A romaria e a treva

Foto: Thiago Cruz
image_pdf

Por EUGÊNIO BUCCI*

Existe a guerra da Ucrânia, existem os massacres do Oriente Médio, existe a tal polarização da política brasileira e existem os romeiros de bicicleta. E Deus, existe?

Eu seguia pela Dutra, rumo a Paraty, onde deveria chegar até o meio da tarde para um painel na Flip. Tinha subido no carro bem cedo. Para ser preciso, devo dizer que “vesti” o automóvel pouco antes das oito da manhã. Som desligado. Silêncio no veículo. Motorista solitário, quase contente em cismar sozinho em trânsito, eu pensava na vida e nas mulheres que não amei (Manuel Bandeira me ensinou certo, mas eu aprendi errado).

Foi em Taubaté que me dei conta. Era sexta-feira, dia 11 de outubro, véspera do feriado-mor, o de Nossa Senhora Aparecida, e, no acostamento, afloravam andarilhos em trajes típicos de praticantes de jogging. Em minutos, o número de caminhantes cresceu. Como diriam os economistas, cresceu a taxas exponenciais. O fluxo da via, como diriam os repórteres de rádio, ficou mais carregado.

No celular, o navegador georreferenciado e seu algoritmo recomendaram um desvio, para ganhar tempo. Obedeci. Passei por outras franjas do município e, quando retomei a Dutra, a rodovia estava enfartada. Tudo parado. Em seguida, começou a fluir vagarosamente. Para continuarmos no jargão dos boletins radiofônicos, o motorista encontrou dificuldades. Consideráveis.

O que passava de um lado e de outro da pista tinha ares de uma dessas intervenções urbanas que artistas encenam no meio da rua para alterar a rotina das metrópoles. Gente, gente aos milhares, escorrendo a pé. Eram os romeiros de Aparecida. Umas pessoas abriam as palmas das mãos para o alto, na altura do peito, como se quisessem sentir as gotas de uma chuva que não caía. Outras pareciam rezar em voz alta. O vidro fechado não me deixava ouvir.

Moças esbeltas, de bermudas de lycra bem coladas à anatomia, não tinham um ar muito católico, mas marchavam convertidas. Como um grito da moda, predominavam uns chapéus de pano, do quais escorria um lenço largo para proteger do sol a nuca, pescoço e ombros. Fiéis carregavam cruzes de madeira de proporções variadas: umas, homeopáticas, não eram maiores que uma sombrinha; outras superavam as dimensões de uma cama de casal. Bandeiras imensas, com a imagem da Santa, se projetavam contra o vento.

Camisetas litúrgicas acompanhavam a padronagem dos estandartes. Casais de mãos dadas avançavam com os olhos pregados no chão. Grupos maiores conversavam e gesticulavam distraídos, como se estivessem saindo do trabalho para almoçar. Havia quem pendurasse o par de tênis nos ombros para palmilhar o asfalto com os pés em chinelos de borracha sintética. Vi romeiros de bicicleta.

Existe a guerra da Ucrânia, existem os massacres do Oriente Médio, existe a tal polarização da política brasileira e existem os romeiros de bicicleta. E Deus, existe? No aconchego seco do ar-condicionado, a trinta quilômetros por hora, pensei na velhíssima questão e logo me senti pedante, ridículo e culpado. Se eu estacionasse ali mesmo, abrisse a janela e puxasse assunto, seria mal-recebido, e com justiça. No meu solilóquio passageiro, porém, não desisti de indagar: do que fogem os peregrinos? Da pós-modernidade? Não creio. Das brigas familiares? Do vício? Não creio tampouco.

Fugirão de si? Nunca saberemos, assim como não sabemos o que se busca na peregrinação. Será que cada ser humano busca uma dádiva distinta, mas ainda assim uma dádiva? Pode ser. As caminhadas rituais simulam o curso da vida, mas, até aí, é apenas uma metáfora, não é uma solução.

Nas cercanias dos postos de gasolina, barracas portentosas, como pequenos circos mambembes com armação de alumínio e lonas de plástico, acolhiam as procissões intermináveis, oferecendo um pouco de descanso, um copo d’água, um dedo de prosa. Considerei que as pessoas que fogem de si mesmas estão sempre em busca de si mesmas, e em seguida admiti que eu estava julgando meus semelhantes, de um modo pusilânime, pretensioso e estéril. Meus semelhantes usavam cajados feitos de metal. Eu usava o pisca-alerta. O trânsito ia parar de novo.

Quando eu podia acelerar um pouco mais, o que fazia com gosto, vinha o pedágio. Outra vez, o motorista encontrava dificuldades. Nesses trechos, eu me desprendia das especulações pedestres e me concentrava em identificar de longe as cabines equipadas com cobrança automática. Você pode achar que é fácil, mas eu erro.

Logo depois de Aparecida, com aquela catedral que é maior que um estádio de futebol, o aplicativo me mandou pegar uma estrada menor, mais estreita. Os romeiros milagrosamente desapareceram. Minha cabeça se deixou povoar por outras fantasias, como as ondulações mais íngremes das terras de Cunha, recobertas pelo capim baixo e pelas vaquinhas em preto e branco, que deveriam estar na Suíça e não aqui.

No dia seguinte, na volta, ainda vi peregrinos. Não poucos. Foram quase 37 mil ao todo, segundo a Polícia Rodoviária Federal. Quatro morreram atropelados este ano. Cheguei em São Paulo. Tudo às escuras. São Paulo é a treva. Eu fugiria a pé da Enel? Sim, mas dá preguiça. Eu iria a pé até Paraty? Dou risada sem querer. Se fosse para chegar lá e jantar com Adauto, Maria Rita e Jaime, eu iria, sim.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo [https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/a-romaria-e-a-treva/].


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES