A crítica sociológica de Florestan Fernandes

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Por LINCOLN SECCO*

Comentário sobre o livro de Diogo Valença de Azevedo Costa & Eliane Veras Soares.

1.

A biografia intelectual de Florestan Fernandes continua. Quando se acreditava que ela se resumia ao grande intelectual que uniu rigor científico e engajamento revolucionário, vieram os novos desafios do século XXI. A história da Universidade de São Paulo exige novas apreensões, face sua transformação sob o neoliberalismo; o Partido dos Trabalhadores sofreu várias rotações políticas; as perspectivas da revolução se tornaram sombrias e as leituras pós-modernas desafiaram a biografia e o próprio legado acadêmico de Florestan Fernandes.

O livro de Diogo Valença de Azevedo Costa e Eliane Veras Soares é decididamente simpático ao seu objeto, mas não foge aos novos desafios e propõe uma superação, como veremos.

O livro se divide em três partes. Na primeira autor e autora analisam as raízes sociológicas do pensamento teórico de Florestan Fernandes. No primeiro capítulo definem o “estilo lumpen de pensamento” de Florestan Fernandes. No segundo, propõem a reconstrução da sociabilidade institucional do ensino das Ciências Sociais em São Paulo entre as décadas de 1930 e 1960. Por fim, no terceiro capítulo, há breve conclusão da primeira parte.

Na segunda parte a obra volta-se para a análise interna dos trabalhos de formação acadêmica; as questões teórico-metodológicas desenvolvidas por Florestan e a elaboração das categorias de subdesenvolvimento e capitalismo dependente, recuperando-se o envolvimento político de Florestan Fernandes nos debates nacionais acerca dos “dilemas educacionais brasileiros”. Em seguida os autores voltam-se para as redes intelectuais na América Latina. Essa parte se valeu de novas pesquisas no arquivo e biblioteca pessoais de Florestan Fernandes e faz um exame de sua inserção na circulação internacional de ideias, algo ainda pouco explorado na bibliografia existente.

A terceira e última parte do livro aborda o período posterior à aposentadoria compulsória de Florestan Fernandes na USP: do exílio canadense (1969-1972) à atuação como Deputado Federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) (1987-1995). O livro finaliza com a interpretação marxista do Brasil e América Latina a partir do “dilema racial brasileiro”, lido como o ponto de partida das suas formulações sobre o “subdesenvolvimento” e o “capitalismo dependente”.

2.

O “estilo lúmpen de pensamento” exibe a força e a debilidade da reconstrução da vida e obra de Florestan Fernandes. Ele se vinculou aos de baixo (los de abajo na expressão do escritor mexicano Mariano Azuela que Florestan admirava) porque ele não era de família camponesa ou operária, mas de uma família urbana desagregada, mantida por uma mãe sozinha, lavadeira, tendo tido a experiência de viver em outra casa por algum tempo, perambulando pelas ruas ao deus-dará, defendendo-se como podia dos adultos e outros meninos mais fortes, sendo carregador de feira etc.

As reflexões de Florestan Fernandes na universidade carregariam aquela marca, voltando-se para o negro, os indígenas, os favelados, os pobres (no sentido amplo que os historiadores medievalistas davam ao termo) e, claro, também à classe operária e aos trabalhadores do campo.

A reconstrução biográfica de Florestan Fernandes é baseada em seus próprios relatos pois a maior fonte das pesquisas é o seu arquivo pessoal depositado na Universidade Federal de São Carlos, além de entrevistas inéditas que Eliane Veras Soares fez com Florestan. Alguns relatos foram feitos em momentos muito distintos e projetaram no passado diferentes perguntas. O filtro da sua subjetividade na reconstrução autobiográfica ainda está por ser feito. No entanto, a autora e o autor deste livro conscientemente não se preocuparam com “a exatidão da verdade histórica dos fatos”, que eles atribuem ao positivismo, mas com as “definições subjetivas” do próprio biografado.

Dessa maneira, na parte intitulada “From the Lumpen social environment to the University of São Paulo” os autores reapresentaram a biografia de Florestan Fernandes sob nova perspectiva: o estilo lumpen e suas raízes existenciais, psicossociais e socioculturais deram a ele uma sensibilidade particular para outras dimensões ético-existenciais. Assim, seu trabalho como sociólogo acadêmico não se limitou a reproduzir o modus operandi de seus mestres franceses, incorporando o rigor teórico metodológico e a escrita escorreita e adusta, mas exibindo preocupações com temas e elaborando problemas que não importavam aos pesquisadores europeus ou estadunidenses.

