementos que Max Weber chamou de “esferas autônomas de valor”[x][xi]: a ciência moderna.

Ciência, aliás, que é palavra central para Fernando Haddad: sua produção acadêmica possui intenção científica e todas as suas medidas enquanto político por ela são orientadas. Algo, aliás, que não deixa de ser uma contradição para alguém que se filia à parcela brasileira dos influenciados pela Escola de Frankfurt. Voltando à Max Weber, autor central para Fernando Haddad, suas “esferas autônomas de valor” seriam um dos pilares da modernidade e buscariam romper com a unidade do bom, belo e verdadeiro. E elas seriam autônomas justamente pela sua maneira de funcionamento, que exigiria apenas a legitimação por seus pares. Exemplos de “esferas autônomas de valor” seriam a ciência moderna, a arte moderna e… a política moderna.

Acontece que a política brasileira e a política moderna não são a mesma coisa – vide a eleição do capitão em 2018. No Brasil, como bem nos lembra Roberto Schwarz em seu seminal ensaio “As ideias fora do lugar”, o liberalismo das classes políticas dirigentes do século XIX reproduz caracteres de uma comédia ideológica à medida que sustenta a moderna escravidão de negro-africanos[xii]. Em outros termos, a política institucional brasileira ainda não passou pela emersão das “esferas autônomas de valor” de Max Weber, quer porque ela topa tudo para sobreviver mesmo quando não se é mais possível, quer porque, sob o manto celestial de uma democracia manca, ela causa a falsa impressão de assimilar os pressupostos da política moderna, nos termos weberianos.

Isso explica medidas de Fernando Haddad que, enquanto prefeito de São Paulo, malograram. Se é certo que houve uma hiperexploração por parte da grande imprensa no sentido contrário a estas medidas simplesmente por Haddad pertencer ao Partido dos Trabalhadores, à época em fogo cruzado com os veículos de comunicação majoritários, também o é que estas medidas iam na contramão de um espírito de Junho, como se verá a seguir. Sintetizando, como após Junho a população se torna insurgente, isto é destrutiva, não haveria espaço para as “esferas autônomas de valor” weberianas.

Ao implementar ações como a diminuição das velocidades máximas nas marginais, o programa “De Braços Abertos”, dentre outros, Haddad apostava em um espírito público de cooperação, em que cada cidadão auxiliaria na construção de uma cidade melhor. Noutros termos, autotutela. Acontece que isto pressupõe um pacto civilizatório rompido por Junho, como se verá adiante, de modo que medidas tomadas em nome do bem comum, a cidade, se vertem em medidas contra a liberdade insurgente de destruir, matar – o caso das marginais é exemplar neste sentido. Noutros termos, um impasse que Fernando Haddad não conseguiu resolver enquanto prefeito e talvez até hoje: como governar uma população insurgente?

 

3.

Também é mister dizer que, na esteira destas questões todas, Haddad possui uma agenda intelectual que poderia ser resumida à ideia de reinvenção do socialismo. Ele, que se declara socialista até hoje, não o pensa nos moldes tradicionais que vigoraram até então. Sabe que a derrota brasileira em 1964, aqui em íntima afinidade com FHC, não permite muitas alternativas. Mas, diferentemente de seu colega de departamento na USP, que comunga da máxima neoliberal there is no alternative (TINA), para Haddad é preciso fazer um caminho no meio destas pedras chamadas Ditadura Civil-Militar e neoliberalismo. A primeira, que enterrou qualquer possibilidade de um projeto progressista sincrético no Brasil do século passado; o segundo, que instaurou um império da razão no Brasil que imobilizou uma série de pautas e políticas públicas – a ponto de Pierre Dardot e Christian Laval falarem em “revolução neoliberal” para descrever Reagan, Thatcher e seus desdobramentos[xiii].

Mas nada disso seria um obstáculo para Fernando Haddad, como visto. Seria preciso “refundar o socialismo”, à luz da derrota que o fim do “socialismo real” representou. Não seria, em síntese, hora de fazer terra arrasada, senão de construir o porvir, agora num novo tempo do mundo marcado, segundo Paulo Arantes, pelas expectativas decrescentes[xiv]. Ora, que este seja o maior desafio de nosso tempo, não resta dúvidas.

