Ciclo de financeirização ou de desalavancagem financeira?

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Considerações sobre a economia de endividamento

Também na ciência econômica temos de nos colocar contra o negacionismo científico. Seu método – observação, questionamento, hipótese, experimentação, análise dos resultados dos testes e conclusão – tem de ser praticado inclusive contra o dito até por companheiros de esquerda, no caso, autores e/ou adeptos da literatura da chamada “financeirização”.

Os cientistas seguem o método científico ao tentarem se aproximar da verdade (transitória ou configurada) e, para tanto, partindo da observação empírica. Uma convincente narrativa lógico-causal pode contar uma estória convincente à primeira vista, porém falsa perante outros conceitos teóricos ou alongamento histórico da visão.

Por exemplo, o fenômeno da “financeirização” não descreveria apenas um ciclo transitório ou uma configuração periódica a ser logo superado(a), quando passar essa fase de desalavancagem financeira, onde “a política monetária empurra corda”? A taxa de juro ficou baixa, face a uma inflação sob controle em todos os países avançados, apesar do longo “afrouxamento monetário” e… nada de recuperação ou retomada do crescimento econômico sustentado em longo prazo!

Aí, quando a economia ultrapassar a fase de normalização, haverá nova alavancagem financeira, bolha, auge, depressão até outra fase de desalavancagem financeira. Em finanças, alavancagem designa a elevação da rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio através de endividamento. Resulta em maior economia de escala (e lucro) com a participação de capital de terceiros na estrutura do capital da empresa.

Basta o lucro operacional ser superior aos juros (e demais despesas financeiras) para ser mais rentável, por exemplo, uma aposta em uma tendência firme de alta do preço de um ativo, uma forma de manutenção de riqueza como ações, imóveis ou qualquer outro. Essa prática é comum, na evolução capitalista, desde quando surgiu a “pedra fundamental” do sistema bancário em Gênova, através do Banco di San Giorgio, em 1406, só tendo ele encerrado suas atividades, 400 anos depois, em 1805.

Na mesma época do Pré-Renascimento, para evitar confisco, durante as guerras entre Cidades-Estados, os cidadãos ricos optaram por emprestar “soldo” – ou “sólido”, uma antiga moeda de ouro do Império Romano, criada por Constantino em 309 – para pagar “soldados” mercenários. Afinal, o governo era dominado por eles mesmos e receberam garantia de receber juros pelo endividamento público em lugar de arrecadação fiscal.

Desde então, para compensação dos cidadãos ricos, além do pagamento de juros forneceu-se liquidez. Tais títulos de dívida pública poderiam ser vendidos, em um mercado secundário, caso o rentista necessitasse de dinheiro de imediato.

Então, a economia de endividamento (público e privado ou bancário) surgiu com esse lastro de risco soberano, para a riqueza financeira, e permanece assim até hoje. Já os primórdios de uma Economia de Mercado de Capitais ocorreram quando a compra e venda de moedas, letras de câmbio e metais preciosos deixou de ser realizado ao ar livre, nas ruas e calçadas, e passou a ser realizado em uma propriedade da família de nobres belgas, os Van der Burse, cujo brasão de armas eram três bolsas. Como as residências em Bruges não tinham números, ficou conhecida como a Casa das Bolsas.

Criada em 1531, a Bolsa da Antuérpia, na Bélgica, é considerada a primeira bolsa oficial, baseada na negociação de empréstimos. Porém, as primeiras ações negociadas em uma bolsa de valores foram as da Companhia Holandesa das Índias Orientais, em 1602, na Bolsa de Amsterdã. Representavam associações para compartilhar riscos e lucros.

Essa revolução financeira, 200 anos antes da revolução industrial, ocorreu com o uso de dinheiro de outras pessoas em benefício próprio: conseguir associados, manter gestão e participação acionária com divisão de lucros ou prejuízos. A abertura de capital é um IPO (Oferta Inicial Pública) de parte minoritária com cotação atribuída por acionistas.

Desde o início da evolução deste sistema capitalista, o “segredo do negócio” é tomar dinheiro emprestado para fusões ou aquisições de concorrentes. Essa concentração de capital provoca a elevação do valor de mercado das ações e o enriquecimento pessoal dos sócios-fundadores.

Na capitalização, via lançamento de ações, o controlador faz divisão dos lucros esperados ou prejuízos inesperados sem o risco de ser devedor. Por sua vez, na tomada de empréstimos, para aumentar a escala do negócio e a rentabilidade patrimonial do capital próprio com o uso de capital de terceiros, o devedor assume o risco de o lucro operacional esperado não se confirmar, e o novo faturamento ficar abaixo dos juros dos empréstimos. Quando isso ocorre, de maneira generalizada, entra-se em “fase de desalavancagem financeira”.

