Por EDGARD PEREIRA*
Das páginas do “Boletim de Ariel” ao “Letras e Artes”, desdobra-se um mapa vivo da inteligência brasileira, onde o debate entre engajamento social e introspecção estética moldou a consciência crítica de uma geração
1.
Os periódicos culturais têm grande importância no processo civilizacional: são lugares em que escritores e artistas discutem e debatem os nossos problemas e tentam compreender as nossas contradições e horizontes enquanto nação. Na evolução da sociedade, alguns ciclos se revelam mais aparelhados que outros no esforço de colaborar para impulsionar grandes mudanças e ajustes de rumos. Se nos detivermos a abarcar os últimos cem anos no retrovisor, talvez pudéssemos vislumbrar alguns desses momentos de reflexão positiva e produção de resultados concretos de desenvolvimento e cultura: a Semana de Arte Moderna (1922), os anos de 1930 a 1950, o período da gestão Juscelino Kubistchek, os anos de 1990 a 2010. Ao segundo ciclo me dirijo, nesta travessia. Torçamos para que nossa época não fique estigmatizada apenas pela odiosa polarização e pelo fanatismo político.
O objetivo consiste em revisitar alguns territórios de circulação e excelência de ideias, nos anos de 1930 a 1950 do século passado, tendo em conta esboçar um recorte dos principais periódicos literários da época. Produtos de uma história e de uma sociedade, os periódicos focados trazem em seu bojo os principais debates do contexto. Compreender que os sintomas, os fatos, as ações transformadoras possuem mais de dois lados constitui um trabalho insano para o político, não para o intelectual. Cumpre, ainda, não ignorar a energia criativa e libertária exalada após os períodos de governos autoritários: o ano de 1945, após a ditadura de Vargas; 1990, cinco anos após o declínio formal da ditadura militar (1964-1985).
De vez em quando, impõe-se um registro de data. São anotações, citações de obras, reflexões a partir de evento ou livro consultado, fichas temáticas, alusões literárias que se foram compilando à deriva de acontecimentos e efemérides. O valor de algumas dessas notas esfumou-se na voragem do tempo, o de outras fica condicionada à premência de alguma circunstância. Outra pessoa que fizesse o mesmo percurso, lesse os mesmos textos, na certa seguiria outra rota, arquivaria outras matérias.
Serão compulsados, de forma panorâmica, três periódicos ou acervos: o Boletim de Ariel (1931-1939), o Dom Casmurro (1937-1946); o Letras e Artes (1946-1954).
2.
O Boletim de Ariel[1]circulou na imprensa carioca na década de 1930, como revista mensal. Rotulado como“mensário crítico bibliográfico”,retornou, na década de 70, ressuscitado por Afrânio Coutinho, embora sem o impacto e a relevância da primeira fase. Fundado por Gastão Cruls, manteve-se, na primeira fase, sob a sua Direção, tendo como Redator-chefe Agripino Grieco. O frontispício assegura os eixos principais – Literatura, Artes, Ciências – numa plataforma abrangente, tendo colaborações em diversas áreas, tais como Direito, História, Ciências Humanas e Políticas, Espetáculos (teatro, música e cinema); o tema predominante, no entanto, é Literatura. Marques Rebelo assina quase todas as matérias sobre música popular e discos.
O Boletim de Ariel divulgava, então, os principais lançamentos de livros, num leque variado de editoras, a Ariel, a Schmidt, a Civilização Brasileira, a Cia. Ed. Nacional, a Globo, a José Olympio. Cosmopolita, dedicava colunas para as letras francesas, italianas e inglesas, notadamente nos primeiros números; alguns artigos se publicavam em francês, como o discurso de saudação a S. Zweig, proferido por Mario Pimentel Brandão (out. 1936). Não era ilustrado, mas a capa postava uma figuração alada masculina, uma versão idealizada do mito de Ariel, de procedência shakespeareana. O forte do acervo são as resenhas e pequenos ensaios abordando grandes nomes; nos últimos anos acolheu produção ficcional.
Nos números iniciais, alinha-se com o pensamento de esquerda, sem perder a abertura a outras vertentes, abrigando os conservadores católicos e simpatizantes do fascismo. A pluralidade ideológica pode ser observada na abertura indiscriminada: aceita colaboração tanto dos marxistas Astrogildo Pereira e Mário Pedrosa, como dos simpatizantes do fascismo Oliveira Viana e Plínio Salgado (o primeiro defende a arianização do Brasil, o segundo tem seu livro O que é integralismo divulgado).