Que a audácia de Fernando Haddad em propor um caminho próprio – como demonstram as já citadas Teses sobre Karl Marx – seja um alento em tempos de normalização da barbárie, idem. Mas, do fim ao cabo, como veremos, nada disso serviria em um Brasil pós-Junho, em que a própria população se rebelaria contra si própria. O modelo inventado por Fernando Haddad para um “novo socialismo”, fruto daqueles já saudosos anos de polarização entre tucanos e petistas, não serviria mais. Mofou. E a sua escolha ante a este fato me parece ponto capital para explicar os malogros nas campanhas a que concorreu pós-Junho, sobretudo em 2016, quando o que estava em pauta era sua administração enquanto prefeito.

 

4.

Voltando um pouco, Fernando Haddad se filia a uma longa tradição da chamada “escola da formação”, que remontaria, no limite, a Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Jr. A “escola da formação” sonhou o intelectual dirigente enquanto líder da nação como fomentador do progresso, do desenvolvimento, conforme visto linhas acima. Como 1964 interrompe este processo, a “escola da formação” se vê encurralada, restando-lhe apenas a crítica negativa (identificada com Frankfurt por excelência) como veículo de resistência ante à hecatombe estabelecida. Exemplos máximos deste processo estariam nos já citados Roberto Schwarz, Chico de Oliveira e Paulo Arantes[xv]. Fernando Haddad, fruto deles, contudo, não poderia compactuar menos com isso, posto que renunciando à crítica especificada como método, de modo a compreender ser possível capitalismo e socialismo andarem juntos, do mesmo lado da equação. O último capítulo da “escola da formação” seria, assim, a sua não-formação e, quem sabe, sua capitulação.

É difícil falar em equívocos quando falamos de Fernando Haddad posto ele possuir plena convicção em quaisquer atitudes que toma. Procuro entender esta interpretação em relação à política moderna e à ciência moderna como um compromisso radical com a modernidade, custe o que custar. De que modernidade falamos, é outro ponto. Nesse custo valeria inclusive perder uma eleição crucial como a de 2016 para brancos e nulos, de modo que aí entramos em um ponto crucial para se entender passado, presente e futuro do Brasil: falo de Junho de 2013.

 

5.

Segundo Paulo Arantes, Junho foi sobre “como somos governados, como nos governamos e como agora não queremos mais saber disso”[xvi]. A chave de ignição de Junho foi justamente sobre as relações que Henri Lefebvre viu entre “valor de uso” e “valor de troca” da cidade[xvii]. Segundo Lefebvre, as forças de coesão da cidade se dão a partir de sua comunidade festiva, suas potencialidades de, porque não, uso, em tensão constante com o valor financiável da cidade, ou seja, suas capacidades de investimento, sua troca. Digo que Junho foi fruto desta tensão por um motivo: o lulismo.

Segundo o cientista político André Singer, o lulismo seria um movimento de conciliação de classes entre a figura carismática de Lula e alguns setores da burguesia brasileira – aquela que FHC propôs não possuir projeto nacional na década de 1960. No lulismo, como produto desta coalizão, que teria enfraquecido o espírito do Sion, alma fundadora do Partido dos Trabalhadores, haveria uma intensa inclusão social dos menos favorecidos, porém via consumo[xviii]. Seu ápice teria ocorrido nos anos finais de Lula 2 e iniciais de Dilma 1, com o programa “Minha Casa Minha Vida” – para fustigar a burguesia, em crise internacional efeito cascata desde a ida à bancarrota do Leman Brothers, em 2008, grandes empreiteiras construiriam moradias populares a custo baixo, que seriam financiadas pelo governo para as populações mais carentes.

Se por um lado isto segurou nossa economia até ao menos 2014, quando a dívida fiscal explodiu – o que justificaria a ida de Joaquim Levy para a Fazenda no efêmero (e golpeado) Dilma 2 –, por outro gerou um enrijecimento maior ainda das tensões entre “valor de uso” e “valor de troca” da cidade. Isto porque, afastados dos grandes centros, restritos a zonas não-heterogêneas, os condomínios do “Minha Casa Minha Vida” geraram guetificação, abrindo as portas para a milicianização dos mesmos. Pouco haveria, em síntese, de “valor de uso”. É nesta esteira, sob esta razão de fundo, que se deve entender Junho.

 

6.

