A França se lança ao desconhecido

Imagem: Elīna Arāja
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Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

A classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional

Era previsível: um país – a França – ingovernável. Foi premonitório: o término das Olimpíadas de Paris com Tom Cruise e Missão Impossível. O primeiro-ministro francês, Michel Barnier, vem de ser demitido pelo Parlamento após 91 dias na função. Os parlamentares reuniram 331 votos – bem mais que os 289 necessários – para censurá-lo e ejetá-lo do cargo.

Jean-Luc Mélenchon foi o mentor e o tenor da manobra. Marine Le Pen, sua coadjuvante em convicção e apoio. As duas maiores forças político-partidárias da França, malgrado as suas diferenças, uniram-se em alma, em princípio, contra a proposta de orçamento apresentada pelo primeiro-ministro. Mas, em verdade, o seu objetivo indisfarçável sempre foi fragilizar o presidente Emmanuel Macron.

Que, doravante, precisa reconhecer a derrota, acatar a decisão do legislativo, acolher a demissão de Michel Barnier e de seu brevíssimo governo de três meses, nomear um outro primeiro-ministro e vistoriar a escolha de novos ministros, novas táticas e novas estratégias para superação da variedade de sinistros franceses momentâneos, conjunturais e estruturais extraordinariamente profundos. Sendo o colapso econômico muito grave. O constrangimento partidário gravíssimo. A entropia política sem precedentes. E a crise de regime, matizado pela Quinta República, perto de terminal.

Sem meias palavras, a classe política francesa e suas elites econômicas e culturais conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a integralidade do regime disfuncional. Por claro, que em decorrência de operações sorrateiras. Que não vêm de hoje nem de ontem. Mas de tempos. Anos e mais anos com a embarcação fazendo água. E, agora, enfim, com furos aumentados, casco estourado e leme inteiramente avariado. Sendo improvável a solução por reparos. Restando apenas reconhecer-se a abertura de uma nova temporada de caos.

Forjada pelo general Charles de Gaulle, a partir de 1958, a Quinta República, enquanto regime político francês, foi, sim, uma resposta à instabilidade política e moral da Quarta República. Mas, também e fundamentalmente, um esforço de superação da “república de partidos”. Um cancro insistente permanente na vida política da França.

Como cotidianamente notada, a tensão no interior da classe política francesa jamais abdicou a sua condição efervescente. Desde a Revolução, passando pela Restauração, avançando pelo golpe – farsa ou não – de Napoleão III, chegando ao colapso de 1870-1871, amargando o após 1918 e 1929, vivenciando o cataclismo de 1940, entorpecendo-se com a resistência ao nazismo até 1944, juntando os cacos da humilhação de Vichy depois e tentando superar o tropismo da France Éternelle versus a vulgaridade da gestão do imediato. Um imediato que envolvia (i) a reconciliação nacional, (ii) a reconstrução do país e (iii) a definição do destino das colônias africanas.

O general De Gaulle fora retirado dessas incumbências desde 1946. Ele parecia controverso demais. Conduzira a resistência francesa desde 1940. Era herói inequívoco das guerras totais de 1914 a 1945. Mas – talvez também por isso – granjeou suspeição de todas as partes. Notadamente do primeiro-ministro Winston Churchill, que sempre lhe aplicou votos de desconfiança, e particularmente do presidente Roosevelt e todo o establishment norte-americano, que nutriam por ele um complexo sentimento de admiração e repulsa. Especialmente porque o general De Gaulle, no fundo, era a quintessência do marquês de La Fayette – “herói de dois mundos”, combatente da Guerra de Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa – com todo o seu estigma de ser admirado em bravura e menosprezado em reconhecimento.

Como todos podiam vivamente se lembrar, a étrange défaite francesa de 1940 tinha sido um choque planetário. Malgrado o extraordinário empenho do general francês na superação dessa situação, após a liberação de Paris e da França em 1944-1945, ele foi percebido como corpo estranho em seu próprio país quando a situação serenou. E, com isso, foi obrigado a retirar-se da vida pública e reduzir-se a singelo e silencioso observador distante. Longe de tudo, mas perto de todos. Especialmente com o avanço da Guerra Fria.

