Disputa ideológica e luta política

Imagem: Alexander Zvir
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Por MATHEUS SILVEIRA DE SOUZA*

É indispensável que a esquerda crie seus meios de comunicação em massa

O início do governo Lula, com seu discurso de posse contundente e a simbólica passagem de faixa do povo para o presidente, trouxe ares renovados para a reconstrução de um país que percorreu caminhos sombrios nos últimos quatro anos. Antes mesmo de digerirmos a celebração da posse, ocorreu a tentativa de um golpe de Estado em 08 de janeiro, por parte dos neofascistas apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. Embora não tratemos da ação golpista neste artigo, faremos breves considerações sobre um dos possíveis caminhos para o fortalecimento do campo progressista no Brasil, qual seja, as possibilidades e perspectivas da disputa ideológica no país.

A reconstrução do Estado brasileiro – tema recorrente no debate público – deve estar associada a um projeto de reconstrução da sociedade civil, pois o fortalecimento das instituições não pode prescindir de uma disputa de valores no âmbito das diferentes classes. Além de implementar as políticas sociais para cumprir as propostas da campanha, será necessário realizar uma disputa do imaginário social, não por meio de um discurso pré-moldado, mas a partir das necessidades dos trabalhadores e trabalhadoras que não compartilham, necessariamente, do mesmo horizonte ideológico dos partidos progressistas. Em outras palavras, a disputa ideológica deve estar acompanhada da capacidade de captar e compreender as necessidades materiais das diferentes frações da classe trabalhadora para traduzi-las em projetos políticos concretos.

Lembremos que o lema utilizado por Lênin para convocar a população durante a revolução russa não foi “viva o socialismo”, mas sim, “Paz, Pão e Terra”. Esse foi o mote escolhido para convocar indivíduos que passavam fome, viviam os abusos autoritários da monarquia czarista durante a primeira guerra mundial e não dispunham de um pedaço de terra para viver e produzir. A discussão sobre a disputa da sociedade não significa ignorar a necessidade e urgência do fortalecimento das instituições, mas apenas demarca que, por vezes, a energia mobilizada no debate público é colocada na última em detrimento da primeira.

Em recente entrevista, Guilherme Boulos comenta um caso que ilustra a necessidade de não apenas concretizarmos políticas sociais, mas também, disputarmos os seus sentidos. Sua companheira, Natália, formou-se em direito em uma universidade privada e apenas teve acesso ao ensino superior graças às políticas do Prouni dos governos petistas. Quase metade dos colegas da sala de Natália estavam na mesma situação, ingressando nas universidades a partir do Prouni. Pois bem, durante o golpe de Michel Temer, em 2016, os mesmos beneficiários dessa política estavam, majoritariamente, a favor da destituição de Dilma. Obviamente, não se trata de clientelismo eleitoral por meio de programas sociais, mas sim de explicitar quais interesses estão sendo atendidos por essas ações do governo.

No que diz respeito à direção do Estado, os primeiros seis meses do governo Lula deveriam focar em uma retomada das políticas sociais, com a entrega de projetos do Minha Casa Minha Vida, mutirões de emprego nas capitais do país, políticas de combate à fome, retomada de obras públicas paradas com o objetivo de geração de emprego e renda e demais políticas que possam sinalizar mudanças nas condições de vida da “classe que vive do trabalho”. Apresentar uma regulamentação jurídica que possa melhorar as condições de emprego dos entregadores de aplicativo também será essencial para mostrar que os seus interesses serão defendidos e que o governo demarcará uma posição no conflito distributivo.

Em entrevista à Agência Pública, Gilberto Carvalho, ex-ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência da República durante os primeiros governos Lula, destaca algumas ações para a consolidação de um progressivo engajamento popular. Gilberto Carvalho afirma que o governo petista atuou e estimulou a participação da sociedade civil organizada, de grupos e indivíduos mobilizados e com experiência de participação, mas que o engajamento foi ínfimo para a parte não organizada da sociedade: “Nós não conseguimos dialogar com a grande massa”. Para ele, o engajamento não só de grupos com experiência de mobilização, mas também dessa grande massa não organizada, será essencial para que 2016 não se repita.

