Por OSAME KINOUCHI*
A negação da negação: dinâmica histórica, complexificação e as ideias de progresso
As ciências da complexidade apresentam alguns temas recorrentes: a emergência de comportamentos qualitativamente novos em sistemas dissipativos fora do equilíbrio, a aparente tendência de sistemas complexos de situarem-se na borda de transições de fase e pontos de bifurcação, dinâmicas históricas que apresentam equilíbrio puntuado, uma tentativa de complementar ideias de evolução Darwiniana com certas ideias de progresso (aumento de capacidade computacional) etc. Tais temas, na verdade, pertencem a uma longa tradição científica e filosófica e, curiosamente, aparecem já na obra de Friedrich Engels na década de 70 do século XIX. Iremos desdobrar alguns pontos na forma de uma comparação.
Aumento da complexidade na Biosfera
A ideia de emergência, tão antitética a grande parte da biologia moderna, é a principal mensagem da ciência da complexidade e seu papel no esclarecimento dos padrões da Natureza. A emergência da dinâmica auto-organizadora, a qual, se verdadeira, forçará a reformulação da teoria de Darwin. A emergência de uma criatividade na dinâmica dos sistemas complexos da natureza, a qual, se verdadeira, implica a existência de uma mão invisível que traz estabilidade do nível mais baixo até o mais alto na hierarquia ecológica, culminando na própria Gaia. E a emergência de um impulso inexorável para uma complexidade sempre maior, e processamento de informação na natureza, que, se verdadeiro, sugere a evolução de uma inteligência suficientemente poderosa para contemplar tudo que era inevitável. A vida, em todos os seus níveis, não é simplesmente uma coisa atrás da outra, mas o resultado de uma dinâmica interna fundamental comum [Lewin, 1994].
A visão de mundo spenceriana é a de que maior complexidade é uma manifestação inevitável do sistema, e é impulsionada pela dinâmica interna dos sistemas complexos: heterogeneidade a partir de homogeneidade, ordem a partir do caos. A visão puramente Darwinista é que a complexidade é construída unicamente pela seleção natural, uma força cega, não direcional; e não há qualquer aumento inevitável na complexidade. A nova ciência da complexidade combina elementos de ambos: as forças internas e externas se aplicam, e uma maior complexidade pode ser esperada como uma propriedade fundamental dos sistemas dinâmicos complexos. Tais sistemas podem, através da seleção, conduzir-se à borda do caos, um processo constante de co-evolução, uma constante adaptação. Parte do fascínio da borda do caos é uma otimização da capacidade computacional, seja o sistema um autômato celular ou uma espécie biológica evoluindo com outras como parte de uma comunidade ecológica complexa. Na borda do caos pode-se construir cérebros maiores….[Lewin, 1994].
[As ideias de progresso e auto-organização histórica de forma alguma são aceitas atualmente pelos biólogos. Para comprovar isso, basta comparar declarações de biólogos que defendem posições ideológicas as mais divergentes, mas que concordam na ênfase do papel do acaso, e da falta de tendências gerais, na história.]
Sou hostil a todos os tipos de impulsos místicos em direção à maior complexidade — disse Richard Dawkins quando lhe perguntei se um aumento na complexidade computacional poderia ser considerado uma parte inevitável do processo evolutivo.
Michel Ruse — Você pode realmente dizer que um cérebro é melhor que uma concha?[Lewin, 1994].
Stephen Jay Gould — O progresso é uma ideia nociva, culturalmente contaminada, não testável e não operacional que deve ser substituída, se desejarmos compreender os padrões da história. (…) Com raízes que se estendem ao século XVII, o progresso como uma ética central alcançou o clímax no século XIX, com a revolução industrial e o expansionismo vitoriano. (…) Você não pode nos culpar por sermos fascinados pela consciência, é uma enorme interrupção na história da vida. Eu a vejo como um acidente peculiar, mas a maioria das pessoas não quer vê-la assim. Se você acreditar que há um aumento inexorável no tamanho do cérebro através da história evolutiva, então a consciência humana torna-se previsível, não um acidente excêntrico. A nossa visão da evolução é muito centrada no cérebro, um preconceito que distorce nossa percepção do verdadeiro padrão da história.