Contrário a todas as aparências, a Guerra Fria sempre foi um problema essencialmente europeu cujo impasse se devia ao destino da Alemanha. Que desde Yalta e Potsdam fora partilhada entre norte-americanos e soviéticos. Deixando bem claro o imperativo da tensão Leste-Oeste entre liberais e anti-liberais forjando um espaço de rivalidades sem perdão interiorizadas e simbolizadas pela ocupação de Berlim. Ainda não existia muro. Mas a cortina de ferro já era uma realidade inconteste.

Assim, desde 1945, a possibilidade de avanço vermelho causava apreensão. Especialmente entre os franceses. Que, por sua vez, suplicaram pelo apoio permanente e estrutural dos norte-americanos. Que, como resposta, retornaram ao Velho Mundo com o Plano Marshall e a Otan. Dois projetos que permitiram a efetiva reconstrução da França e a decisiva internalização notas de pacificação os franceses.

Mas, apenas, entre os metropolitanos. Pois, nas colônias, notadamente, africanas, desde 1944-1945, em lugar de fim da guerra e dos conflitos, acelerava-se o verdadeiro começo de uma guerra sem fim por independência e liberdade. E por razões plausíveis: os colonos franceses haviam participado dos esforços de guerra sob a aura da resistência implementada pelo general De Gaulle a partir de 1943 e, com o fim do embate ante o nazismo em 1944-1945, a sua demanda geral moveu-se ao encontro da supressão do sistema, do regime e do mando coloniais franceses. Lutava-se pela descolonização. Mas a gente de Paris seguia aturdida e indiferente. Especialmente após 1946, com a partida do general.

Nesse embate, a classe política francesa voltou rapidamente a viver entropias após 1946. Era, de uma só vez, impossível de se ignorar as demandas africanas como eles ignoravam e inconsequente ignorar o peso das colônias para o orçamento francês como os menos experimentados nunca conseguiram se dar conta. Frente a isso, a junção de insensibilidades, ignorância e indiferença acabou por conduzir o país à beira do precipício. Gerando um cenário de franca anomia. Onde a Quarta República deixou de se fazer funcional.

Isso porque a pressão parlamentar contrária à concessão de independências aos africanos conduziu – para ficar num simples exemplo – pressões orçamentárias insuportáveis para a manutenção de integridades territoriais coloniais e, por outro lado, a redução de impostos advindos das colônias. E se isso não bastasse, o francês metropolitano francês – leia-se: a sociedade civil – estava demasiado cansado de aventuras e guerra.

Para superar a situação, pôs pressão em sua classe política que, por não suportar, sucumbiu a uma imensa instabilidade partidária. Que contaminou o Parlamento. Que, por timorato, passou a padecer de convulsões sucessivas. Produzindo 24 governos e 12 primeiros-ministros nas legislaturas 1946 e 1958, e levando o regime político a uma disfuncionalidade total. Sem continuidade nem credibilidade na condução de seus destinos. O que impôs a reabilitação do general De Gaulle. Essencialmente para solucionar a problemática colonial. Mas, fundamentalmente, para superar essa guerra infindável de partidos.

Convocado em 1958, o general foi imediatamente tornado plenipotenciário. E, nessa condição, compôs às pressas uma Constituição. Foi à Argélia – principal e mais conturbada colônia. Apresentou aos argelinos o seu ambíguo “je vous ai compris” [eu lhes compreendi]. Iniciou a distensão com todas as colônias. Negociou com praticamente todas as lideranças metropolitanas e coloniais. Conduziu – ora tranquilamente, ora menos tranquilamente – a descolonização/independência.

Reposicionou o lugar da França no mundo. Forjou uma nova projeção interior e exterior do país. Eliminou a possibilidade de alinhamentos automáticos com liberais ou comunistas. Passou a construir-se como terceira via e terceira voz no mundo. Falando a todos e tentando ser ouvido por todos. Em nome do presente, pensando no futuro e em louvor aos tempos em que o mundo venerava a França. Mesmo assim, a pressão interna seguiu imensa.