Dentre as polêmicas, o debate conceitual sobre o romance proletário dominou várias edições, redobrado no âmbito do lançamento do romance Cacau (1933), de Jorge Amado. Antes, em 1932, Heitor Marçal havia dado o pontapé inicial, em torno do tema, no artigo “Literatura proletária”: assevera que o principal traço do gênero era a representação da vida miserável de trabalhadores, creditando sua expansão aos esforços da ‘Associação Russa dos Escritores Proletários’ [2]. Alberto Passos Guimarães, embora reconhecendo que o estilo do romance proletário ainda não estivesse definido, caracteriza-o como “arte anti-burguesa do período da luta de classes”; por expressar as contradições sociais e estimular a luta entre as classes, o livroera, sim, um romance proletário [3]. Para Arnaldo Tabayá, ao se posicionar como “um estímulo ao sentimento de revolta”, o romance de Jorge Amado era merecedor de elogios [4]. Dias da Costa vai além, afirmando que o romance em questão era “a primeira tentativa séria de romance proletário no Brasil” [5]. Jorge Amado elogia o romance Os Corumbas, de Amando Fontes, mas reconhece não se tratar de romance proletário: “A literatura proletária é uma literatura de luta e de revolta. E de movimento de massa”. (…) Deve “fixar vidas miseráveis sem piedade, mas com revolta. É mais crônica e panfleto do que romance no sentido burguês. A literatura proletária se propõe incentivar a revolução dos oprimidos. (…) Os Corumbas representava a tragédia da família Corumba, não o conjunto dos trabalhadores” [6]. A partir de 1934, o debate entre a literatura proletária e a literatura reacionária cede espaço para novas preocupações. A reação ao termo literatura proletária procede de Hugo Antunes, em resenha ao livro La literatura rusa de la época revolucionaria, de Vladimir Polonski, um dos seguidores de Trotsky.
Para Antunes, a literatura proletária só poderia vingar em ambiente próximo do regime comunista, no qual os trabalhadores já teriam experimentado uma revolução cultural. Inexistiam condições culturais no Brasil, mas sim para uma literatura revolucionária, produzida por escritores comprometidos, ou por operários talentosos, com a vitória da revolução dos trabalhadores [7]. Aderbal Jurema constata; a literatura burguesa viva no limiar da extinção, em decorrência do açodamento da luta de classes. O mundo literário via-se dividido entre as forças extenuantes da literatura reacionária e da ascendente literatura revolucionária [8].V. de Miranda Reis, outro entusiasta de Jorge Amado, questiona a polarização que pressionava os escritores a escolher um dos lados. “A família literária está desunida, dividida, bipartida. Há, dentro ela, duas tendências contrárias, dois partidos adversos”, levando risco à produção romanesca [9].
Comparece por vezes às páginas do periódico Roberto Alvim Correa, brasileiro que foi viver em Paris, onde fundou uma editora e publicou nomes importantes como Mauriac, Maritain, Du Bos. Em janeiro de 1938, Octávio Tarquínio de Sousa publica artigo sobre O Amanuense Belmiro, discutindo longamente a influência de Machado sobre Ciro dos Anjos. “Também no Sr. Ciro dos Anjos há um fino anotador de estados d’alma, que não despreza minúcias psicológicas e advinha os dramas que se frustram na comédia do quotidiano” [10].
Em março de 1938, a folha divulga um artigo de Peregrino Jr. sobre Cobra Norato, de Raul Bopp; um artigo de Hamilton Nogueira sobre Joseph Conrad; uma canção de Antonio Botto. Em julho de 1938, sob o título “Literatura portuguesa contemporânea”, Mário Borges da Fonseca comenta a fragilidade da produção romanesca em Portugal, comparada com a riqueza e diversidade no Brasil. Detém-se em José Régio (O jogo da cabra cega) e Miguel Torga (A criação do Mundo). Em setembro de 1938, é dado a lume o poema “Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo”, de Fernando Pessoa. Em dezembro de 1938, publica-se um depoimento sobre Jackson de Figueiredo, passados dez anos de sua morte, em emotiva, sensível página de amizade, assinada por Augusto Frederico Schmidt. O último número da primeira fase circulou em fevereiro de 1939, com um artigo de Murilo Araújo sobre vida e poesia de Fagundes Varela.