Quando explodem em Junho as manifestações à esquerda contra o aumento das passagens do transporte metropolitano de São Paulo para R$ 3, 20, um novo povo brasileiro deu as caras – e aqui pouco importa a origem de Junho, ou seja, o Movimento Passe Livre (MPL); o que vale é seu produto: confusas ruas em erupção. Junho teria representado, assim, uma contestação da sociedade lulista ao lulismo: não era mais possível esperar, esperar, esperar o trem. Os “penseiros”, esperando o trem da revolução, resolveram fazê-la antes da hora e sem combinar com os esperados arautos do processo.

Após realizar no Ministério da Educação uma das partes menos mancas do reformismo fraco que, segundo André Singer, caracteriza o lulismo – vide o amplo aumento no acesso ao ensino superior no país[xix] – Fernando Haddad conseguiu a façanha de se eleger prefeito da maior metrópole da América Latina. Acontece que “a melhor cidade da América do Sul” descrita pelos tropicalistas em “Baby” já não era mais a mesma. Enquanto todo este país oficial se encontrava tentando construir uma agenda de progresso, vinha marcando passo um genocídio urbano que quem melhor denunciou foram os Racionais MC’s. Nem mesmo Luiza Erundina e Marta Suplicy deram conta de hercúlea missão. Haddad idem, mas não porque tentou, senão porque se o foi impossível. Não deu tempo. O motivo? Junho.

Quando Junho irrompeu, Fernando Haddad estava no sexto mês da administração municipal. E, explodida a panela de pressão, resolveu marcar posição de resistência em relação a Junho. Explico: para Fernando Haddad, Junho representou a emersão de uma nova forma de se fazer política, uma forma não pactuada, sem líderes diretos[xx]. A geleia geral brasileira que o programa do Datena anuncia. Noutros termos, Junho era contra o que Fernando Haddad representava; era contra a mediação, por exemplo. Junho pregava a revolta de todos contra todos, a anarquia, enquanto que Fernando Haddad entendia que aquela maneira política seria apolítica, de modo que o germe da barbárie ora estabelecida ali teria nascido. Todavia, convém questionar: até que ponto esta maneira não é fruto de anos e anos afio de despolitização? Mais: encurralados pelo discurso oficial do lulismo, não teria restado apenas esta maneira de se manifestar e angariar melhorias concretas, rápidas, no cotidiano de cada um?

Ao fim e ao cabo, o fato é que Fernando Haddad ainda não se entendeu com Junho. Optou por encarar Junho, de modo que governou o restante do tempo priorizando as já comentadas “esferas autônomas de valor”, por exemplo. Mas como governar uma população insurgente, anti-governo, anti-mediação, talvez mesmo até anti-democracia como a conhecíamos até então, repetindo o velho receituário? Fernando Haddad, o mais tropicalista dos schwartzeanos – porque acredita que o Brasil possui solução – preferiu por Chico Buarque e ousou resistir. Preferiu pagar para ver. Com o perdão do teleologismo, deu no que deu: um país estropiado, caminhando para uma guerra civil como nunca antes na história do mesmo.

Não que a culpa seja de Fernando Haddad, apontar por culpados não é o que interessa. O interessante é notar como a atitude – talvez até mesmo heroica – de resistir a Junho, e que pode até mesmo dentro dela compreender que Junho seja irreversível, de que ali nasceu algo novo, que veio para ficar, também traga consigo a ideia de acreditar na ciência, na democracia, acreditar que será possível encontrar uma luz ao final do túnel. E que, para tal, será, sim, preciso se aliar com nossos setores mais arcaicos possíveis – como não lembrar do aperto de mãos com Paulo Maluf, que o mesmo Haddad classificaria como reacionário anos depois, na campanha de 2012 à prefeitura? Atitude tropicalista? Fato é que houve uma escolha consciente ali de não governar com Junho.

 

7.

Eis que chegamos a 2022. Fernando Haddad foi o escolhido do Partido dos Trabalhadores para concorrer ao governo do estado mais importante do país, São Paulo. Liderou as pesquisas durante toda a pré-campanha e campanha do primeiro turno e terminou derrotado pelo candidato de Junho (já capitulado), o bolsonarista Tarcísio de Freitas. Mas como nem tudo são cravos, Lula se elegeu presidente da República. Fernando Haddad foi confirmado hoje como Ministro da Fazenda de Lula 3. E entra aí a questão: Fernando Haddad optará por manter a resistência, prezando pela mediação, ignorando a linguagem que Junho impôs ao país?

