Napoleão Bonaparte, 200 anos

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Por LINCOLN SECCO*

Quem o mundo recorda hoje, o jovem de brilhantes vitórias revolucionárias ou o inimigo dos jacobinos e imperador das concessões?

Em 1808 Napoleão foi ouvir um concerto em Erfurt durante o Congresso dos Príncipes. Ali condecorou Goethe e lhe confessou ter lido o seu Werther… Ele se tornara um semideus. Até um santo chamado Neópolis, um mártir de Alexandria, foi canonizado porque seu nome poderia ser pronunciado como Napoleón.[i] Mas, da canonização à oposição houve uma alteração brusca provocada pelo próprio Bonaparte.

Ao sabê-lo imperador, Beethoven retirou-lhe a dedicatória da Sinfonia Heroica. O jovem poeta italiano Ugo Foscolo já havia se desiludido antes quando Veneza, então república democrática, fora devolvida à Áustria em virtude da Paz de Campoformio (abril de 1797). Mas então ele pensava que, apesar de tudo, Bonaparte continuava a Revolução.[ii]

Depois da coroação, Bonaparte começa a ser confrontado com a mesma paixão que a Revolução de 1789 havia incutido nos franceses. Mas agora eram alemães, espanhóis, russos e vários outros movidos pela nova ideologia nacional. Quando certo Dessorgues escreveu “Oui Le grand Napoleón / est um grand cameleón”, pagou com a prisão os seus versos, mas revelou a ambiguidade do imperador.

O Império consolidou a propriedade burguesa e a irrevogabilidade da venda dos bens nacionais pela Revolução. É verdade que Pio VII foi chamado à Catedral de Notre Dame para coroar Napoleão I. Mas, em 2 de dezembro de 1804 Napoleão retira das mãos do Papa a coroa e a coloca ele mesmo em sua cabeça. Em seguida coroa a Imperatriz.[iii] Era Imperador por talento e não por nascimento.

Se ele trocou uma Josefina que lhe fora infiel (na cama de Barras) por Maria Luiza da Áustria, ele também era a glória de uma França cujo território entre 1795 e 1811 quase dobrou de tamanho. Napoleão era tanto um resultado da Revolução Francesa quanto do exército por ela criado em função de necessidades práticas. Escreveu ele: “A estratégia é a arte de utilizar o tempo e o espaço. Sou mais parcimonioso com o primeiro do que com o segundo. O espaço, podemos recuperar; o tempo perdido, nunca”.[iv] Seus ataques surpreendentes só eram possíveis porque no combate a velocidade de marcha do soldado francês podia chegar a 120 passos por minuto contra a média de 70 dos adversários.[v]

Conscrição obrigatória, a levée en masse; Bivaquear e não acampar; e substituição do transporte de suprimentos pela pilhagem eram alguns dos elementos que permitiram a genialidade do General Bonaparte. A Geografia também teve seu papel. Numa Europa ocidental densamente povoada seus exércitos venceram, mas foram exauridos nas extensões territoriais da Rússia, como veremos.

Ainda assim, como Sartre afirmou, Napoleão não foi um mero acidente. O desenvolvimento da Revolução forjou este Napoleão com a personalidade e os poderes pessoais exigidos pelo seu tempo. E também aqueles soldados imbuídos do sentimento nacional que espantou Goethe na Batalha de Valmy. Os indivíduos jamais se reconhecem inteiramente nos resultados dos seus atos, mas isso não significa que os historiadores não devam ressaltar o seu papel, justamente porque os agentes históricos são alienados.[vi]

O império camaleônico teria fim, é claro. Certa vez, um soldado de 18 anos se aproximou dele com uma faca de cozinha. Preso, foi interrogado pelo próprio Bonaparte e depois foi fuzilado, causando grande repercussão na Europa. Quando o Imperador lhe perguntou o motivo por que queria cometer aquele ato, o jovem declarou: “Affranchir l´Allemagne”.[vii]

Bonaparte foi sagrado imperador em 1804 e no ano seguinte subjugou a Áustria em Austerliz. Em 1806 derrota a Prússia depois em Jena. No mar, fora contido em 1805 pelo Almirante Nelson na batalha de Trafalgar. Estabeleceu assim um domínio continental baseado no bloqueio às mercadorias britânicas. Foi a decisão do Czar de abrir seus portos aos britânicos que motivou a campanha da Rússia em 1812. A retirada russa e o incêndio arrasaram as fontes de abastecimento da Grande Armée. Muitos atribuíram a perda de cerca de meio milhão de soldados franceses (dos seiscentos mil que haviam partido) ao rigor invernal. Segundo Clausewitz não foi o sofrimento do inverno que derrotou Napoleão, mas as privações do verão.