Especialmente porque, tecnicamente, o general havia sido entronizado no poder indiretamente por um colégio de notáveis. Sem, portanto, a participação nem a legitimidade popular. E, desse modo, gostando-se ou não, mais ou menos, refém do sistema e dos partidos. Que, por claro, poderiam amputar os seus meios de ação e ejetá-lo do poder a qualquer momento, tão logo a sua tarefa principal que era solucionar a problemática colonial fosse concluída.

Para, então, inibir essa possibilidade, o general convocou um referemdum para a instalação do sufrágio universal para a escolha de presidentes da República a começar por ele próprio. Como reação, o aglomerado de partidos do colégio de notáveis impetrou uma moção de censura contra o governo de George Pompidou, primeiro-ministro do general, com o propósito de acoimar o general. O ano era 1962. O mês, outubro. O dia, 5.

E, portanto, em atenção ao artigo 50 da Constituição de 1958, nesse dia 5 de outubro de 1962, pela primeira vez na Quinta República, um primeiro-ministro foi demitido pela vontade parlamentar.

Mas o general não se intimidou. Vendo que o propósito era fragilizá-lo, ele dissolveu o Parlamento, convocou novas eleições parlamentares, conseguiu constituir maioria parlamentar a seu favor, renomeou George Pompidou como seu primeiro-ministro e conseguiu o referendum favorável ao sufrágio presidencial universal. E, com isso, conduziu a querela de partidos à irrelevância. Vitalizando o espírito do novo regime ancorado na Constituição de 1958. Que fazia do presidente da um verdadeiro monarca, com amplos poderes e robusta legitimidade. Advindos diretamente do povo. Sem nenhum – ou quase nenhum – compromisso com partidos. Eis a essência da Quinta República.

O que acaba de ocorrer na França nesta primeira semana de dezembro de 2024 vai integralmente diferente daquele feito de 1962. Michel Barnier vem de ser demitido pelos parlamentares e o presidente Macron não possui nenhum mecanismo para “punir” os parlamentares. Vê-se, assim, um evidente retorno à odienta querela de partidos. Esterilizando o regime político da Quinta República e lançando o destino do país – da Quinta República e do presidente Macron – ao desconhecido.

Pois um retorno à Quarta República virou impossível e a implementação de uma Sexta, a partir de uma reforma política, também parece improvável. De modo que 1958 e 1962 foram, agora, tornados anacrônicos e 2024 ganhou a pecha de annus horribiblis francês. Ou melhor, o ano que em o empilhamento de crises chegou ao limite do suportável. Pois a crises são múltiplas e variadas. Para ficar apenas nas mais decisivas, olhando bem de perto, o cursor pode ser posicionado naquela fatídica decisão de dissolução do Parlamento na noite do 9 de junho de 2024 após a vitória acachapante do partido de Marine Le Pen nas eleições para deputação na União Europeia em Bruxelas.

Olhando mais ao longe, o 2 de dezembro de 2020, 26 de setembro de 2019 e o 8 de janeiro de 1996 – datas respectivas da morte dos presidentes Vallery Giscard d’Estaing, Jacques Chirac e François Mitterrand – sepultaram os últimos presidentes franceses capazes de suportar o fardo de sucessores do general De Gaulle. E olhando bem longe, a Quinta República talvez tenha começado a terminar com a resignação do general naquele terrível 28 de abril de 1969.

Voltando ao início e recompondo com calma seis meses, dia após dia, daquela fatídica decisão do 9 de junho de 2024, ninguém entendeu completamente as motivações do presidente Macron na dissolução do Parlamento. As eleições eram europeias. O partido de Marine Le Pen – e de seus similares radicais e extremistas na Europa e mundo afora – amplia a sua capilaridade de maneira profunda e estrutural desde a crise financeira de 2008. Tanto que chegou ao segundo turno das presidenciais francesas em 2017 e 2022 – nas duas ocasiões, contra Emmanuel Macron.

De maneira que já virou tácito que a sua ascensão vai constante, impressionante e irresistível. E, claramente, poderá – mais dia, menos dia – conduzir Marine Le Pen ou afins para a presidência em 2027 ou adiante. De modo que dissolver o Parlamento francês sob o pretexto de conter a ramificação do partido de Marine Le Pen continua sendo um argumento intelectualmente frágil, moralmente inconsequente e politicamente irresponsável. Assim como a tese da clarificação, mobilizada pelo presidente Macron.

