Um canhão descontrolado

Imagem: Pascal Küffer
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANDREW KORYBKO*

Emmanuel Macron desacredita a França ao cometer erro atrás de erro em política externa

A interceptação pela França de mísseis iranianos sobre a Jordânia no início deste mês é o mais recente erro de Emmanuel Macron, que desacredita ainda mais seu país em relação à política externa. Em 2018, o líder francês reivindicou o crédito por evitar que o Líbano caísse numa guerra civil no ano anterior, depois que sua intervenção diplomática ajudou a resolver a crise que surgiu da escandalosa renúncia do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri enquanto estava na Arábia Saudita. Foi por volta dessa época, no final de 2017, que Emmanuel Macron também começou a falar sobre a criação de um exército europeu.

Esses movimentos fizeram com que muitos pensassem que a França estava tentando reviver suas tradições de política externa independente, cuja percepção foi reforçada por Emmanuel Macron ao dizer ao The Economist, no final de 2019, que a OTAN tinha sofrido morte cerebral. Dois anos depois, os Estados Unidos se vingaram da França ao arrancar dela um acordo multibilionário de submarinos nucleares com a Austrália para criar a AUKUS. As visões divergentes de política externa entre esses dois países ao longo dos cinco anos de 2017 a 2021 tornaram-se claramente uma tendência.

No entanto, isso começou a mudar depois que a guerra por procuração entre a OTAN e a Rússia na Ucrânia começou meio ano depois, no início de 2022, uma vez que a França imediatamente aderiu ao movimento americano, sancionando a Rússia e armando a Ucrânia. Esse foi o primeiro grande erro de política externa de Emmanuel Macron, pois desacreditou a percepção, que ele se esforçou para construir a partir de 2017, de que a França estava revivendo suas tradições de política externa independente sob sua liderança.

Por todo esse tempo, o calcanhar de Aquiles dessa abordagem continuou sendo a África, onde a França continuou dominando seus antigos súditos imperiais por meio de uma forma crua de neocolonialismo que retardou seu desenvolvimento socioeconômico. Não houve muito dinamismo nessa frente até 2022-2023, depois que os respectivos golpes militares patrióticos em Burkina Faso e no Níger se combinaram para libertar o Sahel da “esfera de influência” da França, antes do que Emmanuel Macron poderia ter reformado tal política para evitar preventivamente que isso ocorresse.

É aí que reside o segundo de seus principais erros de política externa, pois, ao deixar de tratar esses países com o respeito que merecem, especialmente por não oferecer ajuda emergencial para ajudá-los a administrar as crises internas provocadas pelas sanções antirrussas do Ocidente, acabou significando o fim da “Françafrique”. Em vez disso, a França poderia ter promulgado uma política externa verdadeiramente independente para manter sua influência histórica nas condições atuais, o que lhe permitiria melhor competir com a Rússia.

O pânico que a retirada da França do Sahel provocou em Paris levou Emmanuel Macron a compensar tentando criar uma “esfera de influência” no sul do Cáucaso centrada na Armênia. Para isso, seu país se juntou aos EUA na tentativa de tirar a Armênia da OTSC, explorando falsas percepções da falta de confiabilidade da Rússia. Essa narrativa de guerra de informações foi promovida de forma agressiva dentro da sociedade armênia pelo lobby ultranacionalista da diáspora com sede na França (Paris) e nos EUA (Califórnia).

Embora isso tenha sido bem-sucedido no sentido de que a Armênia congelou sua participação na OTSC e se voltou decisivamente para o Ocidente, de quem agora busca “garantias de segurança”, foi indiscutivelmente uma vitória de Pirro para a França porque arruinou as relações com a Turquia. Considerando que esse país exerce imensa influência em todo o mundo islâmico, a política pró-Armênia da França pode, portanto, ser considerada o terceiro grande erro de política externa de Emmanuel Macron, pois afetou negativamente a forma como os muçulmanos veem a França.

Já o quarto, diz respeito à sua ameaça, no final de fevereiro, de realizar uma intervenção militar convencional na Ucrânia, que ele especificou que poderia ocorrer em torno de Kiev e/ou Odessa, caso a Rússia conseguisse um avanço nas linhas de frente em algum momento no final deste ano. O motivo pelo qual isso pode ser considerado um grande erro de política externa é porque expôs imediatamente as profundas divisões dentro da OTAN sobre esse cenário, depois que muitos líderes condenaram sua afirmação imprudente de que isso “não pode ser descartado”.