Legado

Napoleão, derrotado, foi reduzido ao chefe de uma ilha (Elba). Retornado ao poder, depois do governo dos cem dias, foi definitivamente banido para a Ilha de Santa Helena.

Sua figura, entretanto, não morreria. Já em 1840 seus restos mortais foram conduzidos com grande pompa à França, durante o reinado de Luis Filipe. Não era casual que Napoleão voltasse no governo de um homem cheio de ambiguidades como ele: chamado de “rei burguês”, apoiara a traíra a Revolução; vivera na Suíça, EUA e Inglaterra e se reconciliou com os Bourbons; encabeçara uma nova Revolução em 1830 e seu pai era o Philippe Égalité (Felipe Igualdade), revolucionário guilhotinado no terror de 1793.

Com a Revolução de 1848, Luiz Bonaparte, sobrinho de Napoleão, foi eleito presidente da República. As vicissitudes do processo político fizeram dele “príncipe presidente” depois de um golpe de estado em 1851 e, finalmente imperador da França como Napoleão III, até sua derrota para os prussianos na batalha de Sedan em 1870.

À esquerda e à direita Napoleão foi reivindicado por generais conservadores e líderes revolucionários.

Na Rússia soviética, cujas fases e linguagem remetiam amiúde à história da França, Alexandre Kerenski foi chamado de Napoleão em seu curto governo provisório. Trotsky, um dos criadores do Exército Vermelho, foi acusado de ambições bonapartistas. E depois dele Stalin. O bonapartismo tornou-se um conceito polêmico entre os marxistas. Quando o historiador soviético Tarlé escreveu sua biografia de Napoleão, os críticos e censores do partido não sabiam bem o que fazer com ele.[viii] Por um lado, demonstrava o papel extraordinário de um homem que podia remeter a Stalin, por outro tratava de um inimigo da Rússia, um país que nos anos 1930 procurava resgatar do passado a resistência anti-napoleônica além de elogiar generais como Kutuzov, que haviam sido sepultados por uma historiografia revolucionária que só se importava com as forças impessoais da história.[ix]

A França lidou oficialmente com Napoleão no bicentenário do nascimento em 1969, depois do esfriamento da revolta de Maio de 1968. Agora, com o bicentenário da morte, coincidiu a rememoração com um manifesto de generais direitistas. Embora incomum em países democráticos avançados, lembremos que a França de certa maneira inventou o coup d’état e Napoleão foi um exímio mestre nessa arte no 18 Brumário do ano VIII (9/11/1799).

Contudo, depois do boulangismo, tendência política efêmera em 1889 atinente ao indeciso general Georges Boulanger (1837-1891), o país cedeu à Alemanha as sucessões de golpes e o termo popularizado foi Putsch. Após a Segunda Guerra Mundial, a tentativa de golpe militar de Maio de 1958 foi o último suspiro de uma política colonialista e terminou na volta de Charles De Gaulle ao poder e no início da V República.

O manifesto de generais franceses da reserva em pleno 2021 parece a revivescência do passado e coincide com a celebração do maior dos generais da época contemporânea. Mas há que se ter cautela ao olhar aquele evento de um ponto de vista latino americano. Em que pese a onda direitista mundial, a França tem uma Ministra da Defesa civil e mulher, Florence Parly; militares que criticam governos são punidos; além disso, o inexperiente presidente Emmanuel Macron em 2017 por uma questão orçamentária humilhou o chefe do Estado Maior, General Pierre de Villiers, o qual se demitiu e foi aplaudido pelos seus pares.

Ao contrário do que diz a imprensa brasileira, o manifesto não foi encabeçado por “24 generais de pijama, agrupados numa espécie de Clube Militar à francesa, saudosistas dos tempos coloniais” (G1, 03/05/2021). Trata-se do Wishful thinking da mídia de um país dependente. Na Europa, militares não costumam ser muito inteligentes e o avanço da especialização só fez deles técnicos mais ou menos competentes. Mas não se espera deles o primarismo de generais latino americanos, como o de um Ministro da Saúde que não conhece sua própria especialidade e ignora até a geografia do Brasil.

O General Pierre de Villiers não é desse tipo. Nem se parece a algum oficial brasileiro cuja capacidade de escrita é do tamanho de um twitter. Villiers se tornou um escritor capaz de fomentar um chamado nacional em torno de uma política de direita, ao contrário das memórias rasas publicadas por aqui. Se será a farsa de De Gaulle no século XXI, não sabemos. O que é patente, é que ele não escolheu ao acaso o bicentenário da morte de Napoleão para falar a um país que inventou tantas tradições.

Qual Napoleão?

Provavelmente Napoleão seja hoje um estadista para os direitistas e um “racista, misógino e autoritário” (Época, 16/04/2021) para parte da esquerda. Ele criou o código napoleônico, consolidou um exército de novo tipo e manteve o calendário revolucionário, mas restaurou a escravidão nas colônias.