Edward Wilson [é uma exceção] — Centrados no cérebro— ele riu. — Esse não é o máximo, em termos do modo politicamente correto de raciocinar?… Preciso dizer mais? [Lewin, 1994].
R. Lewin — A maioria das espécies da Terra hoje são organismos unicelulares como no pré-Cambriano, e muito do resto são insetos. Isto não parece progresso inexorável em direção a uma maior complexidade, parece?
N. Packard — Estamos falando de sobrevivência. Sim, há um número incontável de nichos lá fora nos quais as espécies se dão muito bem com certos níveis de capacidade computacional. Mas onde a sobrevivência é contestada, na maioria das vezes, você verá um aumento. Pense nisto como uma constante exploração da utilidade de maior complexidade computacional na evolução. Às vezes ela traz uma vantagem, e isto é o que dá a você uma seta [no processo histórico].
Nessa altura, já tinha ficado claro que se Normam Packard estiver correto em sugerir que um aumento na capacidade computacional representa uma seta no processo evolucionário, muitos biólogos terão problemas em lidar com a mensagem que a nova ciência da complexidade pode estar lhes trazendo.
Packard — Não estou dizendo que cada organismo tem necessidade de se tornar mais complexo: o sistema como um todo se torna mais complexo. (…) As pessoas não gostam dela [da ideia de progresso] não por razões científicas, mas sociológicas.
Brian Goodwin — Suponha que você reedite o BigBang. Quais são as probabilidades de conseguir a mesma tabela periódica de elementos naturais, as mesmas combinações de prótons, nêutrons e elétrons? Muito boas, ou assim sou levado a crer. Penso num retorno à explosão Cambriana do mesmo modo, não no mesmo grau, talvez, mas como uma imagem. Se houver atratores dinâmicos no espaço de possibilidades morfológicas, como acredito, então uma reedição da explosão Cambriana produziria um mundo muito mais parecido com o que conhecemos do que acredita Steven Jay Gould [que enfatiza o aspecto acidental da História]. Não seria idêntico ao que conhecemos, mas é possível que houvesse muitas semelhanças, fantasmas que reconheceríamos instantaneamente. Em outras palavras, a história evolutiva não seria uma coisa atrás da outra, mas, até certo ponto interessante, seria inevitável. Agora isto está se tornando uma espécie de refrão dos sistemas complexos adaptativos [Lewin, 1994].
Eis o que diz Engels no livro Dialética da Natureza:
“Que a matéria evolua a partir de si mesma o cérebro humano pensante é um puro acidente para uma visão mecanística, embora necessariamente determinado, passo a passo, onde ele acontece. Mas a verdade é que é da natureza da matéria avançar para a evolução de seres pensantes, de modo que isto necessariamente ocorre sempre que as condições para isto (não necessariamente idênticas em todos os lugares e tempos) estejam presentes” (DN, Ciência Natural e Filosofia).
“O movimento da matéria não é meramente o cru movimento mecânico, mera mudança de posição, ele é calor e luz, tensão elétrica e magnética, combinação e dissociação, química, vida e, finalmente, consciência” (DN, Notas).
“Não importa quão inumeráveis os seres orgânicos, também, que precisam surgir e desaparecer antes que animais com um cérebro capaz de pensamento desenvolvam-se no seu meio, e por um pequeno intervalo de tempo encontre condições adequadas para a vida, apenas para serem exterminados mais tarde sem misericórdia— nós temos a certeza de que a matéria permanece eternamente a mesma em todas as suas transformações, que nenhum de seus atributos pode jamais ser perdido, e portanto, também, que com a mesma necessidade férrea que ela irá exterminar na terra sua maior criação, a mente pensante, a matéria deverá em algum lugar e num outro tempo, produzi-la novamente” (DN, Prefácio).
Dinâmica histórica: transições entre atratores, revoluções e equilíbrio pontuado
— Pessoal, já os vi antes — disse Chris [Langton]. — Vocês não eram arqueólogos. Eram biólogos. Eram linguistas. Economistas, físicos, todos os tipos de disciplinas. (…) Cada vez que um grupo de pessoas vem aqui para uma dessas conferências, há algum tipo de processo histórico em estudo. Sistemas evolutivos são assim. São processos singulares, de modo que não se podem compará-los diretamente a nada. Você gostaria de repetir o processo, ver o que acontece na segunda vez, na terceira, e assim por diante. Não pode, portanto, é aí que nós entramos[com modelos evolutivos computacionais]. [Lewin, 1994].
Os sistemas mais complexos exibem o que os matemáticos chamam de atratores, estados nos quais o sistema, dependendo de suas propriedades, eventualmente se fixa. Imagine flutuar num mar revolto e perigoso, girando em redor de enseadas. Os redemoinhos se instalam, dependendo da topografia do fundo do mar e da corrente d’água. Eventualmente, você será atraído para um destes vórtices. Você fica aí até que alguma perturbação maior ou mudança no fluxo d’agua o empurre para fora, e então será sugado por outro. Isso, cruamente, é como uma pessoa poderia considerar um sistema dinâmico com atratores múltiplos: tal como uma evolução cultural, com tribos, chiefdoms e Estados equivalentes a atratores. Esse mar mítico teria de ser arrumado de modo que a pobre pessoa que flutua fosse suscetível ao redemoinho um em primeiro lugar, ao qual se sucederia o redemoinho dois e assim por diante. Não haveria necessariamente uma progressão de um para dois, três e quatro. A história está cheia de exemplos de grupos sociais atingindo um nível mais alto de organização social, e então caindo [Lewin, 1994].
Langton— Aí estão todos esses bandos de caçadores lá fora, grupos de indivíduos, cada um capaz de fazer todas as tarefas do grupo. Cada um deles sabe caçar, reunir plantas comestíveis, fazer roupas, e assim por diante. Interagem entre si, especializam-se, e então… Bum!… transição de fase… tudo muda. Há um novo nível de organização social, um nível mais elevado de complexidade. Se você tem populações que interagem, e sua boa forma depende dessa interação, verá períodos de estase entremeados com períodos de mudança. Vemos isso em alguns de nossos modelos evolutivos, portanto, eu esperaria vê-lo aqui também.
Roger Lewin — Neste caso, a história não poderia ser descrita como simplesmente uma coisa depois da outra, poderia?[Lewin, 1994].
A pilha de areia vai de uma configuração a outra, não gradualmente, mas por meio de avalanches catastróficas. Devido à estatística de lei de potência, a maioria dos deslizamentos está associada com as grandes avalanches. As pequenas avalanches, embora sejam mais frequentes, não representam muita coisa. A evolução numa pilha de areia se dá em termos de revoluções, como na visão da História de Karl Marx. As coisas acontecem através de revoluções, n ̃ao gradualmente, precisamente porque sistemas dinâmicos [complexos] estão afinados no estado crítico. Criticalidade auto-organizada é o modo da Natureza fazer transformações enormes em pequenas escalas de tempo [Bak, 1997].
Abaixo algumas passagens de livros de Engels:
“O materialismo moderno vê na História o processo de desenvolvimento da Humanidade, cujas leis dinâmicas é sua missão descobrir. (…) O materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a Natureza tem também a sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem-se de dimensões infinitamente mais grandiosas” (SUSC).
“A história do desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, em um ponto, da história do desenvolvimento da natureza. Nesta — se prescindirmos da ação inversa exercida por sua vez pelos homens sobre a natureza —, os fatores que atuam uns sobre os outros e em cujo jogo se impõe a lei geral, são todos agentes inconscientes e cegos. (…) Em troca, na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, que atuam movidos pela reflexão ou pela paixão, perseguindo determinados fins. Porém esta distinção, por muito importante que seja para a investigação histórica, sobretudo de épocas e acontecimentos isolados, não altera em nada o fato de que o curso da história se rege por leis gerais de caráter interno”.