Evidentemente, ele pensou que apresentar a França como extremamente agressiva em relação à Rússia atrairia a elite ocidental e sua sociedade, mas acabou acontecendo exatamente o oposto depois que eles reagiram com horror. Longe de parecer um líder, a França parecia um canhão descontrolado que corria o risco de desencadear a Terceira Guerra Mundial por erro de cálculo, com alguns preocupados que o infame ego de Emmanuel Macron estivesse finalmente se tornando um perigo para todos. Essas renovadas percepções, compreensivelmente, desacreditaram a França aos olhos de seus aliados.

E, finalmente, o quinto e último grande erro de política externa até agora foi quando Emmanuel Macron ordenou que seus pilotos na Jordânia interceptassem alguns dos mísseis que o Irã lançou contra Israel como retaliação pelo bombardeio de seu consulado em Damasco. Ao fazer isso, ele desferiu um golpe mortal no soft power da França no mundo islâmico, que ele tanto tinha se esforçado para melhorar após sua intervenção diplomática no Líbano no final de 2017. Ao ficar abertamente do lado de Israel, Emmanuel Macron também corre o risco de provocar a ira dos muçulmanos franceses.

Esse grupo demográfico é facilmente mobilizável e tem um histórico de perturbação recorde da sociedade com os protestos em larga escala que seus líderes comunitários organizaram sob vários pretextos ao longo dos anos. Eles também são um importante bloco de eleitores, ou seja, dentre aqueles que são cidadãos, que poderiam impedir enormemente sua capacidade de nomear um sucessor quando seu segundo mandato expirar em 2027. Os muçulmanos franceses podem votar em outros candidatos e, portanto, reduzir as chances do candidato preferido de Emmanuel Macron chegar ao segundo turno.

A onda de grandes erros de política externa de Emmanuel Macron pode não se dever apenas a ele pessoalmente, mas também pode ser atribuída, pelo menos parcialmente, a fatores sistêmicos. O Valdai Club publicou seu estudo “Crafting National Interests:How Diplomatic Training Impacts Sovereignty”, no mês passado, que argumenta que as reformas implementadas sob sua administração correm o risco de diminuir o papel das tradições diplomáticas nacionais. Em termos práticos, os funcionários nacionais estão se transformando em funcionários globais ou, basicamente, em fantoches dos EUA.

Afinal, embora Emmanuel Macron tenha a palavra final sobre a política externa, ele também é aconselhado por especialistas diplomáticos sobre a melhor abordagem possível para promover os interesses franceses numa determinada situação. Em vez de conceituar esses interesses como nacionais, como fizeram no início de sua presidência, durante a crise libanesa de 2017, antes de suas reformas no início de 2022, ano em que tudo começou a desandar, eles começaram a conceituá-los como indissociáveis dos interesses do Ocidente Coletivo. Isso equivaleu a uma cessão de soberania.

O efeito final foi que a França se juntou com entusiasmo à guerra por procuração da OTAN contra a Rússia, perdeu sua “esfera de influência” no Sahel, arruinou as relações com a Turquia (que já estavam enfraquecidas devido às controvérsias anteriores de Emmanuel Macron) ao se aliar à Armênia, perdeu a confiança dos aliados da OTAN ao revelar detalhes sobre seus debates secretos sobre a intervenção convencional na Ucrânia e desacreditou a si mesmo perante todos os muçulmanos ao ficar abertamente do lado de Israel contra o Irã ao abater os mísseis que este último estava lançando, ao passarem sobre a Jordânia.

Nesse ritmo, não há mais nenhuma chance crível da França reviver suas tradições de política externa independente após os cinco principais erros de política externa que Emmanuel Macron cometeu apenas nos últimos dois anos. Ele causou tantos danos à reputação de seu país que é impossível repará-los enquanto ele estiver no poder. Pior ainda, ele está mexendo num vespeiro em casa, arriscando mais agitações provocadas por muçulmanos por conta de suas políticas incondicionais pró-israelenses, o que é um mau presságio para o futuro da França nos próximos anos.