O próprio marxismo era um corpo estranho na universidade quando Florestan Fernandes encetou suas primeiras pesquisas, mas ele manteve paralelamente contato com militantes revolucionários enquanto ascendia em sua carreira de um típico acadêmico da época. Antonio Candido lembrou que o marxismo persistiu no pensamento de Florestan Fernandes como um rio subterrâneo. Em outras palavras, existiu sempre uma tensão entre ciência e engajamento.

Emilia Viotti da Costa também tratou do problema: “A prática cultural engajada que caracterizava os anos 1960 – e que subsiste com grandes dificuldades nas regiões onde a profissionalização do intelectual foi tardia ou incompleta– tende a desaparecer entre nós. Cada vez mais encerrado na torre de marfim da academia, consumido pela burocratização, às voltas com relatórios e pareceres, à caça de bolsas e convites para participar de encontros internacionais, obrigado a seguir modas de momento, o intelectual dos nossos dias raramente se enquadra nos modelos gramscianos”. (https://aterraeredonda.com.br/florestan-fernandes-i/).

Seriam as eleições temáticas de Florestan Fernandes uma maneira de equacionar aquele dilema? Entre suas primeiras escolhas temos: a criança; os Tupinambá; os imigrantes; os Tupis; as favelas e o negro. Outro traço de sua inclinação militante foi a entrada na Campanha em Defesa da Escola Pública, lançada em maio de 1960.

No entanto, quantas escolhas que fazemos numa carreira não sofrem condicionamentos institucionais? As investigações sociológicas tributárias do funcionalismo tinham por escopo compreender os mecanismos que garantem a coesão da sociedade e definir os fatos sociais que funcionam independentemente da vontade dos indivíduos. Para isso, era possível eleger como objeto as sociedades indígenas, as quais evidenciariam de forma mais simples a função de cada elemento num sistema. Igualmente, a investigação sobre relações raciais foi um projeto da Unesco.

Se é possível dizer que a experiência de vida e as inclinações políticas e existenciais se traduziram no labor científico, também é preciso aquilatar o quanto os métodos e os enquadramentos teóricos ressignificaram aquelas escolhas políticas.

Os autores resolvem a equação demonstrando que, apesar disso, o que imperou nas pesquisas sobre os Tupinambá foi a “rotação de perspectiva” de Florestan, a qual captou a reação humana dos indígenas ao terrível processo de colonização. Isso confere atualidade à obra de Florestan Fernandes, segundo as novas perspectivas dos movimentos indígenas, sem desconsiderar aquilo que envelheceu. De toda maneira, os autores registram certa fortuna crítica em obras de antropólogos produzidas a partir da década de 1970.

3.

Outro problema muito bem apresentado no livro é o do ecletismo. Pela combinação de Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, Florestan Fernandes sintetizou criticamente três tradições de pensamento respectivamente: o positivismo; o neokantismo; e o hegelianismo.

Como parte da análise científica, a seleção de alguns aspectos da realidade social em detrimento de outros é fundamental. A observação empírica recolhe o essencial, sacrificando o acidental, direcionando a atenção para certas camadas da realidade, segundo os objetivos da explicação sociológica e a orientação teórica. O tipo ideal é um construto mental obtido mediante a seleção de características que recortam a realidade para melhor compreendê-la, sem perder de vista a interdependência dos elementos que compõem o todo.

Os trabalhos iniciais de Florestan Fernandes são clássicos da análise estrutural funcionalista no Brasil, lembrando que para ele o funcionalismo não era uma teoria (nisso ele coincidia com Talcott Parsons) e sim uma via para formular “proposições empíricas, testá-las e incorporá-las à teoria”.  Igualmente a discussão sobre a objetividade dos “fatos sociais” ou a consideração dos conflitos sociais permitiram a Florestan Fernandes se tornar um intelectual muito diferente de seus congêneres da Europa ou Estados Unidos.

Essa base científica, aliada ao compromisso político, o levou à elaboração de questões de longa duração: o capitalismo dependente e autocracia burguesa. É na obra a A revolução burguesa no Brasil que a formação acadêmica e o método dialético se conjuminam numa forma superior. Tratava-se de uma ruptura epistemológica, na esteira de Louis Althusser? Os autores discutem o tema mas, no fundo, continuidade e ruptura alimentam-se uma da outra na trajetória intelectual de Florestan Fernandes, como esse livro nos prova de forma cabal.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]

Referência

Diogo Valença de Azevedo Costa e Eliane Veras Soares. Florestan Fernandes’ Critical Sociology: A Social Theory of Brazil and Latin America.‎ Routledge, 2023, 194 págs. [https://amzn.to/40bz2tl]


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