“Também aqui reina, na superfície e no conjunto, um aparente acaso; raras vezes acontece o que se deseja, e na maioria dos casos os muitos fins propostos se entrecruzam uns com outros e se contradizem, (…). As colisões entre as inumeráveis vontades e atos individuais criam no campo da história um estado de coisas muito análogo ao que impera na natureza inconsciente (…). Por isso, em conjunto, os acontecimentos históricos também parecem presididos pelo azar. Porém, ali onde na superfície das coisas parece reinar a casualidade, esta se encontra sempre governada por leis internas ocultas, e o que se trata é de descobrir estas leis”.
“Portanto, se se quer investigar as forças motrizes que (…) constituem os verdadeiros impulsos supremos da história, não havia que se fixar nos motivos de homens isolados, por muito relevantes que eles sejam, mas sim nos impulsos que movem a grandes massas, a povos em bloco, e, dentro de cada povo, a classes inteiras; e não momentaneamente, em explosões rápidas, como fogo de palha, senão em ações continuadas que se traduzem em grandes mudanças históricas” (LF).
Dinâmica histórica e cosmologia
O modo mais importante em que a cosmologia do século XX difere das cosmologias de Newton ou Aristóteles é que ela é baseada na compreensão de que o universo evoluiu dramaticamente ao longo do tempo. (…) O sucesso do modelo de Big Bang, junto com o fracasso da teoria do Estado Estacionário, nos deixa com um universo cujo estado presente precisa ser entendido como o resultado de processos físicos que ocorreram em tempos anteriores, quando ele era muito diferente. Assim, a cosmologia se tornou uma ciência histórica (…). A noção de evolução não desempenhou até agora um papel central similar na física de partículas elementares. Isto parece não ser muito natural, dado o relacionamento íntimo que está se desenvolvendo entre a física de partículas e a cosmologia. Certamente, precisaríamos nos perguntar o que a noção tradicional de que as leis da física representam verdades a-históricas significa em um universo cuja origem nós podemos literalmente quase ver [Smolin, 1995].
Engels, no livro Dialética da natureza, afirma:
“As leis eternas da Natureza se transformam, cada vez mais, em leis históricas. O fato de que a água se apresente no estado líquido entre 0oe 100oC é uma lei natural eterna, mas para que seja válida, é necessário haver: 1) água; 2) determinada temperatura; 3) pressão normal. Na Lua não há água, no Sol existem apenas seus elementos; para estes corpos celestes a lei, portanto, não existe. (…) No Sol, devido à sua elevada temperatura, as leis de combinação química dos elementos, não prevalecem ou só operam momentaneamente, nos limites da atmosfera solar, dissociando-se os compostos novamente, ao aproximarem-se do Sol. Nas nebulosas, talvez não existam sequer todos aqueles 65 elementos que conhecemos [no final do século XIX], os quais, por sua vez, poderão ser de natureza composta”.
“Por conseguinte, se quisermos falar de leis naturais gerais, uniformemente aplicáveis a todos os corpos — desde as nebulosas até o homem — só nos restam a gravidade e talvez a forma mais geral da teoria referente à transformação da energia, isto é, a teoria mecânica do calor. Mesmo esta teoria, entretanto, se converte (com sua aplicação lógica geral a todos os fenômenos naturais) em uma representação histórica das sucessivas modificações que se verificam num sistema celeste, desde a sua origem até o seu desaparecimento; por conseguinte, numa história em que, a cada etapa, imperam leis diferentes, isto é, diferentes formas fenomênicas do mesmo movimento universal; e, sendo assim, não resta outra coisa, constante e universalmente válida, senão o movimento”. (DN, Notas).
Música, ordem e caos
Osame Kinouchi: Talvez seja uma observação trivial que o que chamamos de música não é nem uma sequência totalmente aleatória de sons (ruído branco) nem uma sequência excessivamente repetitiva e periódica. Se pensarmos no ruído branco como desordem e na sequência periódica como ordem, a heurística de transição ordem-desordem e criticalidade sugere que a música interessante deverá estar relacionada com a borda dessa transição, ou seja, ruído pink (ou 1/f), que tem propriedades fractais (sistemas críticos também possuem propriedades fractais). Com efeito, diversos estudos tentam relacionar características estruturais musicais com ruído 1/f e fractalidade [Voss& Clarke, 1978; Gardner, 1978, Hsü&Hsü, 1991, Manaris et al., 2005]. Embora a questão seja bem mais ampla e mesmo polêmica, é interessante que tais ideias se coadunam com a proposta de que a complexidade surge na borda do caos, do SFI, e de que criatividade surge na interpenetração dos opostos polares (ordem/desordem), de Engels.