*Andrew Korybko é mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Estadual de Relações Internacionais de Moscou. Autor do livro Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes (Expressão Popular). [https://amzn.to/46lAD1d]

Tradução: Fernando Lima das Neves.


A Terra é Redonda existe graças
aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Vinício Carrilho Martinez Francisco de Oliveira Barros Júnior Marjorie C. Marona Ricardo Abramovay Ronaldo Tadeu de Souza Celso Favaretto Eleutério F. S. Prado Henri Acselrad André Singer João Carlos Salles Anderson Alves Esteves Rodrigo de Faria João Lanari Bo Francisco Pereira de Farias Luiz Carlos Bresser-Pereira José Machado Moita Neto Afrânio Catani Dennis Oliveira Armando Boito Walnice Nogueira Galvão Paulo Sérgio Pinheiro José Luís Fiori Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Antunes João Paulo Ayub Fonseca Marilena Chauí Remy José Fontana Gerson Almeida Igor Felippe Santos Kátia Gerab Baggio João Feres Júnior Henry Burnett Ladislau Dowbor Bruno Machado Benicio Viero Schmidt Atilio A. Boron Chico Alencar Fernão Pessoa Ramos Daniel Brazil Manchetômetro Juarez Guimarães Jean Pierre Chauvin José Micaelson Lacerda Morais Luís Fernando Vitagliano Alexandre de Freitas Barbosa Érico Andrade Eliziário Andrade Carla Teixeira Eleonora Albano Maria Rita Kehl Luciano Nascimento Annateresa Fabris Matheus Silveira de Souza Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Jorge Branco João Carlos Loebens Mário Maestri Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Sette Whitaker Ferreira Lincoln Secco Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eugênio Trivinho Heraldo Campos Luiz Renato Martins Michel Goulart da Silva André Márcio Neves Soares Ronald Rocha Flávio Aguiar Luiz Bernardo Pericás João Adolfo Hansen Fernando Nogueira da Costa Marcos Silva Michael Löwy Eduardo Borges José Dirceu Luiz Marques Sergio Amadeu da Silveira Liszt Vieira Paulo Fernandes Silveira Carlos Tautz Vladimir Safatle Celso Frederico Elias Jabbour Julian Rodrigues Anselm Jappe Andrew Korybko Vanderlei Tenório Sandra Bitencourt Salem Nasser Mariarosaria Fabris Thomas Piketty Rafael R. Ioris Bernardo Ricupero Tarso Genro Gilberto Lopes Airton Paschoa Ricardo Fabbrini Eugênio Bucci Manuel Domingos Neto Lorenzo Vitral Renato Dagnino Marilia Pacheco Fiorillo Marcelo Módolo Priscila Figueiredo Antonino Infranca José Costa Júnior Ari Marcelo Solon Antonio Martins Leonardo Boff Tales Ab'Sáber Denilson Cordeiro Paulo Martins Andrés del Río Osvaldo Coggiola Michael Roberts Leda Maria Paulani Fábio Konder Comparato Boaventura de Sousa Santos Slavoj Žižek Milton Pinheiro Marcos Aurélio da Silva Chico Whitaker Caio Bugiato Dênis de Moraes Leonardo Sacramento Bento Prado Jr. Berenice Bento Otaviano Helene Alysson Leandro Mascaro Alexandre Aragão de Albuquerque Claudio Katz Leonardo Avritzer Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jorge Luiz Souto Maior Valerio Arcary Marcelo Guimarães Lima Paulo Capel Narvai Marcus Ianoni Flávio R. Kothe Everaldo de Oliveira Andrade Daniel Costa Samuel Kilsztajn José Geraldo Couto Lucas Fiaschetti Estevez José Raimundo Trindade Daniel Afonso da Silva Jean Marc Von Der Weid Gabriel Cohn Ricardo Musse Gilberto Maringoni Luiz Eduardo Soares Francisco Fernandes Ladeira Yuri Martins-Fontes Luiz Roberto Alves Ronald León Núñez Luiz Werneck Vianna Rubens Pinto Lyra Luis Felipe Miguel Tadeu Valadares

NOVAS PUBLICAÇÕES