Não sei responder ao certo, mas possuo a intuição de que Fernando Haddad tem ciência da irreversibilidade de tudo que ocorreu ainda que teime em resistir, em aceitar que seria possível governar apesar de Junho, renunciando totalmente, assim, à crítica negativa e se enveredando enquanto porta-voz oficial da crônica político-partidária. Seria inverídico dizer com afinco e precisão que Junho ainda ecoa uma longa crise no projeto de Fernando Haddad, porém, por outro lado, também não são precisos muitos esforços para denotar um binômio irresoluto entre o país que foi e o país que não foi – e como interpretar esta dualidade.

O lulismo gerou inclusão e exclusão, como também ocorrera no pacto nacional-desenvolvimentista da Era da Formação (1930 – 1964). Acontece, e aí mora o salto do caranguejo, que Haddad se tornou a segunda figura pública do lulismo, atrás apenas de seu fundador e líder, Lula, ao assumir a dianteira do barco nas eleições presidenciais de 2018. Amigo das horas duras e difíceis que amargaram anos de retração no Partido dos Trabalhadores até a anulação das condenações de Lula, em março de 2021, Haddad, se tornando a segunda alma do lulismo, teve de renunciar a qualquer capacidade crítica que não a do lulismo. Tornou-se, noutros termos, o intelectual do lulismo, sua face operante nos bastidores, seu Paulo Martins fênix e antípoda que agora resiste em chave inversa à do personagem glauberiano de Terra em Transe.

Daí que Fernando Haddad simplesmente não consiga admitir, ao menos publicamente, que Junho representou, como visto, uma ruptura de fundo na sociedade brasileira, isto é, irreversível, de modo que qualquer discurso hoje em voga de “reconstrução do Brasil” seja completamente caduco. Porque não se quer mais “reconstruir”. Desconstruiu-se tanto que se esqueceu de construir? Fato é que a disrupção que o Capitão Messias, o inominável, causou ao se entronizar no Planalto, não terminará com seu desmoronamento ao final deste 2022, em se tratando de um sintoma – no interregno os mais mórbidos sintomas podem aparecer, segundo Gramsci. Este temor alimenta outro: o de que o retorno do lulismo ao poder não dê vasão para esta insatisfação popular contra tudo e todos, afunilando as tensões sociais e causando um clima permanente de revolta.

Seja como for, convém refletir: como imaginar um discurso de reerguimento do país depois do temporal, quando, no fundo, o que fica é um sentimento vazio de desideologização? Pós-modernidade? Resta saber é se este intelectual cordialíssimo será ou não um empecilho no caminho da multidão que vem arrastando confusa e desgovernada o bonde da História neste país tropical chamado Brasil. Que nele dói, dói, dúvidas não restam.[xxi]

*Vitor Morais é graduando em História na Universidade de São Paulo (USP).

Notas


[i] Ver a edição brasileira em SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: Civilização e Barbárie. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.

[ii] RECAMÁN, Luiz. Nem arquitetura nem cidades. Posfácio a ARANTES, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: Edusp, 2001, p. 220 apud ALAMBERT, Francisco. A reinvenção da Semana. In: __________. História, arte e cultura: ensaios. São Paulo: Intermeios, 2020, p. 15.

[iii] O ensaio foi recolhido em OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo editorial, 2003. O livro forma uma espécie de manifesto contra o ainda sequer nomeado lulismo, que havia “beijado a cruz”, conforme Paulo Arantes.

[iv] Ver a edição em FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[v] Em seu doutoramento – HADDAD, Fernando. De Marx a Habermas: o materialismo histórico e seu paradigma adequado. Tese (Doutorado em Filosofia). São Paulo: FFLCH/USP, 1996 – Haddad buscou investigar (e rebater) a crítica de Habermas à Marx, de modo a estabelecer um “paradigma adequado” à esta corrente crítica. Esta impressão de refundar o socialismo, como se discutirá adiante, se escancararia em HADDAD, Fernando. Teses sobre Karl Marx. Estudos Avançados, nº. 12, v. 34, 1998, pp. 98 – 99.