Divergências
Talvez a principal diferença entre a abordagem do SFI e o pensamento Engeliano é a de que os pesquisadores ligados a esse Instituto têm um interesse maior na auto-organização e processamento de informação em sistemas descentralizados: ecossistemas, mercados, sociedades de insetos, sistema imunológico, sistema nervoso, morfogênese etc. Ou seja, existe uma ênfase no paradigma de processamento de informação paralelo distribuído, sem controle central, na auto-organização de baixo para cima. Assim, a abordagem do Santa Fe Institute, ao enfatizar uma economia descentralizada e auto-organizada, é talvez mais compatível com visões econômicas liberais [1] ou com ideias anarquistas de auto-gestão. Engels acreditava que os sistemas complexos anárquicos estavam sujeitos a cataclismos (crashs financeiros, ciclos econômicos depressivos e destrutivos etc.) e que o custo em vidas humanas desses processos era muito alto. A solução seria o controle científico do sistema econômico, o controle da complexidade.
Um trecho típico de Engels sobre esta questão é o seguinte, onde fica claro um pensamento não-linear: “Em face da Natureza, como em face da Sociedade, o modo atual de produção só leva em conta o êxito inicial e mais palpável; e, no entanto, muita gente ainda se surpreende pelo fato de que as consequências remotas das atividades assim orientadas seja inteiramente diferentes e, quase sempre, contrárias ao objetivo visado; admiram-se de que a harmonia entre a oferta e a procura se transforme em seu oposto polar, como se verifica no transcurso de cada ciclo decenal da indústria e como também a Alemanha o experimentou, com um pequeno prelúdio, no krash; surpreendem-se de a propriedade privada, fundada no trabalho próprio, se desenvolver necessariamente no sentido da carência de propriedade ente os trabalhadores, enquanto que toda a propriedade se concentra, cada vez mais, nas mãos dos que não trabalham… (DN).
De certa forma, a abordagem do SFI veio dar razão tanto à Adam Smith quanto à Engels. A mão invisível (auto-organização) na economia e na ecologia certamente existe e, no entanto, ela não é necessariamente benéfica para os seres humanos e para as espécies da Biosfera. A auto-organização rumo ao estado crítico, se otimiza a capacidade de adaptação e a criatividade do sistema, também o deixa suscetível a cataclismas econômicos, sociais e ecológicos (reações em cadeia destrutivas na Economia, crashs financeiros, extinções coletivas na Biosfera etc.). Assim, a ideia de uma “mão invisível” realmente presente no mercado, adaptativa, criativa, mas que não otimiza o bem estar coletivo e sendo na verdade perigosamente autodestrutiva, poderia colocar em um novo patamar de discussão as perspectivas liberais e marxistas.
A abordagem de complexidade auto-organizada enfatizada pelo SFI, quando aplicada ao sistema macro-ecológico, também parece fundamentar de algum modo as especulações de Vernadsky [1926], Lovelock [1990] e Margulis [1997, 2000] a respeito da emergência de ciclos geofísico-químico-biológicos autocatalíticos e autorregulados (Gaia) [Ghiralov, 1995]. Este tipo de visão sistêmica centrada na Biosfera, defendida pelos movimentos ambientalistas, contrasta com uma visão antropocêntrica em que a produção econômica é o valor primordial e preocupações ecológicas só teriam sentido na medida em que afetassem o bem-estar da Humanidade. A ênfase Engeliana na importância da maximização da produtividade econômica de alguma forma se refletiu nas políticas industriais do socialismo tecno-burocrático. No entanto, esta talvez seja uma leitura parcial e injusta de Engels. Os seguintes textos refletem tanto um certo antropocentrismo econômico quanto uma perspectiva ecológica mais ampla e cuidadosa: “Os animais, como já indicamos, modificam, por meio de sua atividade, a natureza ambiente, da mesma forma (mas não no mesmo grau) que o homem; e essas transformações por eles produzidas em seu ambiente, atuam, por sua vez sobre os elementos causais, modificando-os. Isso porque, na Natureza, nada acontece isoladamente. Cada ser atua sobre o outro e vice-versa; é justamente porque esquecem esse movimento reflexo e essa influência recíproca, que os nossos naturalistas ficam impossibilitados de ver com clareza as coisas mais simples” (DN, Fromapetoman) [2].