Os autores e os leitores adeptos da literatura de “financeirização” confundem essa fase com uma etapa de mudança estrutural do capitalismo, quase uma Nova Era. Pior, denunciam-na como fosse um artificialismo face ao adorado capitalismo industrial gerador de melhores empregos, embora explorador da força de trabalho, para obtenção de maior produtividade, seja via mais-valia relativa (hoje economia digital), seja via mais-valia absoluta (hoje extraída pela extensão das jornadas de trabalho em home-office).

De acordo com as Teorias do bloqueio dos investimentos produtivos, em razão da crescente atividade financeira das empresas não financeiras, os lucros não seriam reinvestidos por conta de os monopólios criarem excesso de capacidade produtiva. Os lucros seriam então canalizados para a capitalização financeira e provocariam aumento das cotações dos ativos financeiros, causando bolhas especulativas.

Com o neoliberalismo, segundo essa inventiva, mas irrealista narrativa, a barreira sindical e/ou salarial à rentabilidade do capital teria sido substituída pela barreira do subconsumo. A deficiência de demanda teria sido compensada pelo capital fictício, criado pelos demonizados bancos sobre o malévolo endividamento das famílias.

O aumento da taxa de exploração da força de trabalho teria levado a uma recuperação da taxa de lucro, mas sem um correlato aumento da taxa de investimento (ou acumulação no jargão marxista) no processo produtivo. Ante a falta de oportunidades rentáveis desse investimento produtivo, os lucros teriam passado a ser distribuídos como dividendos, uma medida do grau de financeirização.

Essa “dominância financeira” (outra palavrinha-mágica na moda) teria ocorrido pelo interesse dos gerentes no crescimento da empresa em longo prazo ter sido superado pelo interesse dos acionistas na maior distribuição de dividendos em curto prazo. A diminuição da demanda, devido ao aumento da concorrência globalizada e à redução da parcela salarial e subconsumo, se somou à pressão por pagamentos de dividendos.

A gestão das empresas não financeiras se adaptou a essa pressão pela via do alinhamento do interesse dos gerentes, em aumento do stock options (Opção de compra de ações do negócio para seus executivos as adquirir por um valor pré-determinado após certo período), ao interesse dos investidores acionistas. A hegemonia financeira teria levado ao aumento dos pagamentos de juros e dividendos e, apesar da recuperação da taxa de lucro na atividade produtiva, sua retenção em reservas diminuiu, causando uma queda no crescimento econômico de empregos e renda.

Pior, uma proporção considerável dos lucros seria canalizada para a recompra de ações e uma proporção menor para os investimentos produtivos. Daí houve um processo de substituição de capitalização acionária pelo financiamento através de debêntures corporativas.

A emissão desses títulos de dívida direta das empresas não-financeiras serviu para financiar a recompra de ações, em mudança na estrutura de capital, isto é, substituição de capital acionário por dívida corporativa. Seria uma evidência de “financeirização”?

O financiamento da recompra de ações através de emissão de dívida corporativa, evidentemente, dá lugar ao aumento do pagamento de juros em debêntures. Essa recompra de ações reduz a quantidade em circulação e ajuda a elevar o lucro por ação, sendo uma alternativa aos dividendos para “devolver capital” aos acionistas.

O autofinanciamento das empresas não-financeiras, para fazer investimentos, poderia implicar em uma acentuada redução da taxa de distribuição de dividendos. Nesse caso, uma nova emissão de ações com possibilidade de subscrição, para evitar a diluição das participações acionárias, seria menos prejudicial aos interesses de seus acionistas.

Qual dos dois fenômenos ocorreu primeiro? Aumento dos investimentos financeiros ou queda dos investimentos produtivos?

Nesse “dilema entre o ovo e a galinha”, para autores da literatura da “financeirização”, o aumento da atividade financeira precede e causa a redução na acumulação produtiva. Para os críticos dessa literatura, não há nenhum motivo forte para essa reorientação de atividade, exceto a temporária paralisia do processo de acumulação de capital, porque a lucratividade financeira é empiricamente menor face à lucratividade produtiva – e, quando não for, desencadeia a fase de desalavancagem financeira com corte de todos os gastos, inclusive com investimentos, até a diminuição do grau de endividamento.

Como diz o bordão de um locutor esportivo, comentando a má fase de um clube ou de um jogador, “que fase!”. Mas, console-se, é passageira. A vida, inclusive a financeira, é difícil, os autores dessa literatura devem aprender a lidar com isso…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Métodos de análise econômica (Contexto).

 

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