E. P. Thompson no Brasil

Imagem: Raphael Brasileiro
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Por ERIK CHICONELLI GOMES*

Thompson forneceu um framework teórico e metodológico para historiadores brasileiros explorarem a formação e a experiência das classes trabalhadoras no Brasil

A abordagem historiográfica de Edward Palmer Thompson, conhecida como “história vista de baixo”, revolucionou a maneira de compreender o papel dos indivíduos comuns na construção da história. Nascido em 1924, E. P. Thompson desenvolveu uma metodologia que se desviava do enfoque tradicional nos grandes homens e eventos políticos para destacar as ações e experiências das pessoas comuns. Esse movimento representou uma transformação política e metodológica na historiografia, buscando democratizar a agência política, social e cultural em um período marcado pela Guerra Fria e seus impulsos autoritários.

E. P. Thompson é mais conhecido por sua obra The making of the english working class (1963), onde explora a formação da classe trabalhadora inglesa durante o final do século XVIII e início do XIX. Embora seu foco seja restrito geograficamente, seu impacto foi global, legitimando uma visão da história que valoriza as experiências e lutas dos trabalhadores comuns. Sua metodologia influenciou profundamente a historiografia, incluindo a brasileira, ao fornecer um modelo para explorar a história das classes subalternas.

A importância de E. P. Thompson para a historiografia brasileira é imensa. Ele forneceu um framework teórico e metodológico para historiadores brasileiros explorarem a formação e a experiência das classes trabalhadoras no Brasil. Isso é evidente nas obras de autores como Luiz Antônio Machado da Silva, que investigam a formação da classe trabalhadora no contexto urbano brasileiro, e no trabalho de José Murilo de Carvalho, que estuda a construção da cidadania no Brasil a partir das lutas populares.

Na obra de E. P. Thompson, a ideia de “experiência” é central. Ele argumenta que as experiências dos trabalhadores não podem ser compreendidas apenas através das categorias econômicas tradicionais do marxismo, mas devem ser entendidas como vivências complexas que envolvem aspectos culturais, emocionais e sociais. Essa abordagem teve um impacto significativo na historiografia brasileira, incentivando os historiadores a olharem para além das estruturas econômicas e a considerarem as dimensões subjetivas e culturais da vida das classes trabalhadoras.

O conceito de “economia moral”, introduzido por E. P. Thompson, também encontrou eco na historiografia brasileira. A “economia moral” refere-se às expectativas e normas sociais que regulam o comportamento econômico, especialmente em tempos de crise. Historiadores brasileiros, como Luiz Felipe de Alencastro, têm utilizado esse conceito para examinar as formas como as populações subalternas no Brasil colonial e imperial reagiram a mudanças econômicas e políticas, muitas vezes através de revoltas e movimentos sociais que refletiam uma visão distinta de justiça econômica.

A abordagem de E. P. Thompson também influenciou os estudos sobre escravidão no Brasil. Pesquisadores como Eduardo França Paiva têm explorado a “história vista de baixo” dos escravos e dos ex-escravos, examinando suas formas de resistência e agência. A partir da perspectiva de E. P. Thompson, esses estudos destacam como os escravos não eram meramente vítimas passivas, mas agentes ativos que moldavam suas próprias vidas e, de certa forma, a própria estrutura da sociedade brasileira.

O impacto de E. P. Thompson pode ser percebido também na obra de Florestan Fernandes, que, apesar de seu foco inicial na sociologia, adotou uma perspectiva crítica similar ao examinar as relações raciais e a estrutura de classe no Brasil. Florestan Fernandes, como E. P. Thompson, buscou entender como as classes subalternas moldaram e foram moldadas pelos processos históricos, destacando a resistência e a agência desses grupos na construção da sociedade brasileira.

Outro autor brasileiro influenciado pela “história vista de baixo” de E. P. Thompson é João José Reis, cuja obra Rebelião escrava no Brasil (1986) explora a revolta dos malês na Bahia em 1835. Reis utiliza uma abordagem que privilegia a experiência dos escravos africanos e seus descendentes, destacando suas lutas e resistências contra a opressão escravocrata. Esse enfoque dialoga diretamente com a metodologia de E. P. Thompson, ao dar voz e visibilidade aos atores históricos tradicionalmente marginalizados.

A perspectiva de E. P. Thompson sobre a importância da consciência de classe também teve repercussões na historiografia brasileira. Em The making of the english working class, E. P. Thompson argumenta que a classe trabalhadora não é simplesmente uma categoria econômica, mas uma comunidade com uma consciência própria, formada através de experiências compartilhadas de exploração e resistência. Esse enfoque tem sido adotado por historiadores brasileiros para explorar como a consciência de classe se desenvolveu entre os trabalhadores urbanos e rurais no Brasil, influenciando movimentos sociais e políticos.