Sem ser demasiado contundente ao encontro do nobre presidente francês, a defesa dessa tese beira o cinismo. Todo o macronismo entrou em crise terminal ao longo do primeiro mandato do presidente Macron. Após a sua reeleição em 2022, os despojos dessa crise só fizeram aumentar. De modo que impor ao povo “pensar melhor” e “rever” o sobre o seu ampliado apoio no partido de Marine Le Pen chega bem perto de ignomínia. Ou, dito de outro modo, parece brincadeira de péssimo gosto com a inteligência alheia. Tanto que o resultado dos dois para o legislativo deixou ainda mais clara a força de Marine Le Pen.

Em contrário, observe-se que esse resultado coloriu o Parlamento com a França Insubmissa (LFI) de Jean-Luc Mélenchou conquistando 78 cadeiras; o Partido Comunista Francês (PCF), 8; os Ecologistas (LE), 28; o Partido Socialista (PS), 69; os partidos esquerdistas diversos, 10; os partidos centristas diversos, 5; o Movimento Democrático (Modem) de François Bayrou, 33; Ensemble – reunindo Renascimento e outros aliados do presidente Macron – 99; o Horizontes do antigo primeiro-ministro Édouard Phillipe da presidência Macron, 26; a União Democrática e Independente, 3; o Os Republicanos (LR) do antigo presidente Nicolas Sarkozy, 39; partidos direitistas diversos, 26; a união LR-RN – aliança entre Éric Ciotti e Marine Le Pen –, 17; o RN de Marine Le Pen, 125; o partido de extrema direita, à direita do RN, 1; e o partido regionalista, 9.

Mirando tudo através de alianças, a Nova Frente Popular (NFP), liderada por Mélenchon aquinhoou 182 assentos. A Maioria Presidencial (MP) de Macron conseguiu 168. A Reunião Nacional (RN) de Marine Le Pen de braço com parcelas de LR de Éric Ciotti conseguiu 143. O grupo dos Republicanos levou 46. Enquanto a variedade independente à direita conseguiu 14, a à esquerda, 13, a ao centro, 6. Ao passo que o partido dos regionalistas levou 4 e outras agremiações nanicas unidas, 1.

Baralhando mais uma vez os números e vendo-os em perspectiva, o RN aparece como o único partido com ascensão constante, consistente e acelerada na ampliação de sua representação parlamentar nos últimos vinte e cinco anos. Essa força política sob a liderança dos Le Pen não tinha conseguido nenhuma cadeira em 2002 nem em 2007. Mas conquistou duas em 2012, nove em 2017, 89 em 2022 e às 125 – ou, em aliança, 143 – em 2024.

O conjunto dos partidos ancorados no agrupamento Ensemble conquistou 350 após a primeira eleição do presidente Macron em 2017, 249 após a sua reeleição em 2022, e desceu para 156 – ou 168 – cadeiras em 2024. Enquanto o agrupamento de Mélenchon – que também envolve, a contragosto de todos, frações do PS – variou de 162 em 2002 para 205 em 2007, 307 após a eleição do presidente François Hollande em 2012 para 58 em 2017, 131 em 2022 e 178 – ou 182 – em 2024.

Parece mais que claro que esses números não são números. Fitando apenas a realidade de 2024, após a dissolução e recomposição do Parlamento, existem 143 cadeiras a favor de Le Pen, 168 para Macron e 182 para Mélenchon. Constituindo-se três forças parlamentares disformes e dissonantes. Como jamais se viu sob a Quinta República.

Pois, voltando-se à essência, a Quinta República supõe a governabilidade através de uma maioria parlamentar. Qualquer que seja.

O general De Gaulle e todos os seus sucessores – exceto o presidente Jacques Chirac, em 1997 – supuseram dissolver o Parlamento como mecanismo de afirmação dessa maioria. E conseguiram.

O presidente Macron poderia até intuir e pode seguir imaginando que isso seria possível em junho de 2024. Mas nenhum dado da realidade corrobora a sua tese.