Em 1973, é lançado o Novo Boletim de Ariel, com um editorial, redigido por Afrânio Coutinho, do qual transcrevo duas passagens. “Ao reiniciarmos a publicação Boletim de Ariel, periódico que desempenhou relevante papel na inteligência brasileira na década de 30, impõe-se-nos o dever de homenagear os escritores que, naquela época, foram os responsáveis pela primeira fase da revista – Gastão Cruls (1888-1959) e Agripino Grieco (1888). (…) A literatura é uma comunidade internacional no tempo e no espaço. Uma continuidade, uma contiguidade. Os que escrevemos somos todos contemporâneos dos que escreveram antes. E somos vizinhos dos que escrevem alhures” [11].
Considerado por Gilberto Amado um espaço plural, o Boletim de Ariel repercutiu a atmosfera do contexto, borbulhante de polêmica. Assinalando o confronto entre os postulados intransigentes, alertava: o periódico era uma “ilha do pensamento desinteressado (…) lendo, comentando e discutindo com o espírito aberto a todas as ideias, e simpático aos movimentos multiformes do mundo” [12]
3.
Periódico famoso, o Dom Casmurro[13] (1937-1946)foi o mais eclético de todos: embora predominem a matéria literária e o intercâmbio com as letras da Europa, abrigava colunas de espetáculo, cinema, moda, receitas culinárias e esporte. Na edição 115, de 1939, Brício de Abreu publica artigo sobre Tristão de Athayde, em que desmistifica sua importância postiça. Comenta o aspecto empolado do intelectual, seu despeito por ter sido ignorado pelos dirigentes do Dom Casmurro. Discute uma conferência de Tristão, realizada na sede do Itamarati, em que teria apresentado o Brasil, numa visão distorcida, como terra má, intratável, o brasileiro como imitador de outras culturas [14].Estava presente Oswaldo Aranha, que contestou o líder católico: “Nem a terra é má, nem o brasileiro incapaz. A terra é imensa.”
Alfredo Tomé, que, pelo expediente, identificamos como Diretor da sucursal paulista, em artigo sobre Machado de Assis, critica os elogios excessivos à ficção machadiana e argumenta, influenciado fortemente pelo determinismo de Taine: “Quero crer ter havido excessivo entusiasmo, exagerada admiração e desconcertante ausência de noção de responsabilidade em boa parte de tudo que se escreveu nestes últimos tempos sobre o introspectivo contista. (…) Quem escreve reflete o meio ambiente. Um escritor é um instrumento intermediário entre os fenômenos históricos e sociais de um povo e este mesmo povo. É o intérprete, natural e espontâneo das ansiedades, inquietações, alegrias, torturas, injustiças, bem estar, enfim, de tudo quanto está ligado à essência vital de um povo, de uma nação. (…) A sua obra diz mais de uma paisagem calma de um país tranquilo, dormitando sobe uma civilização muitas vezes secular, definida na sua raça e na sua cultura. Exatamente o contrário se passava no Brasil do seu tempo” [15]. No expediente de 13 de abril de 1940, ordenam-se as funções: “Diretor: Brício de Abreu; Redator chefe: Jorge Amado.” O editorial é conciso: “Dom Casmurro dá plena liberdade a seus redatores e colaboradores, por isso não se responsabiliza pelos conceitos emitidos em artigos assinados”. Na edição de 20/4/1944, publica artigo de Otoniel Mota, sobre “Bento Teixeira e a Prosopopeia”.
Na edição de 20/4/1940, Dom Casmurro publica a tradução de uma conferência de André Maurois, celebrando o centenário de Emile Zola. Quando ocorre a morte do escritor francês Maurice Barrès, em 27/4/1940, dedica-lhe uma homenagem de página inteira, com artigos de Graça Aranha e Renato de Almeida. Estas ocorrências revelam o interesse pelas letras francesas. No âmbito do lançamento de História literária de Eça de Queiroz, estreia de Álvaro Lins como crítico, Odorico Tavares resenha o livro: “É que esse jovem escritor tão diferente, tão original sobretudo, não se arreceia de uma estreia com um assunto aparentemente esgotado e num gênero que, se requer talento e sensibilidade, requer também profundo conhecimento da vida e dos livros” [16].
A postura socialista acentua-se, através de destaque à ficção de Érico Veríssimo e de Jorge Amado: são publicadas várias resenhas focando O resto é silêncio e Terras do sem fim, no ano de 1943. Nota-se franca indiferença em relação à ficção de análise psicológica de Otávio de Faria e Lúcio Cardoso. Jorge de Lima, entrevistado, discorre sobre o Modernismo, reconhecendo a influência do ‘grande’ Graça Aranha, com a sua Estética da vida. “Pretendia que o homem brasileiro atingisse a unidade, vencendo a Natureza que o esmagava. Os modernistas brasileiros compreenderam que, ao invés do que aconselhava Graça Aranha, o homem devia se entregar às suas tendências naturais, às suas pretendidas deficiências, identificando-se com a exuberância de sua natureza, à sua metafísica, mesmo saturada de superstição” [17].
