7 de outubro de 2023

Imagem: Brett Sayles
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SALEM NASSER*

Face às políticas israelenses e ao silêncio, se não cumplicidade total, por parte do Ocidente, todos os palestinos, e entre eles todos os movimentos de resistência, enfrentam uma luta contra o tempo

O dia 7 de outubro de 2023 ficará para a história como um dos marcos mais dramáticos e importantes do conflito palestino-israelense. Algo sísmico ocorreu e pode trazer enormes consequências.

Uma pergunta que ouvi sobre o que está acontecendo é: por quê? por que agora?

Deixe-me, primeiro, analisar os significados possíveis, talvez combinados, de tal questão.

A primeira suposição subjacente, que pode ou não existir e que pode ou não ser percebida por quem pergunta, é que as ações do Hamas não respondiam a qualquer provocação imediata, pelo que dificilmente poderiam ser compreendidas.

Um segundo elemento da questão, diferente de uma provocação imediata, diz respeito à existência de “um motivo” ou de “motivos” para a operação.

As razões, por sua vez, são diferentes da “justificação”, que pode dizer respeito aos argumentos apresentados para justificar a ação e/ou para dizer se a ação pode ser vista como objetivamente justificada, ou seja, se é uma ação legítima.

Por fim, a pergunta pode conter uma investigação sobre os objetivos da ação, o que se espera dela.

Um bom ponto de partida, pensei, seria observar a forma como o Hamas apresenta as suas razões, justificações e objetivos. Talvez seja uma cautela desnecessária, mas quero deixar claro que, ao tentar esclarecer como eles (o Hamas) apresentam a sua causa, isso não significa necessariamente que eu os subscreva. Este não é o momento para que eu me ponha a julgar; esta hora chegará em breve.

Começo aqui porque, no âmbito daquilo que venho chamando de “cegueira seletiva”, raramente conseguimos saber, no Ocidente, o que “os outros” dizem; não temos acesso ao que, por exemplo, os líderes do Hamas dizem ou declaram, ao mesmo tempo que temos ampla informação sobre o que as autoridades israelenses e ocidentais expressam. Mais do que isso, mal conhecemos os nomes de pessoas de enorme importância, pessoas que, por exemplo, planejam, executam e anunciam operações como esta que começou há dois dias.

A pessoa que anunciou a operação e apresentou ao mundo as razões sobre as quais o Hamas a baseava é um homem chamado Mohammad El-Daif ou, noutra ortografia, Mohammed Deif. Apesar de ser praticamente desconhecido do público em geral, ele é o comandante supremo das forças militares do Hamas.

Nascido num campo de refugiados em Gaza, diz-se que sobreviveu a cerca de vinte tentativas de assassinato por parte de Israel. Numa dessas ocasiões, em 2014, Israel matou a sua esposa, o seu filho de 7 meses e a sua filha de 3 anos.

Ao fazer um discurso de 10 minutos em 7 de outubro, para anunciar a operação Al Aqsa Flood, Al-Daif falou sobre o contínuo desrespeito ao Direito Internacional, incluindo o direito dos Direitos Humanos, por parte de Israel; a sua recusa em dar ouvidos aos avisos; a inação da comunidade internacional; os crimes cometidos contra os lugares santos e o povo; os recentes casos de colonos que invadiram a mesquita de Al Aqsa; a expulsão em curso dos palestinianos de Jerusalém e da Cisjordânia; os maus-tratos infligidos aos prisioneiros palestinianos, etc.

Um argumento central, que contém a justificação subjacente mais importante (de acordo com o Hamas, mais uma vez) para a operação é que todas as ações israelenses visam estabelecer fatos consumados no terreno, a fim de tornar toda Jerusalém uma cidade exclusivamente judaica, para eventualmente destruir a Mesquita Al Aqsa para a reconstrução do Templo. Pode ser importante salientar aqui que estas intenções não são mantidas em segredo pela maioria dos líderes e membros do governo israelense. Portanto, há acordo entre eles e o Hamas sobre esta questão.

