MEC – INEP – CNE, urgente

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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

O senhor Milton Ribeiro tem um conjunto sólido de propostas que a cidadania já apresentou, como movimento social, universidade, instituições de pesquisa, associações de ofício e de política científica

Em A Língua Absolvida, Elias Canetti constrói um protagonista-criança que dispõe de uma parte significativa de sua vida para se livrar de uma imagem, qual seja, a sua língua poderá ser cortada a qualquer momento. Basta que um adulto, como aquele brutamontes de sua meninice, o pegue nalguma travessura e ele restará em silêncio para sempre.

Embora o garoto tenha vivido o tempo ameaçado como observador e analista de poucas palavras, novas experiências coletivas, desejos de adolescente e vozes amigas o levaram à absolvição da ameaça, tão gratuita quanto desumana.

O tema é de grande força política. Quantos projetos, políticas e processos morrem no silêncio, ou são exilados no desvão da invisibilidade e dafrustração? Quantas vidas empobrecidas já não foram ameaçadas de ter a língua cortada ou de fato o foram no curso interrompido de suas existências? Sob pandemia, faltam línguas para expressar o luto, mal expresso nos números brutais e crescentes.

Todas as experiências do autoritarismo, da colonização e da alienação de grupos sociais, e mesmo de instituições, têm ou terão essa história para contar um dia. Isto se pelo menos a língua for mantida.

Não se trata de digressão. Aqui se quer tratar de MEC, INEP e CNE, órgãos de governo e estado constituídos exclusivamente para garantir percursos formativos da infância, adolescência e juventude em direção à condição de pessoas livres, autônomas, sujeitos da vita ativa e conscientes de seus direitos e deveres na sociedade democrática. Por óbvio, tais instituições só existiriam nas ditaduras com a língua cortada.

O Ministério da Educação (o C da cultura foi mantido também por eufonia, melhor do que MED ou ME) foi criado em 14 de novembro de 1930 e suportou muitas vicissitudes, algumas dramáticas e castradoras. A expectativa maior foi a de vê-lo livre e criativo na sociedade democratizada, como lugar de cumprimento dos objetivos constitucionais para a educação brasileira. Sua sede em Brasília não tem muito a ver com suas obrigações diante de um país vasto, desigual e fundamentalmente injusto para com a maioria do seu povo, e nele mais de 50 milhões de pessoas a serem cuidadas e cultivadas sistematicamente, o que significa a educação.

O Conselho Nacional de Educação sofreu o aprendizado político do país, metamorfoseando-se desde 1911, indo para 1931, 1961 e 1994-1995. Cabe esclarecer que o CNE tem uma história de inclusão estatal e não governamental, visto que  colabora  com o MEC em importantes funções(e não o serve…), tais como realizar a oitiva nacional sobre temas educacionais, construir Diretrizes Curriculares– muitas vezes engavetadas –, intercambiar com todos os órgãos do sistema nacional a favor dos objetivos educacionais prescritos na Constituição da República; também, e não menos importantes, autorizar funcionamento de instituições, deliberar sobre contendas em percursos de formação e gestão e produzir normativas. A rigor, o CNE deve ser língua e ouvido, privilegiados e vivos, do povo brasileiro no cumprimento dos artigos sobre educação postos pelos constituintes de 1988. Qualquer coisa menor do que esse desiderato será uma ameaça sugerida por Canetti. E a ameaça existe.

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, que tem um nome pesado e bonito nas costas, Anísio Teixeira, um dos articuladores do Manifesto dos Pioneiros e mais tarde conselheiro federal, é instituição autárquica, de caráter técnico-político e dedicada ao subsídio de pesquisa e formulação de políticas para o atingimento dos objetivos do MEC e de todos os sistemas educacionais do país. Nos últimos tempos a mídia e os governos se ocuparam em absolver sua língua quase que exclusivamente na operação do ENEM. O INEP é lugar de excelência técnico-política para quem o conhece. Está a exigir o valor devido e nunca saber das “ordens” do MEC por via indireta, muito menos midiática.

Num (des)governo individualista, autoritário e bisonho, como o que temos, Canetti emplaca plenamente. As grandes mentiras se fazem verdade, supostamente nos termos do maltratado e sofrido Evangelho de João 8:32 e o “outro”, a “outra” não existem, o que caracteriza um ponto de partida para o fascismo. Só pode haver fascismos na ausência do outro e da outra como imanências solidárias do eu. Entende-se melhor, pois, o horror que essa gente, civis e militares, tem por Paulo Freire, que fez desta atitude o leitmotiv do seu pensamento educacional.

Mas é provável que, por honra do posto e da função, muitos profissionais e colaboradores do MEC, do CNEe do INEP não tenham língua plena para concordar que há no país um governo e asseclas potencialmente genocidas, isto é, assassinos de espécies, quer do humano, quer da fauna e da flora, e por vários meios, inclusive as omissões. Também potencialmente assassinos de instituições, inclusive as três aqui pensadas. Os interesses e as ideologias se encarregam de dar respostas convenientes aos de língua ameaçada.

No entanto, há línguas absolvidas no país para fazer ver o  acréscimo generalizado da pobreza desde janeiro de 2019, a morte de políticas caras à vida, ao geno/genus/ganá refletida no mundo do trabalho, nas relações previdenciárias, nos biomas da rica natureza do Brasil, nos cuidados da saúde e no respeito efetivo às famílias tendo em vista as sepulturas que passarão de 100 mil e se ombrearão ao Tio Sam-Trump, o governante amado pelo capitão-presidente.