Dom Casmurro consolida-se como periódico multifacetado, de perfil agregador, que contou com expressivos e valiosos colaboradores. Manteve uma página dedicada ao público feminino, “De Leve”, com notícias sobre grandes autoras internacionais, receitas de culinária e informes sobre moda. Folha mensal, acolhe, com a mesma hospitalidade, a sobriedade cinza do ensaio, os traços sugestivos de caricaturas, os comentários incisivos de resenhas literárias, a melancolia de versos inquietos, de diversas autorias. Transmite a generosidade que deve predominar num país de gigantescas proporções, que não pode isolar-se diante de ondas migratórias. Alinha-se, ainda que sem alarde e de forma protocolar, ao regime do Estado Novo: a edição de 24 de abril de 1940 apresenta artigo de Jean Gerard Fleury, na língua de Victor Hugo: “Getulio Vargas, Président des États-Unis du Brésil”. Oferece, no entanto, acolhida a grupos dissonantes, aberto às audácias nervosas de vanguardas, às contradições estéticas, à descoberta de novas formas artísticas. Participa de uma alargada conceção de cultura, como espaço de experimentação e de incentivo às novas ideias, na busca de expandir o gosto pela leitura e pelo espírito crítico.
4.
O suplemento literário Letras e Artes[18] (1946-1954), do jornal A Manhã, de periodicidade semanal, surgiuuma década depois no Rio de Janeiro: ilustrado, com uma conceção gráfica mais leve, fatura visual menos compacta, concentrado nos eventos e produção literária da época. Fundado por Jorge Lacerda, não se equivoca, ao comemorar o quinto aniversário em 1951, ao afirmar, em editorial, que teria sido ajudado pelos “mais expressivos nomes da literatura brasileira e pelos artistas mais representativos”. Muito lhe deve a cultura brasileira, pela farta documentação e expansão de parâmetros, valores e referências. Na impossibilidade de apresentar, em lista exaustiva, todas as matérias suscetíveis de interesse, decidiu-se referir algumas que surpreendem pela relevância e por alguma singularidade. Nos primeiros anos, o periódico publica “Os arquivos implacáveis” de João Condé; em 1947, promove um concurso de contos.
Cassiano Ricardo, então, era considerado um dos poetas mais representativos do país, equiparando-se a Cecília Meireles. Seus livros suscitam comentários e artigos de renomados escritores. Face perdida (1950) recebe várias resenhas, assinadas por Jorge de Lima e Ledo Ivo (Letras e Artes, 183), João Gaspar Simões (Letras e Artes, 195), Domingos Carvalho da Silva (Letras e Artes, 216, 227). O reconhecimento da poesia de Carlos Drummond de Andrade vai sendo conquistado mês a mês, ano a ano. Os livros de poesia merecem a atenção especial de críticos: A lua do remorso (1951), de Jamil Almansur Hadad, é objeto de elogios nas edições 228 e 229.
Na edição de 3 de novembro de 1945, publica-se um ensaio de Tasso da Silveira: “A poesia de Eduardo Guimarães”. O tom e a abrangência revelam uma aproximação entusiasmada; Eduardo Guimarães e Ronald de Carvalho foram os dois únicos brasileiros que participaram da revista portuguesa Orpheu, dirigida por Fernando Pessoa, em 1915. “Não fosse a variedade temática e a multiplicidade dos instantes vividos na sucessão dos dias desiguais, que esses poemas patenteiam e dir-se-ia que esta obra obedeceu, inteira, ao mesmo impulso criador, tal a unidade de sua substância de poesia e de seu fluxo expressional” [19].
Adonias Filho, no número 213, de 13/5/1951, lamenta a decadência da cultura humanista. Mortos estão o espírito acadêmico, o ideal clássico, o prestígio universitário. Sem autonomia, perdida a consciência da própria dignidade, o intelectual passou no serviço dos demagogos como um simples caixeiro de balcão. O autor lamenta, de forma sutil, a extinção da metafísica, sem a qual, há cinco séculos, o homem perdeu o horizonte. Ficou sem orientação. Neste mesmo caderno, é dado a lume um artigo de Augusto Meyer, “Introdução a uma reedição de Cobra Norato”.