Assim, no discurso de Al-Daif há uma sugestão sobre qual seria a razão imediata para a ação, que resultaria das provocações recentes – as invasões da Mesquita de Al Aqsa, a violência contra os crentes muçulmanos e cristãos, a violência contra os prisioneiros palestinos…

Mas é evidente que a operação Al Aqsa Flood não poderia ser apenas uma reação espontânea e imediata a ofensas insuportáveis. A operação é de tal natureza e escala que certamente exigiu anos de planejamento. Assim, mesmo que as ofensas sejam reais e mesmo que sejam insuportáveis, podem ter proporcionado a oportunidade para uma ação que se pensava ser necessária e inevitável.

Qual é então a verdadeira razão?

Face às políticas israelenses e ao silêncio, se não cumplicidade total, por parte do Ocidente, todos os palestinos, e entre eles todos os movimentos de resistência, enfrentam uma luta contra o tempo!

Deixe-me desenvolver um pouco mais a ideia, e aqui sou eu falando. A solução de dois Estados está morta há muito tempo. Todos podem ver isso. As pessoas deveriam enterrar o corpo e seguir para uma solução diferente. Nesta fase, quem ainda fala da solução acordada internacionalmente, de dois Estados vivendo lado a lado, em paz, ou está tentando ignorar a realidade para não lidar com ela, ou é cúmplice do projeto israelense de estabelecer um Grande Israel (aliás, se alguém não acredita que tal projeto exista, basta olhar para o mapa do Novo Oriente Médio apresentado por Netanyahu perante a Assembleia Geral da ONU há poucos dias).

Israel e os seus apoiadores ocidentais, os Estados Unidos na linha da frente, ao impedirem a implementação da solução de dois Estados, criaram uma situação de corrida para o fundo do poço, na qual, à ameaça existencial imposta aos palestinos corresponderá necessariamente uma ameaça existencial para Israel (pelo menos como um Estado exclusivamente judeu).

Os palestinos foram empurrados contra uma parede: ou aceitam continuar a ser expulsos das suas terras, aceitam renunciar a Jerusalém como a sua capital nacional e religiosa, aceitam que lhe seja negado um Estado próprio, aceitam abandonar os direitos de milhões de refugiados, ou devem lutar.

E lutar contra o tempo, porque o projeto israelense está sendo implementado neste mesmo momento.

Os movimentos de resistência palestinos – e agora, para aqueles que tantas vezes perguntam, torna-se claro porque é que afirmam ser de “resistência” e porque é que os chamo assim – têm uma compreensão clara do fato de que o seu conflito é de longa duração. Este entendimento é comum a todas as forças que, na região, se unem sob a bandeira da oposição a Israel, aos Estados Unidos e à agenda imperial deste último.

Neste sentido, nas últimas décadas, estes movimentos desenvolveram gradualmente novas capacidades militares, de inteligência, estratégicas e de segurança e diminuíram o fosso entre a sua força e a de Israel.

A operação Al Aqsa Flood inaugura uma nova fase neste conflito de longa duração. Por enquanto, esta pode ser resumida da seguinte forma: i) há a necessidade de parar o relógio na implementação por parte de Israel do seu projeto de ocupação, colonização e tomada de Jerusalém; ii) existe um cenário internacional em mudança, em que o poder dos Estados Unidos está sendo desafiado e a Europa está enfraquecida, nomeadamente na Ucrânia; iii) existe uma divisão interna sem precedentes na sociedade israelense, uma crise de identidade e uma desordem política; iv) o plano de levar a luta para a frente interna de Israel, há muito em preparação, precisava ser testado – neste caso, o Hamas era considerado menos capaz de levar a cabo tal coisa do que o Hezbollah, por exemplo – e ver como Israel e os EUA reagiriam, tirando, portanto, lições para o futuro; v) Bem-sucedida que foi, a operação revelou um exército israelense mal preparado e uma frente interna muito frágil.