O genocídio, o assassinato de grupos, partes, setores, vidas, personificado num eu que não conhece o outro, a outra, vai em marcha batida. Quem viver, verá. E isso prescinde, por falta de importância, das etiquetas do patronato governamental, da dependência e da bajulação ou dos que pretendem “consertar” o governo e garantir seu mínimo desempenho. Cabe perguntar: a favor de quem?Esta também é uma pergunta freireana.

Em educação, o assassinato é o corte da língua rebatidono apagamento de sentidos da linguagem humana, motor de todo o sistema educacional.Nesse seccionamento simbólico, o governo quetemos, suportado pelos cargos públicos, orçamentos e demais benesses junto às bancadas legislativas, “assassina” gerações, corta línguas-percursos e a política resta paralisada, quando muito a fazer manutenção, lubrificar a máquina, fazer de conta que as coisas caminham. Nenhuma avaliação, nenhuma transparência, raras manifestações de qualidade (como o que se leu dos coordenadores de área da Capes, de universidades, parte do legislativo, setores do INPE e alguns movimentos sociais). No mais, silêncio.

Essa reação corporativista das forças armadas à fala do ministro do STF só teve razão de ser na generalidade discursiva dele, que de fato não convém, pois o todo de uma instituição deve ser respeitado e bem analisado. Bastaria dizer, no entanto, como se deve dizer em educação, saúde, saneamento, culturaetc, que aqueles militares que se empregaram no governo em cargos de confiança também terão de prestar contas dos “cortes de língua” e mesmo do assassinato de parte do povo sob miséria, descuido, violência policial,mau exemplo público; enfim, negação de investimentos e de políticas adequadas.Assim, os absurdos governamentais diretamente assumidos pelo ex-parlamentar que nada fez para o povo brasileiro em muitos mandatos, se projetará para os seus liderados. Essa velha história de separar corpos e posições para encontrar justificativas lembra o fascismo e o nazismo, sempre associados ao ato de “cumprir ordens”. Ora, antes de cumprir ordens deixe-se o posto. Ou o problema reside no emprego e no soldo?

A forte história de MEC, INEP e CNE passa às mãos do senhor Ribeiro, novo ministro da educação. Cabe, antes de tudo, para ser justo, abstrair as informações já passadas sobre seus discursos anteriores. Quem sabe o pastor-ministro já aprendeu algo novo em sua vida para não ser preconceituoso e tampouco enfiar doutrinas reformadas tradicionais na vida do país laico, constitucionalmente laico. O que, aliás, não se resolve num discurso compensatório.  E isso a despeito da conversa fiada do presidente sobre ser o estado laico e ele religioso, o que não é, pois a sua bíblia parece ser a infernal.

Nos 60, 70 e 80 do século anterior, este colunista foi líder de juventude ecumênica, estudante da Universidade Hebraica de Jerusalém e do St. George’s College. Nãose encontra nessa caminhada qualquer coisa que se pareça com as citações bíblicas do capitão, quer no texto do Tanach, quer em o Novo Testamento. O contrário do que ele diz, sim, com fartos exemplos.

Se o senhor Ribeiro quiser justificar sua passagem pelo MEC, com dignidade, conviria começar a estudar a história do Ministério, do INEP e do CNE. Informar a sociedade sobre quem indicou e quem garantiu a entradados últimos conselheiros nacionais e se as indicações foram realizadas nos termos estritos da lei 9131, de 1995, incluídas posturas e finalidades. Ato contínuo, entender todo o significado desse indispensável conselho. Reposicionar-se diante do país como estadista e não pastor. Afinal, as maiorias deste país não são ovelhas do seu aprisco. Nem os 50 milhões de crianças, adolescentes e jovens. Repensar políticas e valorizar intensamente o INEP. Dar um salto sobre o que fez o inominável ministro anterior. A ver.

Ao fim e ao cabo, o senhor Milton Ribeiro tem um conjunto sólido de propostas que a cidadania já apresentou, como movimento social, universidade, instituições de pesquisa, associações de ofício e de política científica.

Acima de tudo, abandonar a ideia de pacto, que a literatura sempre julgou coisa perigosa, às vezes com cheiro de enxofre. Foi usado nos governos anteriores com saldo sofrível. Ser pactário não importa e sim ser comprometido sobre documentos abertos, debatidos nas comunidades educacionaise que atendam ao que é prioridade zero: a valorização plena dos educadores e seus outros e outras, o sujeito-estudante e cidadão, nos termos de todas as metas do Plano Nacional de Educação, 2014, a ser urgentemente resgatado, como o SUS, pego pela pandemia em pleno desmonte. No PNE e nas Diretrizes do CNE se encontram a régua e o compasso para a realização desse processo que molda a autonomia, o compromisso social e a liberdade.Os grandes desafios desse trio histórico vão muito além dos três ou quatro pontos circunstanciais que a grande mídia elege como prioritários. Este é um velho engano da suposta cultura política brasileira, que olha com pince-nez embaciado.

Se nenhum desses valores e compromissos interessar ao senhor Milton Ribeiro, talvez consultar o capitão e beber de suas verdades. Ele não sabe, a julgar por suas palavras e gestos (também como dono da bic) o que vem a ser língua ameaçada.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da ECA-USP.

 

 

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