Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

Annika Elisabeth von Hausswolff, O Fotógrafo, 2015
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Por OSAME KINOUCHI*

Comentário sobre o filme dirigido por Daniel Scheinert & Daniel Kwan

Depois que o filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo foi indicado a onze Oscars e levou sete estatuetas, incluindo melhor filme, melhor direção, melhor roteiro e melhor atriz, vários críticos e comentaristas de jornal reclamaram que o filme não merecia tanto, e mesmo que seria um filme confuso, um besteirol, uma palhaçada. Entre os leitores comentaristas, encontram-se inúmeros que descrevem assim sua experiência: “Eu comecei a assistir e parei depois de vinte minutos”, ou “Considerar isso um bom filme é ter comportamento de manada”. Em geral estes últimos também acrescentam que não viram o filme até o final.

Esta atitude é certamente inusitada, seria como dizer que “não vi e não gostei”, o que não equivale a “não gostei do que vi”. Talvez se origine do público que não gosta de filmes de super-heróis, onde o conceito de Multiverso já foi usado. Mas o filme tem despertado paixões tão fortes que o público ficou polarizado, de um lado uma base de fãs e de outro lado pessoas enojadas que mesmo fazem comentário de ódio nas redes sociais. Isso certamente é uma anomalia, dado que o filme ganhou 165 prêmios ao longo da temporada de 2022-2023, tornando-o o filme mais premiado da história do cinema, o segundo lugar obtendo 111 prêmios. Será que todos esses críticos e juízes erraram e o corajoso crítico de internet é que está correto?

Isso pode ser mais um sintoma de nossos tempos pós-modernos fascistas, onde o homem comum acha que sua opinião é tão boa senão superior à dos especialistas, que seriam uma elite que não entende de nada afinal. Daí vai um passo para se elaborar mostras de arte degenerada, ou se queimar livros perturbadores, por exemplo.

Defenderei aqui que existe um paralelo entre arte moderna e contemporânea, que o homem de bem não entende, e o filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Não vou me estender em comparações, mas colocaria a reação negativa ao filme no mesmo contexto da reação ao cubismo de Picasso, à arte pop de Warhol e, naquilo que o filme é besteirol ofensivo, à reação frente ao mictório de Duchamp.

O que destaca o filme como arte é romper barreiras e paradigmas. O mictório de Duchamp é arte por ser a primeira proposta do tipo. Não haveria sentido em se criar o segundo ou terceiro mictório. O filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo seria assim um exemplo de Arte Pop e tem pelo menos dois lados: uma reflexão filosófica sobre o valor do ser humano no Cosmos, e o como deve ser a luta humana na vida, a famosa pergunta filosófica sobre como devo viver. Essas duas reflexões serão feitas usando-se elementos de nossa cultura pop, a saber, lutas orientais coreografadas e o conceito de Multiverso (atenção, algumas pessoas falam Multiversos, mas essa palavra não tem plural: o Multiverso é o conjunto de todos os possíveis Universos).

Após enfrentar várias lutas coreografadas ao longo do filme, que servem para ilustrar a dureza da luta humana, a personagem Evelyn Wang (Michelle Yeoh) cai em si em um momento crucial e adota o lema de seu marido Waymond, dado em outro universo: você deve lutar, mas com gentileza. Isso lembra a famosa frase de Che Guevara: “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás“. Evelyn parte para a briga com o poder dessa gentileza, e os adversários vão se enfraquecendo, mudando e mesmo tornando-se seus aliados.

O Multiverso entra em um questionamento ainda mais importante. Na Idade Média a Terra era o centro do Universo, e o ser humano era por isso importante e centro da criação. Com o heliocentrismo, a Terra se torna apenas um planeta minúsculo, entre os seis conhecidos na época, e o sol se torna o centro do universo. Em seguida, com o reconhecimento de que o sol era apenas mais uma estrela, o ser humano se sentiu ainda mais diminuído.

Isso se torna dramático na década de vinte do século XX, quando Lemaître e Hubble reconhecem que inúmeras nebulosas eram na verdade galáxias bem afastadas de nossa própria, a Via Láctea. Nossa galáxia tem bilhões de estrelas, e o Universo tem bilhões de galáxias. O Universo observável tem 13,8 bilhões de anos e 93 bilhões de anos-luz de diâmetro. Comparado com isso, o que são o tamanho típico de um ser humano e sua expectativa de vida? Não seriam insignificantes? O que importam as ciência humanas se a humanidade é menor que um grão de areia na galáxia?

Esta é a pergunta central do filme, feita em uma cena que os críticos preguiçosos não chegaram a assistir (a cena das duas pedras, mãe e filha, conversando). A questão posta é: agora os cosmólogos estão se perguntando se não existiria um Multiverso com infinitos Universos (a maior parte deles sem vida, como o planeta das pedras). Será que a cada avanço do conhecimento cosmológico não nos tornamos menores e mais insignificantes? Para que viver se nossa existência é como um piscar de olhos, a chama de uma vela que se apaga. Vale a pena viver?

A personagem Joy, filha de Evelyn, conclui que não e, tomada pelo niilismo e transformada em um ser poderoso, começa a destruir o Multiverso. Essa destruição é simbolizada pela rosquinha, uma alegoria às fotos recentes de buracos negros que engolem a matéria vizinha. Mas, no final do filme, com sua luta gentil e amorosa, Evelyn reconquista Joy e ambas concluem que vale a pena amar e viver.

Como pode ser isso? Neste momento precisamos apelar para a física, a biologia e a ciências humanas. O que acontece é que o ser humano é sim minúsculo frente ao Universo (embora seja enorme quando comparado com a escala fundamental da física, o comprimento de Plank). Seu tempo de vida também é efêmero (se bem que também muito grande quando comparado com o tempo de Plank). Mas nessas questões, tamanho não é documento. Isso porque o ser humano, junto com os outros seres da biosfera, é um exemplo de um sistema hipercomplexo.

Apenas para ficar em um exemplo, o cérebro humano tem em média 83 bilhões de neurônios, cada um deles com em média dez mil sinapses (conexões). Essa rede hipercomplexa controla nosso corpo, tem memórias, tem emoções como o amor, e pensa. Galáxias tem o mesmo número de estrelas (200 bilhões) mas não consta que pensem ou contemplem o Universo. Isso porque lhes falta as conexões entre as estrelas, algo impedido dado a velocidade limite da luz.

Como somos a única civilização estelar conhecida, então estamos por enquanto no topo da escala de complexidade. Não somos insignificantes porque, ao contrário das galáxias e dos universos, podemos pensar e amar. Essa é a mensagem do filme.

Existe, é claro, um porém: a sensação de insignificância pode voltar se encontrarmos civilizações muito mais tecnológicas do que nós. Mas, ao defendermos os direitos dos povos originários, já estamos nos treinando para uma era em que defenderemos nossos direitos de existir frente a um invasor interestelar ou talvez uma ONU galáctica. Mas aí já é outro tipo de ficção científica…

*Osame Kinouchi é professor no Departamento de Física da FFCLRP–USP.

É responsável pelo portal Anel de Mídias Científicas (anelciencia.com). Autor, de O Beijo de Juliana: quatro físicos teóricos conversam sobre crianças, ciências da complexidade, biologia, política, religião e futebol…

Referência


Tudo em todo lugar ao mesmo tempo (Everything Everywhere All at Once)
EUA, 2022, 139 minutos.
Direção: Daniel Scheinert & Daniel Kwan
Elenco: Michelle Yeoh, Yeoh, Stephanie Hsu, Ke Huy Quan, James Hong, Jamie Lee Curtis, Tallie Medel.


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