De modo que, sem mancar com o respeito ao encontro do distinto presidente francês afeiçoado em saltitar com o presidente Lula da Silva na Amazônia, a sua intempestividade na dissolução do Parlamento foi, sim, uma ação temerária e desprovida de pouco ou nenhum cálculo político revestido de interesse nacional francês.

Daí a perplexidade rumo ao desconhecido. Pois nesse cenário, qualquer primeiro-ministro tende a transitar por um Parlamento hostil. Que só poderá ser novamente dissolvido em junho de 2025. Tarde demais para um regime político que, sinceramente, claudica.

E claudica porque, de fato, “ninguém ganhou” as legislativas. Ou seja, nenhum partido conseguiu número suficiente de cadeiras para afirmar-se majoritário. O número mínimo seriam 289 cadeiras. Como ninguém chegou nem perto, o caos se instalou. Pois o grupo de Mélenchon conseguiu 182 e se acredita majoritário. O entorno de Marine Le Pen com suas 143 também se sente empoderado. E os 168 deputados fieis ao presidente sabem que não possuem nada a comemorar.

Nesse ambiente, a singela escolha de um primeiro-ministro tornou-se um risco ao regime. O presidente Macron escolheu Michel Barnier sabendo disso.

Michel Barnier é tido como experimentado quadro político francês. De seus variados serviços prestados, o mais recente, complexo e relevante foi a negociação do Brexit. Que demonstrou os seus predicados de portador de nervos de aço, paciência chinesa e sapiência carioca. Por isso, ele entrou no radar do presidente Macron para Matignon. Mas para aceder ao posto ele precisaria atar alianças. Essencialmente com Mélenchon e fundamentalmente com Marine Le Pen.

Com o primeiro, a resposta foi “não”. Com a segunda, conversou-se. E dessa conversa emergiu a perspectiva de integração das 143 cadeiras do RN às 168 do Ensemble como uma frente parlamentar para fazer passar projetos essenciais. Sendo o orçamento, o mais importante. Sob um custo moral, sinceramente, inacreditavelmente imperdoável da naturalização de Marine Le Pen e de seu RN na paisagem política francesa.

Tudo parecia bem. Bem mesmo. Malgrado os solavancos de Mélenchon. Até que o judiciário francês iniciou um procedimento de inviabilização política de Marine Le Pen. Denunciando-a de crimes políticos – “empregos fictícios” – no Parlamento europeu.

Michel Barnier havia sido empossado primeiro-ministro em setembro de 2024 e essa ofensiva jurídica ante Marine Le Pen começou em outubro. Quando durante duas ou três semanas não se falou de outra coisa que a possibilidade de a principal liderança da principal força política do país sob o risco de ser suprimida da competição eleitoral francesa.

Esse mal-estar causou desconforto de natureza física e espiritual em toda parte. Especialmente sobre Marine Le Pen, em seu partido e em seus eleitores.

Coetaneamente, Michel Barnier iniciou a apresentação do orçamento a ser votado pelo Parlamento. Uma operação complexa, decorrente da deterioração fiscal estrutural do país.

A situação fiscal francesa vem gravemente deficitária há quarenta ou cinquenta anos. O após pandemia e o “quoi qu’il en coûte” [custe o que custar] do presidente Macron simplesmente tornou a situação mais desafiadora. Com a eclosão da nova fase da tensão russo-ucraniana e o seu impacto direto sobre o fornecimento de energia, o que era desafiador ganhou ares de desespero. Diante a situação israelo-palestina, o desespero virou insuportável. E, se nada disso bastasse, a expectativa de retorno e o retorno de Donald J. Trump à Casa Branca transformaram o pesadelo em pandemônio. De maneira que o projeto orçamentário de Michel Barnier nasceu inviável e impossível de ser aprovado.

Sem adentrar em tecnicalidades, diante de todos esses vetores, o projeto propunha, simplesmente, o aumento de perto de 40 bilhões de euros em impostos ao contribuinte francês.

Entre os franceses, como se sabe, tudo: menos apreciação de impostos. Notadamente após 2008, a crise do euro, o Brexit, os Coletes Amarelos e a pandemia.