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, Direito global: normas e suas relações (Alamedina). [https://amzn.to/3s3s64E]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre de Lima Castro Tranjan Berenice Bento Leonardo Boff Atilio A. Boron José Luís Fiori Paulo Nogueira Batista Jr Antonino Infranca Daniel Costa Marilia Pacheco Fiorillo José Costa Júnior Thomas Piketty José Geraldo Couto Liszt Vieira Flávio Aguiar Luís Fernando Vitagliano Osvaldo Coggiola Luiz Eduardo Soares Heraldo Campos Tadeu Valadares Chico Whitaker Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Samuel Kilsztajn Armando Boito Andrew Korybko Plínio de Arruda Sampaio Jr. Anselm Jappe Salem Nasser Rafael R. Ioris Eleonora Albano Daniel Afonso da Silva Ricardo Antunes Otaviano Helene João Sette Whitaker Ferreira Slavoj Žižek João Carlos Loebens Milton Pinheiro Eleutério F. S. Prado Sergio Amadeu da Silveira Chico Alencar Ronald León Núñez Francisco Pereira de Farias Renato Dagnino Matheus Silveira de Souza Priscila Figueiredo Eugênio Trivinho Benicio Viero Schmidt Jean Pierre Chauvin Luiz Roberto Alves Lucas Fiaschetti Estevez Dênis de Moraes Flávio R. Kothe Ari Marcelo Solon Tarso Genro Paulo Martins Andrés del Río Manchetômetro Igor Felippe Santos Sandra Bitencourt André Márcio Neves Soares Tales Ab'Sáber Paulo Fernandes Silveira João Carlos Salles Jorge Luiz Souto Maior Vanderlei Tenório Everaldo de Oliveira Andrade Eduardo Borges Bento Prado Jr. Gabriel Cohn Afrânio Catani Leda Maria Paulani Luciano Nascimento Julian Rodrigues Dennis Oliveira Mariarosaria Fabris Michel Goulart da Silva Luis Felipe Miguel Celso Favaretto Jean Marc Von Der Weid Boaventura de Sousa Santos Gilberto Maringoni Marilena Chauí José Machado Moita Neto Maria Rita Kehl João Adolfo Hansen Luiz Werneck Vianna Luiz Renato Martins Érico Andrade Carlos Tautz Claudio Katz Gilberto Lopes Fernando Nogueira da Costa Yuri Martins-Fontes Luiz Carlos Bresser-Pereira José Raimundo Trindade Luiz Marques Gerson Almeida José Micaelson Lacerda Morais Eliziário Andrade João Paulo Ayub Fonseca Juarez Guimarães Henry Burnett Airton Paschoa Kátia Gerab Baggio Ricardo Musse Elias Jabbour Antônio Sales Rios Neto Mário Maestri Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento Marcus Ianoni Annateresa Fabris Bruno Fabricio Alcebino da Silva Rodrigo de Faria Bruno Machado Ronald Rocha Daniel Brazil Denilson Cordeiro Vinício Carrilho Martinez Alysson Leandro Mascaro Luiz Bernardo Pericás Remy José Fontana Marcos Aurélio da Silva Alexandre Aragão de Albuquerque José Dirceu Caio Bugiato Valerio Arcary Francisco Fernandes Ladeira Marjorie C. Marona Walnice Nogueira Galvão Paulo Sérgio Pinheiro Carla Teixeira Lincoln Secco Fernão Pessoa Ramos Ladislau Dowbor João Feres Júnior Antonio Martins Rubens Pinto Lyra André Singer Manuel Domingos Neto Marcelo Módolo Henri Acselrad Ricardo Fabbrini Jorge Branco Michael Löwy João Lanari Bo Marcos Silva Vladimir Safatle Paulo Capel Narvai Bernardo Ricupero Ricardo Abramovay Fábio Konder Comparato Ronaldo Tadeu de Souza Michael Roberts Valerio Arcary Marcelo Guimarães Lima Celso Frederico Lorenzo Vitral Eugênio Bucci Leonardo Avritzer Francisco de Oliveira Barros Júnior

NOVAS PUBLICAÇÕES