Jorge de Lima, refletindo sobre o mesmo tema, critica a tecnologia, nada vê nela de positivo, nada vê de produtivo no progresso material. “A civilização tornou a ser um labirinto de fatos incoerentes. Foi a ideia do Progresso: os homens assistiram, maravilhados, ao desenvolvimento súbito de todas as suas técnicas. Não percebiam que enquanto as obras de suas mãos tomavam dia a dia proporções monstruosas, eles ficavam os mesmos homens, pobres seres fugazes tão cruelmente limitados no espaço e no tempo implacáveis. Consumiram o pouco que lhes restava de uma existência atribulada em mil coisas que lhes pareciam capitais: inventar a locomotiva, o motor de explosão, a metralhadora, a bomba atômica. Tudo isso dissimulava uma situação trágica: a civilização não está mais a serviço do homem; é ele que lhe está sujeito. Em falta de uma metafísica que a domine, esta espécie de civilização mecânica cresce como um ervascal com uma fecundidade ilimitada matando o próprio homem; a ela deve a criatura de Deus sacrificar sua vida sem compensações, estupidamente. A vida não tem mais sentido”
Djalma Viana, pseudônimo de Adonias Filho, em tom satírico, mantém uma coluna de humor leve, uma análise descontraída dos cadernos culturais da época (“Através dos Suplementos”); numa dessas miscelâneas, escreve sobre um conto de Paulo Mendes Campos: “Logo me surgiu pela frente o Sr. Paulo Mendes Campos, com um conto que assim se intitula…Lago ou lagoa. O certo é que o catatau do menino não vale um centavo. Abacaxi, e do grosso.” (Letras e Artes, ed. 42, 25/05/1947).
Surpreende-me, pela coerência e força argumentativa, um artigo de Roland Corbisier, num dos grandes momentos do periódico, do qual transcrevo longamente.
“A existência humana implica o que chamamos de mundo, assim como o mundo é o que é em função da existência humana. O homem é livre e determinado, simultaneamente. O homem é determinado na medida em que se encontra inserido numa situação existencial que não escolheu e que não pode modificar. Nenhum de nós escolheu a data e o local do nascimento, o sexo, o temperamento, a condição social e econômica. Ao nascer somos vítimas ou beneficiários de escolhas prévias, de opções anteriores, que não escolhemos, que vão repercutir em nossa existência sob forma de determinações e limites. Dentro desses limites, marcados pela circunstância existencial, o homem é um centro irredutível de indeterminação e liberdade. Podemos aceitar, assumir a nossa situação – contingência – responder à nossa vocação, se quisermos, ou ao contrário, traí-la, fugindo para uma vida que não é a nossa. Ao contrário dos animais, o homem é o ser cuja realização como homem depende de sua liberdade. Ninguém, nenhum poder é capaz de nos obrigar a ser o que devemos ser.
O intelectual, apesar de estar em conexão ontológica com o mundo dos valores, nem por isso deixa de ser humano e de estar sujeito também às mesmas limitações que definem a situação existencial. A inteligência não é uma faculdade autônoma, isolada, funcionando no vazio, sem vínculos com a realidade humana e com a história. (…) O homem é, basicamente, um ser de diálogo, que, a rigor, não vive, mas convive, e que só pode tomar consciência de si mesmo na medida em que se opõe a esse sistema de resistências e de obstáculos a que chamamos o mundo. (…) Não existe um ser fora da consciência. Só em relação à categoria de objetos tem sentido dizermos que estão fora ou dentro de seus limites. O próprio do homem é estar e existir no mundo” [20].
Diante deste artigo, fiquei aflito, a suave aflição decorrente da fruição de um trabalho brilhante. A argumentação fundamenta-se em postulados existencialistas, enraizados profundamente. Ao aparato filosófico, adiciona-se um viés existencialista, apontando para necessidade de militância do intelectual.
Corbisier, por extenso Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier, foi um intelectual paulista, nascido em 1914; jornalista, pertenceu à redação de O Estado de São Paulo. Lecionou Filosofia no Colégio Universitário, polemizou ruidosamente, em 1946, com Sérgio Milliet, sobre as relações entre a cultura e a religião. Participou do grupo que fundou a revista Clima. Publicou Consciência e nação (1951), livro de ensaios.