“O animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o Homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o Homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença. Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança. Cada uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas consequências com que podemos contar; mas, em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras consequências. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e noutras partes destruíram os bosques, para obter terra arável, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. (…) Os propagadores da batata, na Europa, não sabiam que, por meio desse tubérculo, estavam difundindo a escrófula. E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o nosso domínio sobre ela consiste apenas na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente (DN, Fromapetoman).
A coincidência com a perspectiva do SFI é literal:
Brian Arthur, economista ligado ao SFI — Uma dessas [visões de mundo] é o ponto de vista de equilíbrio que nós herdamos do Iluminismo — a ideia de que existe uma dualidade entre Humanidade e Natureza, e que existe um equilíbrio natural entre eles que é ótimo para o homem. E se você acredita nessa visão, então você pode falar sobre a otimização de políticas relativas a recursos naturais etc. […] O outro ponto de vista é o da complexidade, no qual basicamente não existe dualidade entre Humanidade e Natureza. Nós somos parte da Natureza. Nós estamos no meio dela. Não existe divisão entre quem age e quem sofre as ações porque nós todos somos parte dessa rede interconectada. Se nós, como humanos, tentamos tomar a ação em nosso favor sem conhecer como o sistema total irá se adaptar — por exemplo, derrubando a floresta tropical — nós colocamos em movimento uma sequência de eventos que irá voltar para nós e formar um padrão diferente para nós nos ajustarmos, tal como uma mudança climática global. (…) É uma visão de mundo que, década após década, está se tornando mais importante no Ocidente – tanto na Ciência como na cultura geral. Muito, muito devagar, tem havido uma mudança gradual de uma visão exploratória da Natureza — Humanidade versus Natureza — para uma abordagem que enfatiza a acomodação mútua entre Homem e Natureza. O que tem acontecido é que nós estamos começando a perder nossa inocência, nossa ingenuidade, a respeito de como o mundo funciona. Na medida em que começamos a entender os sistemas complexos, começamos a entender que fazemos parte de um mundo sempre mutável, interconectado, não linear e caleidoscópico. (…) Assim, qual é o papel do Santa FeInstitute nisso tudo? Certamente não o de se tornar outro think tank de políticas, embora sempre existam algumas pessoas que esperam que ele o seja. Não, a tarefa do Instituto é nos ajudar a olhar este rio sempre mutável e entender o que estamos vendo [Waldrop, 1992].
Entretanto, as modernas ciências da complexidade colocam um pouco mais de ênfase nos limites da predição e do controle dos sistemas complexos tais como a economia. Existe uma atitude de maior humildade frente à complexidade dos sistemas estudados. Atualmente, os pesquisadores se contentam com uma compreensão qualitativa da emergência de certas propriedades e, muitas vezes, chega-se a compreender porque a predição quantitativa não é possível mesmo em princípio (ver por exemplo, o impacto da ideia de caos determinista na Meteorologia, conhecido como efeito borboleta, ou da ideia de criticalidade auto-organizada na previsão de terremotos, ambos justificando a imprevisibilidade dos grandes eventos). Nesse sentido, Engels era demasiadamente otimista, e esse otimismo humanista em relação ao poder da razão e consciência humanas acabou se cristalizando nas ideias de uma sociedade e economia planejadas. O comunismo engelsiano, com seu sonho de uma sociedade racionalmente planejada, seria o apogeu do Iluminismo.