Napoleão instalou uma nova nobreza, mas sem a legitimidade da velha. Renato Janine Ribeiro em A última razão dos reis lembrou que o antigo cortesão era o mestre da conversação, pois passava horas na corte sem fazer nada. Destituído das armas, florescia-lhe a linguagem. O que nos remete à obra de outro professor da USP, Eduardo D `Oliveira França, em seu Portugal na época da restauração, onde descreve uma nobreza de aldeia, sem corte ou armas, dedicada a atitudes de fuga como o teatro e a caça. Para Janine, Stendhal espelha a ambiguidade do império napoleônico. Ele ama os pobres, mas sente prazer na companhia dos ricos. Ele defende a justiça nas relações macro e o refinamento nas relações micro. Ora, não foi Talleyrand quem disse (ao ser demitido) que lamentava que tão grande homem fosse falto de boas maneiras?[x]

Thiers recorda que em 25 floreal ano X (15 de maio de 1802), Bonaparte apresentou ao Conselho de Estado um projeto de criação de uma legião de honra. Ele queria começar uma nobreza nova. Um conselheiro, Berlier, desaprovou a proposta, porque as distinções eram os ornamentos da Monarquia. E respondeu-lhe o Primeiro Consul: “Eu desafio (…) qualquer um a me mostrar uma República, antiga ou nova, em que não existam distinções”.[xi] No Dicionário “Souboul” J. P. Bertaud encontrou um quase oxímoro para o verbete de Napoleão: roi du peuple.[xii]

No romance O vermelho e o negro o herói Julien Sorel lê o Memorial de Santa Helena. Ele mesmo espelha a ambiguidade do jovem pobre que para subir socialmente oculta seus valores de classe. Tanto quanto Napoleão, aquela personagem literária expressa a época que Hobsbawm sintetizou como a da “carreira aberta ao talento”.

200 anos

O que a Revolução Francesa ou Napoleão têm a dizer aos descendentes de argelinos, às mulheres, às antigas colônias? E àqueles que sentem a nacionalidade em declínio? Para um historiador a pergunta está incompleta. O que os atores políticos disputam é a memória e não a história, embora ambas estejam relacionadas.

O Governo Macron se dividiu e não soube muito bem o que fazer com Napoleão. Nem uma Esquerda sem apelo de classe. Os fascistas, bem, estes não precisam ter uma relação racional com nenhum tema histórico. Podem odiar a Grande Revolução em nome da pureza da França e dos reis; exaltar a República contra o uso de véus; e resgatar o Imperador contra uma Europa supostamente frouxa diante dos bárbaros. Felizmente, a História cria problemas.

Por mais que se rejeite o déspota, Bonaparte foi promovido por Augustin Robespierre, o irmão do incorruptível.[xiii] Também foi aquele oficial iniciante, desconhecido e sem exército, que no 13 Vendémiaire do ano IV (5 de outubro de 1795) salvou a Revolução da reação monarquista. Quem o mundo recorda em 2021, o jovem de brilhantes vitórias revolucionárias ou o inimigo dos jacobinos e imperador das concessões? Essa dubiedade é que nos fascina ainda 200 anos depois.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê Editorial)

Notas


[i] Neves, Lucia Maria. Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal. São Paulo: Alameda, 2008, p. 39.

[ii] Canfora, L. “Bonaparte Libertador”, Estudos Avançados, n. 62, 2008.

[iii] Brousse et Tourot in: Jaurès, J. Histoire Socialiste (1789-1900), Paris, p. 200.

[iv] Strachan, H. Sobre a guerra de Clausewitz. RJ: Zahar, 2008, p. 53.

[v] Morton, A.L. A História do povo inglês. Trad. José L. Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 306.

[vi] Sartre, J.P. Questão de método, Os Pensadores. Abril Cultural, 1973, p. 154.

[vii] Id. Ibid., p. 383.

[viii] Tarlé, E. Napoleão. Trad. James e Jorge Amado. Prefácio de Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1945.

[ix] Veja-se Secco, L. História da União Soviética. São Paulo: Maria Antonia, 2021.

[x] Vide a excelente biografia de: Tarlé, E. Talleyrand – um Diplomata da Burguesia em Ascensão. Apresentação de Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

[xi] Thiers, M. A. Histoire de la Revolution Française. Bruxelles: Société Tipographique Belge: A. D. Wahlen, 1840, t. II, p. 606.

[xii] Soboul, Albert. Dictionnaire historique de la Révolution française. Paris: PUF, 2005.

[xiii] Como Primeiro Cônsul, Bonaparte determinou uma pensão para Charlotte Robespierre, cf. Taine, H. Les Origines de la France Contemporaine. Paris: Robert Laffont, 1986, p. 377.

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