A influência de E. P. Thompson na historiografia brasileira também se manifesta na obra de Sidney Chalhoub, especialmente em Trabalho, lar e botequim (1986), onde Chalhoub examina as condições de vida e trabalho dos trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro no final do século XIX. Assim como E. P. Thompson, Sidney Chalhoub enfatiza a importância da experiência cotidiana e da cultura dos trabalhadores, revelando a complexidade de suas vidas e suas estratégias de resistência.

O estudo das festas populares, do carnaval e de outras manifestações culturais no Brasil também foi enriquecido pela abordagem de E. P. Thompson. Historiadores como Nicolau Sevcenko utilizaram as ideias de E. P. Thompson para examinar como essas manifestações servem como formas de resistência cultural e política, desafiando as normas e as estruturas de poder estabelecidas. O carnaval, por exemplo, é visto não apenas como uma celebração, mas como um espaço de contestação e reinvenção social.

Outro aspecto importante da influência de E. P. Thompson é sua abordagem crítica à narrativa histórica dominante. Ele insistiu na necessidade de questionar as narrativas oficiais e de buscar as histórias ocultas dos marginalizados. Essa perspectiva crítica foi crucial para historiadores brasileiros que desafiaram as narrativas tradicionais da história brasileira, revelando as vozes e as experiências das populações indígenas, afro-brasileiras e outras comunidades subalternas.

Em um contexto mais amplo, a perspectiva crítica de E. P.  Thompson pode ser vista na obra de Caio Prado Jr., especialmente em A Formação do Brasil Contemporâneo (1942). Caio Prado Jr., embora anterior a Thompson, compartilha a visão de que a história deve ser compreendida a partir das experiências das classes subalternas e de sua interação com as estruturas de poder. Sua análise marxista da formação social brasileira complementa a abordagem de E. P. Thompson, oferecendo uma interpretação crítica das relações de classe e poder no Brasil.

A obra de E. P. Thompson não apenas ofereceu novas ferramentas analíticas, mas também inspirou uma geração de historiadores brasileiros a questionar narrativas tradicionais e a explorar a rica tapeçaria da história das classes subalternas. Seu legado é visível na contínua produção de trabalhos que buscam desenterrar as histórias ocultas dos marginalizados, fornecendo uma compreensão mais completa e justa do passado.

E. P. Thompson também teve uma influência indireta sobre o campo da antropologia no Brasil, especialmente nas obras de Gilberto Freyre. Embora Freyre e Thompson tenham abordagens diferentes, ambos compartilham um interesse em entender as dinâmicas sociais a partir das experiências cotidianas das pessoas comuns. Em Casa-Grande & Senzala (1933), Gilberto Freyre examina as relações entre senhores e escravos no Brasil colonial, destacando a complexidade e a ambivalência dessas interações, algo que ressoa com a sensibilidade de E. P. Thompson para com as “causas perdidas” e as histórias não contadas.

A importância de E. P. Thompson para a historiografia brasileira reside em sua capacidade de mostrar que a história é feita não apenas por grandes líderes e eventos, mas também pelas ações cotidianas de pessoas comuns. Sua abordagem metodológica continua a influenciar estudos que buscam compreender as raízes históricas das desigualdades sociais e a resistência das classes subalternas no Brasil.

Finalmente, a abordagem interdisciplinar de E. P. Thompson, que integrava história, sociologia, antropologia e literatura, ofereceu um modelo para os historiadores brasileiros adotarem uma perspectiva mais holística em seus estudos. Essa abordagem permitiu uma compreensão mais rica e multifacetada da sociedade brasileira, valorizando a complexidade das interações sociais e culturais.

A obra de E.P. Thompson continua a ser uma fonte de inspiração e uma ferramenta metodológica vital para os historiadores brasileiros. Seu compromisso com a “história vista de baixo” e sua insistência em dar voz aos marginalizados ressoam profundamente em um país marcado por profundas desigualdades sociais e históricas. Através de seu legado, Thompson ajudou a construir uma historiografia mais democrática, crítica e inclusiva no Brasil, que continua a evoluir e a enriquecer nossa compreensão do passado e do presente.

Por fim, a “história vista de baixo” de E. P. Thompson oferece uma lente crítica para examinar o papel do Estado e das instituições na perpetuação das desigualdades sociais. Esse enfoque é particularmente relevante para historiadores brasileiros que investigam as políticas públicas e a formação das instituições no Brasil.

*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.

Referências


ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Ática, 1978.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime de Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933.

GOMES, Erik Chiconelli. O Conselho Nacional do Trabalho: uma análise de sua relação com o movimento operário da época e a imprensa. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Sociabilidade Violenta: Por uma Interpretação da Criminalidade Contemporânea no Brasil Urbano. São Paulo: Appris, 2018.

PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

PRADO JR., Caio. A Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1942.

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

SEVCENKO, Nicolau. Carnaval, Malandros e Heróis: Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

THOMPSON, Edward Palmer. The Making of the English Working Class. New York: Vintage Books, 1963.


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