Fissuras no campo bolsonarista — episódio 2

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Por ARMANDO BOITO*

A disputa entre lideranças do campo da extrema direita não deve ser vista meramente como disputa entre egos ou entre camarilhas políticas desprovidas de enraizamento social

O campo neofascista no Brasil está se esgarçando entre inúmeras lideranças políticas e eleitorais e as eleições municipais deste ano de 2024 evidenciaram isso. Há divergências superficiais e momentâneas, mas pode haver também conflitos mais sérios. O que poderia explicar esse fenômeno político?

Em abril do corrente ano, escrevi um artigo, publicado no site A Terra é Redonda, onde eu tratava da heterogeneidade e de eventuais fissuras no campo da extrema direita. Essa heterogeneidade é, para mim, fundamentalmente uma heterogeneidade de classe e de fração de classe, onde cada segmento, além de interesses comuns que os unem, têm, também, interesses particulares, divergentes e até conflitantes.

Ou seja, eu não me referi à heterogeneidade de partidos e lideranças políticas que, na extrema direita, têm disputado protagonismo, como ocorreu na eleição para a prefeitura de São Paulo quando Pablo Marçal desafiou, simultaneamente, Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas. Contudo, a minha hipótese é que parte desses conflitos entre lideranças expressam, e ao mesmo tempo dissimulam, a heterogeneidade de classe e de fração de classe à qual me referi acima. A disputa entre lideranças do campo da extrema direita não deve ser vista meramente como disputa entre egos ou entre camarilhas políticas desprovidas de enraizamento social.

No artigo citado, eu apresentei o capital financeiro, os proprietários de terra, o médio capital, a classe média, a pequena burguesia e setores populares da massa marginal como os principais segmentos sociais que estão perfilados na fase atual com o campo neofascista ou que lhe fornecem contingentes significativos de apoiadores. Vou me referir de maneira breve e bem resumida ao que escrevi no artigo anterior e tentar no presente artigo estabelecer os prováveis vínculos entre algumas lideranças políticas da extrema-direita e as classes e frações de classe que integram esse campo político. Apresentarei essas ideias a título de hipótese e de modo bem resumido.

O capital financeiro demanda acima de tudo contenção de gastos – pondo a salvo, como é sabido, a gastança com a remuneração da dívida pública. Demanda também a continuidade do programa de privatizações. O governador Tarcísio de Freitas é o representante dessa fração da burguesia. Uma vez que não controla a política monetária e fiscal da União, fez das privatizações marca registrada do seu governo. “Vamos privatizar tudo em São Paulo”, bradou um deputado, seguidor de Tarcísio de Freitas, diante do protesto popular num leilão de privatização das escolas da rede pública. A figura de Tarcísio Freitas batendo o martelo nos leilões de privatização é a sua logomarca.

Para sermos mais exatos, ele representa o segmento associado, internacionalizado, da burguesia financeira, porque o segmento interno dessa fração, integrado pelos grandes bancos comerciais nacionais, afastaram-se do bolsonarismo e se aproximaram de Lula desde a campanha eleitoral de 2022. A fração burguesa que Tarcísio de Freitas representa é a fração que hegemoniza o campo neoliberal e neofascista, isto é, que define as linhas principais da política econômica e social sustentadas por esse campo.

Em registro distinto daquele do segmento financeiro da burguesia associada, os proprietários de terra priorizam a obtenção de crédito público subsidiado para a produção, armazenamento e comercialização dos produtos agropecuários – plano generoso de financiamento da safra pelos bancos públicos, financiamento para a construção de silos, construção de estradas, modernização de portos etc. Pressionam pelo aumento do gasto público com o capital produtivo, e dão grande importância também à ação repressiva do Estado contra os movimentos camponês, indígena e quilombola, além de aspirar à liberdade para desmatar.

Os fazendeiros têm motivos para se aliar ao capital financeiro, mas não há sintonia fina entre eles e a Faria Lima. Parece-me que Ronaldo Caiado é a expressão no campo neofascista dos interesses específicos dos proprietários de terra. Ele é governador de um Estado do agronegócio, teve atuação destacada no Senado em defesa dos fazendeiros, atuando sempre contra os indígenas e os ambientalistas.

Ronaldo Caiado é liderança histórica e radicalizada dos proprietários de terra – foi fundador e dirigente da União Democrática Ruralista (UDR), que combateu de maneira violenta e criminosa o movimento indígena e camponês. Ele tem enfatizado no seu mandato de governador de Goiás iniciado em 2022 a sua política de ordem, dura e repressiva. É isso que os fazendeiros mais desejam do governo do Estado – o financiamento e os investimentos estão nas mãos do Executivo Federal – e Ronaldo Caiado faz dessa política a sua marca registrada.

Eu não poderia mapear todas as lideranças e seus prováveis vínculos políticos com diferentes segmentos sociais. Aliás, é possível que algumas delas não tenham vínculos específicos e, também, que alguns segmentos sociais do campo neofascista estejam órfãos de representação específica. Quero, contudo, e por último, me referir à liderança de Pablo Marçal.

Pablo Marçal representou na eleição para a prefeitura de São Paulo o neofascismo plebeu. Foi mais bem votado nos bairros da antiga Zona Leste e na Zona Sul. Chegou a vencer Guilherme Boulos em tradicionais bastiões eleitorais da esquerda. Ele verbaliza a ideologia da ascensão social individual graças ao trabalho duro, que é o que restou para os setores populares, que vivem do trabalho por conta própria e sem qualificação profissional, suportarem e até edulcorarem suas péssimas condições de vida.

Verbaliza também a fé no acaso, na sorte, como caminho para obter a ascensão social e usa o palavrão e as atitudes agressivas que quebram o protocolo para simbolizar sua “rejeição ao sistema”, conectando-se assim com o voto de protesto que as pesquisas empíricas têm indicado como motivo importante para trabalhadores votarem em candidatos neofascistas. A Zona Sul da cidade de São Paulo, antigo reduto da classe operária industrial, é hoje a região dos nano-empreendedores e Pablo Marçal dirigiu-se a eles.

Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado e Pablo Marçal não falam apenas e tão-somente para a classe ou fração de classe à qual se encontram, segundo as nossas hipóteses, preferencialmente ligados. Eles procuram, como todo político de posição burguesa ou pequeno-burguesa, falar para um público mais amplo. Ademais o sistema partidário e eleitoral constrange algumas iniciativas das lideranças políticas e estimula outras. Isso tudo torna mais complexa a relação de representação política que cada um deles estabelece com o campo neofascista e os seus diferentes segmentos, mas não nega o fato de que possa existir uma relação de representação preferencial.

Seria bom a esquerda ir além da personalização dos conflitos políticos e refletir sobre a representação social e política dessas lideranças. Essa reflexão poderá contribuir para descortinarmos caminhos para a luta democrática e popular.

*Armando Boito é professor titular sênior de ciência política na Unicamp e editor da revista Crítica Marxista. É autor, dentre outros livros, de Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT (Unesp-Unicamp)

Para ler o primeiro artigo da série clique em https://aterraeredonda.com.br/fissuras-do-campo-politico-bolsonarista/


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