Engels estava até certo ponto certo. Uma sociedade cientificamente planejada pode ser, em certos casos, mais eficiente economicamente. No entanto, no longo prazo, talvez a adaptabilidade seja um fator mais importante do que a simples eficiência. Lembremos que as grandes empresas, na sua tendência à burocratização e organização racional, parecem apresentar uma certa tendência à rigidez e ao envelhecimento: as empresas passam, o mercado fica. Engels queria uma economia gerida como uma grande empresa, lubrificada e racionalmente organizada. Lênin queria que o Partido fosse o CEO da sociedade. A atitude refratária de ambos frente a, por exemplo, ideias anarquistas, é de natureza tecnoburocrática: os trabalhadores não teriam capacidade técnico-administrativa para promover uma auto-gestão eficiente das empresas ou da sociedade.
A grande ironia histórica talvez seja a de que a própria Ciência sugere agora que a estratégia mais racional no longo prazo, tanto para sociedades como para empresas, é uma combinação dialética de organização e desorganização, controle e descentralização, planejamento e adaptação, racionalidade e aparente irracionalidade. O simples laissez-faire, a livre evolução das forças de mercado, levariam o sistema econômico global inevitavelmente para o estado crítico, com sua inevitável instabilidade, sua suscetibilidade a reações em cadeia e crashs. Para se evitar tal instabilidade seria necessário, no mínimo, a existência de mecanismos de controle de fluxos de capital em escala global. Tais controles talvez fossem capazes de produzir um sistema quasi-crítico: um sistema econômico que possui a mesma flexibilidade de um sistema crítico sem apresentar necessariamente bolhas, crashs e reações em cadeia globais autodestrutivas.
A questão da globalização de mercados envolve porém outro problema pouco analisado: embora ecossistemas sejam vistos como paradigmas de sistemas distribuídos adaptativos e evolucionários, e sejam muitas vezes tomados como metáforas para se pensar os mercados, devemos lembrar que, em ecossistemas ricos e criativos (como as florestas tropicais e os recifes de coral), as espécies locais nunca estão em competição direta com espécies de ecossistemas similares: o puma americano e o tigre asiático não competem diretamente pelos mesmos recursos, e um deles inevitavelmente seria extinto se isso acontecesse. No jargão da Física Estatística, esses sistemas autorregulados são “espacialmente extensos”. Simplesmente não existe experiência prévia na Biosfera de sistemas fortemente interconectados, em que distâncias espaciais sejam abolidas. É bastante provável que sistemas como mercados globalizados impliquem em grande diminuição de diversidade e formação de monopólios, ao mesmo tempo em que ocorre um aumento de velocidade de propagação de perturbações e consequente instabilidade.
Já a questão da distribuição desigual de renda (e, principalmente, de poder) na forma de leis de potência (Lei de Pareto) não é solúvel dentro do quadro capitalista, uma vez que os mecanismos concentradores detetados por Marx, Engels e Pareto (curiosamente chamado de Engels da burguesia), a saber, processos multiplicativos de acumulação de capital, são inerentes à esse tipo de sistema e só poderiam ser realmente superados em sistemas econômicos alternativos. Entretanto, é de se esperar que os sistemas mais adaptativos, quaisquer que sejam eles, continuem a ser sistemas descentralizados, conflitivos e dialéticos: sistemas pretensamente harmoniosos de convivência humana serão sempre autoritários, por privilegiarem o polo da ordem e reprimir o polo da desordem. Fica aqui a sugestão das ciências da complexidade e da Dialética: a sociedade humana mais robusta a longo prazo é aquela que se situa perto, mas não excessivamente perto, da borda do caos.
*Osame Kinouchi é professor do Departamento de Física da FFCLRP-USP.
Para ler a primeira parte acesse: https://aterraeredonda.com.br/mudanca-endogena/
Para ler a segunda parte acesse: https://aterraeredonda.com.br/engels-e-a-complexidade-ii/
Referências
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[Voss & Clarke, 1978; Gardner, 1978, Hsü&Hsü, 1991, Manaris et al., 2005]
Notas
[1] O pensamento liberal muitas vezes cai na concepção individualista da sociedade, ou seja, na de que a sociedade é simplesmente a superposição (linear) de comportamentos individuais. Certamente esta concepção não corresponde à perspectiva não-linear e emergentista compartilhada pelas ciências da complexidade e a dialética engelsiana.
[2] O título completo do capítulo é The part played by labour in the transition from ape to man.