Guimarães Rosa publica um artigo na edição 289: discute a relação entre as irradiações telúricas e as ações e tendências humanas; a influência do solo na atmosfera: “O ambiente do Rio de Janeiro é um puro afrodisíaco”, só perdendo para Poços de Caldas. De Belo Horizonte, não obstante o ótimo clima, afirma ser o lugar “propenso ao tédio e à melancolia, como em geral os lugares de chão férreo, assim como são simpáticos e alegres os de chão calcário, Corumbá, Cordisburgo, Paris mesma” [21].
Retomando o debate em torno do romance social e o romance psicológico, Sérgio Milliet assume um lado, o da vertente engajada: “O que no romance introspectivo tem suscitado a hostilidade da crítica, o que tem por assim dizer desmoralizado o gênero é a carência de universalidade. (…) A técnica introspectiva mascara a falta de imaginação criadora. O autor esmiuça sua pobre personalidade, esgrimindo-se na pesquisa de pormenores originais, impinge seus casos como se do conhecimento deles dependesse o destino do mundo. O romance introspectivo assume desse modo uns ares de aborrecido diário íntimo. Ora o diário íntimo não interessa senão na medida em que os problemas do diarista espelham e concretizam problemas essenciais, a cuja solução tendem ansiosamente outros homens” [22].
Pesquisar periódicos de cultura possibilita dimensionar um extenso repertório de ideias e atitudes, a turbulência utópica de um país se descobrindo e se revelando. Os múltiplos registros e gêneros, os diversos assuntos, o agrupamento de intelectuais de posturas distintas, a aliança entre a sobriedade e a galhofa, as profundas transformações sociais prescrevem uma atitude participativa e de defesa de novos mundos, novos sonhos e novas realidades.
*Edgard Pereira é professor aposentado de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da UFMG. Autor, entre outros livros, de O lobo do cerrado (Imago).
Referências
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de (Direção). Enciclopédia de Literatura Brasileira. 2ª. ed., ampl. sob a coordenação de Graça Coutinho e Rita Moutinho. São Paulo: Global; Rio de Janeiro: Fund. Biblioteca Nac./ ABL, 2001.
MENEZES, Raimundo. Dicionário Literário Brasileiro. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978.
MILLIET, Sérgio. Diário crítico. VI. São Paulo: Martins, 1981.
Notas
[1] Boletim de Ariel. Mensário crítico bibliográfico. Rio de Janeiro, out. 1931- abr. 1938.
[2] MARÇAL, Heitor. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 1, 1932.
[3] GUIMARÃES, Alberto Passos. “A propósito de um romance: Cacau”. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 11, ago. 1933.
[4] TABAYÁ, Arnaldo. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 1, out. 1933.
[5] COSTA, Dias da. Cacau. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 2, nov.1933.
[6] AMADO, Jorge. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 11, out. 1933.
[7] ANTUNES, Hugo. “Literatura e revolução”. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 4, jan. 1933.
[8] JUREMA, Aderbal. “Literatura reacionária e revolucionária”. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 8, maio de 1934.
[9] REIS, V. de Miranda. “A esquerda e a direita literárias”. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 11, ago. 1935.
[10] SOUSA, Octávio Tarquínio de. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, jan. 1938.
[11] COUTINHO, Afrânio. Novo Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 1973
[12] AMADO, Gilberto. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, 4, janeiro de 1932.
[13] Dom Casmurro. Rio de Janeiro, 13 maio 1937 – 4 maio 1946.
[14] ABREU, Brício de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro, ed. 115, 26/8/1939.
[15] TOMÉ, Alfredo. “Machado de Assis, vítima dos endeusadores”. Dom Casmurro. Rio de Janeiro,289, 6, 4/1940.
[16] TAVARES, Odorico.” História literária de Eça de Queiroz”. Dom Casmurro. Rio de Janeiro, 30/3/1940.
[17] LIMA, Jorge de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro,339, 05/02/ 1944.
[18] Letras e Artes. Suplemento de A Manhã. Rio de Janeiro, 12 maio 1946 – 24 ago. 1954.
[19] SILVEIRA, Tasso da. “A poesia de Eduardo Guimarães”. Letras e Artes. Rio de Janeiro, 3 nov. 1945.
[20] CORBISIER, Roland. “Intelectuais e combatentes” Letras e Artes. Rio de Janeiro,ed. 145.11 dez.1949.
[21] ROSA, Guimarães. “Terrae vis, a força da terra”. Letras e Artes. Rio de Janeiro, 289, 1952.
[22] MILLIET, Sérgio. “Lições de abismo”. Letras e Artes. Rio de Janeiro, 3 fev. 1952.
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