De toda sorte, era necessário tentar. E tentar por vias legislativas. Nesse sentido, do lado de Mélenchon, o apoio – independente da proposta – seria nulo, e foi. Ao passo que lado de Marine Le Pen apoiar projeto desse tipo seria uma traição aos seus 11 milhões de eleitores. Porquanto, essas duas forças parlamentares – o NFP e o RN, de Mélenchon e Marine Le Pen – bloquearam a proposta.

Diante disso, o primeiro-ministro lançou mão do artigo 49, alínea 3, da Constituição para fazer passar sem o aval do Parlamento. Frente à gravidade da manobra, Mélenchon formalizou uma proposição de censura. Que foi imediatamente aceita por Marine Le Pen e variados parlamentares de outros partidos. Concretizando-se nos 331 votos de censura ante Michel Barnier no último dia 04 de dezembro.

Como primeiro-ministro do presidente Macron, Michel Barnier foi lançado a feras. Todos sabiam disso. Mas, agora, com ares históricos. Não simplesmente por ser a primeira demissão após 1962 e a segunda no interior da Quinta República Francesa. Mas porque, essencialmente, o evento sugere novos tempos. Tempos de tormentas. Onde as estabilidades viraram voláteis. E ninguém parece saber o que fazer.

Fitando simplesmente o caso francês, quando Nicolas Sarkozy chegou à presidência da República em 2007, a intelligentsia francesa, europeia e mundial começou a sinalizar que um mundo umbilicalmente integrado às agruras do século XX começava a desaparecer. Nicolas Sarkozy era o primeiro presidente da Quinta República nascido após 1945 e, portanto, desprovido da imagem do trágico nas retinas.

Mas antes a situação já não ia bem. 2005, o “não” francês à Constituição europeia, sob a presidência de Jacques Chirac, foi um baque importante. 1992, o “quase não” francês a ingressar no sistema de Maastricht foi outro momento constrangedor. 1981, o “não” francês à reeleição do presidente Valery Giscard d’Estaing também segue complexo. Pois a disputa Giscard versus Mitterrand produziu duas narrativas que merecem meditação.

Giscard propôs ser Mitterrand um “homem do passado” ao passo que Mitterrand propôs ser Giscard um “homem do passivo”.

Observando-se com calma, esse “passivo” remetia a problemas fiscais, aumento de desemprego, da carga de impostos e afins. Todos problemas persistentes e anteriores a 1981. Para não dizer bem antes. Desde, ao menos, o fim dos Trinta Anos Gloriosos, que, de fato, terminaram em maio de 1968.

Maio de 1968 como outubro de 1962 levaram a autoridade do fundador da Quinta República ao descrédito. Da primeira vez, em 1962, o general conseguiu suportar e superar. Da segunda, em 1968, não. Como resultado, ele renunciaria onze meses depois sem deixar nenhum sucessor.

E por razões profundas que podem ser apreendidas na meditação atenta das concepções do general De Gaulle reportadas nesse fabuloso C’était de Gaulle de Alain Peyrefitte (Paris: Fayard, 1994).

Sob todos os seus aspectos, a Quinta República foi feita sob medita para o general. Essencialmente ao subentender que o exercício da presidência deveria ser, acima de tudo, um fato retórico e um fato moral. Onde a grandeur [grandiosidade] da França, tangida por sua história e por sua cultura, serviria de objetivo e obsessão. E a distinção de seu líder máximo conduziria o país acima dos arranjos do estado, do direito e dos partidos.

O presidente Mitterrand – único presidente francês a cumprir quatorze anos ininterruptos de presidência sob a Quinta República – levou esses preceitos às últimas consequências. Sendo a “quase” imposição de Maastricht a marca mais evidente dessa perspectiva estrutural e estruturante.

O presidente Chirac, por sua vez, tentou de tudo – e conseguiu – para seguir a senda do general. Sendo o “não” francês à invasão do Iraque a melhor mostra disso.

O presidente Macron chegou ao poder em 2017 ignorando De Gaulle, Mitterrand e Chirac e querendo ser Júpiter, o maior planeta do sistema solar. Mas, agora, por razões obtusas, após a dissolução de junho e moção de censura de dezembro, corre forte risco de terminar como Ícaro: singrando pelo desconhecido até ser definitivamente estraçalhado pelo seu misto de arrogância e ilusão.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]


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