[vi] Forçando um pouco o argumento e pensando em termos de vanguarda, é possível dizer que, temporalmente, FHC está para 1964 como Haddad está para 1985. Vale lembrar que 1985 representa uma movimentação que, embora democratizante e contrária à Ditadura Civil-Militar vigente de 1964 até então, foi capitaneada por setores liberais, sobretudo descontentes com as tendências nacionais-desenvolvimentistas – à direita, é certo – de Geisel, que, à luz da economia internacional, instauraram a grave crise econômica que o Real “resolveria” apenas em 1994. Adoto esta temporalidade pelo motivo de que FHC capta o espírito de 1964 e constrói, dali, uma agenda que vise romper com 64, a qual estaria identificada com a redemocratização e suas medidas enquanto presidente nos anos 1990. Já em Haddad, a resposta é à 1985, no sentido de aprofundamento do regime democrático e do Estado de bem-estar social naquele momento ainda por se construir. O que Haddad talvez não esperava era ver sua agenda interrompida (cancelada?) pelo soerguimento do país profundo que atuou por e legitimou 64 em 2018. Que isso tenha se dado pela via eleitoral e contra o próprio Haddad, candidato derrotado por esta agenda no pleito presidencial daquele ano, só pode tornar mais urgente a compreensão de Haddad.

[vii] A edição atual pode ser encontrada em CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

[viii] SCHWARZ, Roberto. Um seminário de Marx. In: Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 99.

[ix] Um bom balanço do período sob o ponto de vista deste autor se encontra em NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[x] A discussão sobre as “esferas autônomas de valor” em Weber pode ser encontrada em WEBER, Max. Ensaios de sociologia. São Paulo: LTC, 2010.

[xi] Como se trata de um ensaio, permito-me a dúvida em relação às “esferas autônomas de valor” em Haddad. Contudo, toco a análise neste ponto a partir de minhas experiências no que tange às primeiras aulas do curso seu que acompanhei na FFLCH/USP. Nas primeiras aulas, cujo tema era o renascimento das cidades na Baixa Idade Média, Haddad era enfático ao valorizar o modelo de cidade, mas também de racionalidade ali nascido, abrindo caminho para, tempos depois, a emersão das esferas autônomas de valores de Weber. Minha convicção parecia se confirmar, inclusive, numa fala do próprio Haddad: “Quem quer governar uma cidade precisa levar isso em conta”.

[xii] Ver SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor, as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Editora 34/Livraria Duas Cidades, pp. 09 – 31.

[xiii] Ver DARDOT, Pierre/LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo editorial, 2016.

[xiv] ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: a experiência da história numa era de expectativas decrescentes. São Paulo: Boitempo editorial, 2014, pp. 27 – 97.

[xv] Uma boa referência para a escola da Formação pode ser encontrada em NOBRE, Marcos. Da “filosofia” às “redes”: Filosofia e cultura depois da modernização. Cadernos de Filosofia Alemã, nº. 19, jan.-dez. 2012, pp. 13 – 36.

[xvi] ARANTES, Paulo. Depois de Junho a paz será total. In: O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo editorial, 2014, p. 453

[xvii] Ver LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro edições, 2011.

[xviii] As ideias destas linhas são caras a SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[xix] Há quem critique, com razão, a atuação excessiva de Haddad no Ministério da Educação em favor das universidades privadas, que teriam se tornado verdadeiros laboratório do empreendedorismo individualista. Todavia, penso que há de se levar em conta também a Lei de Cotas como medida não equalizadora da balança, mas que leva também um reformismo stricto sensu (leia-se: não-lento) ao campo educacional.

[xx] As visões de Haddad sobre Junho podem ser encontradas em HADDAD, Fernando. Vivi na pele o que aprendi nos livros. Piauí, Junho, 2017. E também em HADDAD, Fernando; ALONSO, A. ; FREIRE, C. E. T. ; MARQUES, E. ; NOBRE, M. ; ALMEIDA, M. H. T. ; FIORE, M. . Novos Estudos entrevista Fernando Haddad. Novos Estudos CEBRAP (Impresso), v. 103, p. 11-31, 2015. A declaração de Haddad em resposta a Marcos Nobre referente à possibilidade desta nova forma de se fazer política (na visão de Haddad, anti-mediação) ser algo que viria a ser permanente, pode demarcar também uma postura sua anti-mediação, mas desta vez via imposição das bombas e cassetetes da Polícia Militar em nome da ordem. Afinal, ciência…

[xxi] Agradeço a leitura meticulosa e os assertivos comentários de Julio d’Ávila, Lucas Paolillo, Marcelo Coelho e Ricardo Galhardo. A responsabilidade por eventuais desacertos é, contudo, deste autor.

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