Segundo Gilberto Carvalho, umas das formas de cumprir este objetivo estaria na criação de comitês populares: “A ideia é criar células – já foram criadas, mas queremos criar muitas – células por bairro que procurem organizar a população, mais ou menos como eram as comunidades eclesiais de base, só que sem o caráter religioso. É você criar um ambiente familiar em pequenos grupos para olhar a realidade, analisar a realidade, no velho método do Paulo Freire: educação a partir da luta e da vida política. A gente começou isso em vários estados, pegou muito na campanha, fazia os vira-votos, fazia as conversas com o povo. Mas é um número muito pequeno ainda frente à necessidade”.[i]

A criação do projeto cozinha solidária pelo MTST – com 31 cozinhas em vários estados distribuindo refeição gratuita – é um dos formatos que podem ser utilizados para a estruturação desses comitês populares, pois cria um ambiente de sociabilidade capaz de suprir necessidades materiais da população e, ao mesmo tempo, dialogar de forma crítica sobre os problemas políticos que atravessam o dia a dia dessas pessoas. Esse tipo de projeto é similar à atuação dos Panteras Negras nos EUA, que além de toda a mobilização e luta por autodefesa, criaram redes de assistência em bairros negros, disponibilizando atendimento médico, escolas primárias, refeitórios para distribuição de café da manhã e cursos de formação política.

Se as ideias, em determinadas conjunturas, possuem a potência de se transformar em força material apta a modificar a sociedade, é válido lembrarmos que elas não estão esparsas no ar nem caem do céu. Segundo Antonio Gramsci: “As ideias e as opiniões não ‘nascem’ espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão, houve um grupo de homens, ou até mesmo uma individualidade que as elaborou e apresentou na forma política de atualidade”.[ii]

De acordo com Louis Althusser, as ideias que conformam as subjetividades são difundidas, em boa parte, pelos Aparelhos Ideológicos do Estado, tais como igrejas, jornais, escola, aparelhos midiáticos e culturais, associações, entre outros. Vale recordar que os aparelhos ideológicos não se limitam aos que possuem caráter eminentemente público, mas também a outros campos, ainda que tenham caráter relativamente privado.

Como sabemos, a maioria dos aparelhos ideológicos – rádios, emissoras de televisão, jornais, streamings, igrejas, etc. – estão nas mãos das classes dominantes. Tais aparelhos auxiliam na criação de um consenso que naturaliza as relações de exploração, a miséria, as condições precárias de trabalho e propaga valores folclóricos como meritocracia e empreendedorismo.

Podemos nos perguntar por qual motivo trabalhadores e trabalhadoras levantam todo dia de manhã e pegam uma condução para irem trabalhar durante oito horas em troca de um salário que, para a grande maioria, sequer é apto para garantir condições básicas de vida. A formação da subjetividade por aparelhos ideológicos como a escola e a igreja são fundamentais para essa explicação, afora, obviamente, a necessidade de subsistência material. Em poucas palavras, não basta explorar os indivíduos, mas é necessário, também, criar um consentimento em relação à exploração.

Assim, é indispensável que a esquerda crie seus meios de comunicação em massa, sejam eles os tradicionais, como rádio e emissoras, ou os mais “modernos”, como redes sociais.[iii] Se os indivíduos tomam consciência dos conflitos de classe a partir das “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas”,[iv] é necessário a criação de ambientes de sociabilidade que dialoguem com necessidades materiais da população e, conjuntamente, explicitem os conflitos e as contradições que atravessam o cotidiano dos sujeitos e impõem a miséria da maioria em benefício da acumulação da riqueza de alguns.

*Matheus Silveira de Souza é doutorando em sociologia na USP.

Notas


[i] Agência Pública. “Gilberto Carvalho: Sem dialogar com as massas, o risco é repetir 2013 e 2016”. Em 21 de novembro de 2022.

[ii] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

[iii] Não ignoramos o fato de que os indivíduos que controlam as big techs – como Facebook, Youtube, Google, Twitter, Amazon – são membros da burguesia e, consequentemente, defendem e lutam pelos seus interesses de classe e pela expansão da taxa de lucro de suas empresas. Aliás, há diversas reportagens e pesquisas que mostram que o Youtube, por exemplo, incentiva, por meio de seu algoritmo, a difusão de vídeos da extrema direita e de fake news, pois tais conteúdos geram mais engajamento dos internautas.

[iv] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

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