Anatomia de um golpe fracassado

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Por FLÁVIO AGUIAR*

Retroativamente pode-se ver que não havia apenas um golpe sendo arquitetado. Havia pelo menos três.

Tempos atrás publiquei uma série de artigos no site A Terra é Redonda sobre a história dos golpes de Estado no Brasil. Foram seis artigos reunidos sob o nome de “De golpes e contra-golpes na tradição brasileira”, abrangendo o período entre a Independência e o golpe antecipado que, com base na poluída operação Lava-Jato, impediu a candidatura de Lula em 2018, abrindo o caminho para a vitória de Jair Bolsonaro.

Complementou a série um outro artigo, chamado de “O bizarro autogolpe do candidato a Messias”, publicado em 14/12/2022, dois dias depois das arruaças em Brasília que visavam tumultuar/impedir a diplomação do presidente eleito, o Lula.

Agora, à luz das evidências apresentadas pela investigação da Polícia Federal, me disponho a analisar a tentativa de autogolpe engendrada nos gabinetes do Palácio do Planalto e os motivos que a levaram ao fracasso e ao conturbado fiasco de 8 de janeiro de 2023, que comemora seu segundo aniversário.

Curiosamente começo fazendo referência a um artigo que defende os golpistas, repete seu argumento de que as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral brasileiro não são confiáveis, denunciando a iniciativa do juiz Alexandre de Moraes e o relatório da Polícia Federal como fraudulentos, motivados sobretudo pela animosidade política do juiz do Supremo contra os denunciados, em particular o ex-presidente. Trata-se do artigo “O golpe impossível”, de J. R. Guzzo, publicado na Revista Oeste on line, edição 245, de 24/11/2024, em inglês como “The autopsy of a farce”, publicado em 07/12/2024.

O artigo diz que a investigação e o relatório são falsos porque é “inverossímil” que apenas 37 pessoas em gabinetes fechados tenham pretendido arquitetar um golpe. Bem, o artigo tem razão num ponto: tal trama, assim descrita, é inverossímil; embora, digo eu, não impossível, dada a avidez do grupo palaciano por permanecer palaciano. Seguiu esta trama desenhos análogos anteriores, quando um grupo relativamente pequeno de pessoas tentou tramar e executar um golpe de estado, como, para citar alguns exemplos, nos episódios de Aragarças e Jacareacanga, nos anos 50, ou no caso de Sílvio Frota vs. Ernesto Geisel, nos anos 1970.

Sobreleva o articulista o fato de que as quase quatro dezenas de golpistas do passado governo tentaram articular apoios no país inteiro, a começar no cercadinho do ex-presidente, depois, já em meio ao clima pré- e pós-eleição de 2022, com a pressão dos seus seguidores na porta dos quartéis e as arruaças para impedir a diplomação do presidente eleito, o Lula, tudo culminando na patetada de 8 de janeiro de 2023. Mas é verdade que o golpe tramado tinha tudo para não acontecer, como de fato não aconteceu. O que não quer dizer que não houvesse perigo para a democracia, nem que seus propósitos fossem dos mais ameaçadores.

Um dos fatores impeditivos do golpe esteve no próprio comportamento do núcleo conspirador. Um autogolpe, como hoje se convenciona chamar um golpe de Estado executado por quem já está no poder, deve partir do princípio de que algo põe em risco ou impede quem governe de governar, seja uma suposta conspiração externa ou interna ao próprio governo. Ou seja, é necessário algum argumento muito consistente, pelo menos na aparência, justificando que um governo rompa a ordem institucional em que se apoiou para chegar aonde chegou.

A primeira dificuldade neste trajeto estava no próprio grupo palaciano que tramava o golpe. Parece que, a começar pelo seu chefe, o presidente, eles faziam de tudo, menos governar. Formavam um bando de desocupados que só conspiravam, organizavam passeios de jetski ou de motocicletas, intervenções canhestras nos cercadinhos do país. Simplesmente delegaram a tarefa de governar para o Paulo Guedes, que fez o que pôde e não pôde, também o que devia e o que não devia. O tecido social e a credibilidade do país naufragaram, apesar dos esforços da mídia corporativa para demonstrar o contrário.

O próprio presidente parecia ser o chefe da vagabundagem, fazendo discursos que oscilavam entre a ameaça e o ridículo, cometendo gafes sem parar, desde comer pizza na rua de Nova Iorque por não querer reconhecer publicamente que se vacinara, embora em segredo tivesse forjado um atestado de vacina para poder entrar nos Estados Unidos, a pisar no pé de Angela Merkel, ouvindo em troca um “só podia ser você”.

Em segundo lugar, retroativamente pode-se ver que não havia apenas um golpe sendo arquitetado. Havia pelo menos três. Um, o mais evidente, era o da família real, quer dizer, presidencial. Outro previa, além de impedir que Lula fosse eleito e, se eleito, tomasse posse, que uma junta militar assumisse o governo, destronando o próprio presidente. Ainda outro projeto de golpe, o mais obscuro, abria as portas para que uma liga de milicianos, próceres do crime organizado, evangélicos da direita radical, oficiais de segundo escalão e lava-jatistas sequiosos de poder e/ou dinheiro assaltasse as instituições federais. Imagino que até membros da Opus Dei devem ter se assustado.

Em resumo, no fundo, não havia unidade na trama do golpe. Quem seria o capo do golpe depois do golpe? O presidente? Braga Neto? Uma junta militar que não contava com o próprio comando das Forças Armadas? Alguém mais?

Ao mesmo tempo, o motivo alegado para o autogolpe, qual seja, a existência de fraudes no sistema eleitoral, carecia de verossimilhança. Atraiu – melhor que “convenceu” – bandos de fanáticos, de oportunistas no jornalismo e na política que, se eram numerosos, nunca mostraram nem viram uma única evidência consistente. Enfrentaram até mesmo um descrédito internacional para suas denúncias. Governos europeus e dos Estados Unidos reafirmaram sua confiança no nosso sistema eleitoral.

Neste ponto deve-se registrar a mudança de comportamento das mais altas autoridades judiciárias do país. O STF acobertou o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e a exclusão de Lula da eleição de 2018. Algo – não se sabe muito bem o quê – fez que suas lideranças mudassem de posição durante o governo passado. Talvez a consciência de a inundação miliciana do Palácio do Planalto os ameaçava também.

Se conceitualmente a articulação do golpe não se sustentava, a não ser para bandos de “crentes” obstinados, sua articulação demonstrou limitações evidentes.

Nenhum dos cabeças militares do golpe palaciano tinha comando significativo de tropas, nem de blindados, muito menos de bases aéreas. Conseguiram promover arruaças na capital e alhures; reuniram bandos de “crentes” para pressionar os quartéis, algumas vezes se expondo ao ridículo, como no caso da tentativa de contactar extra-terrestres em frente ao Comando do Exército em Porto Alegre. Demonstraram buscar apoio no baixo e médio clero das Forças Armadas, das polícias militares estaduais, e no comando da Polícia Rodoviária Federal. Foi com estas “armas” a tiracolo que definiram a fragmentada articulação do golpe intramuros do Palácio do Planalto.

E só então buscaram a adesão do Comando das Forças Armadas. Este Comando, que já recebera vários recados do governo norte-americano de que não apoiaria o golpe, viu-se diante do que poderia ser considerada uma confusa quebra da hierarquia militar, o que selou o destino da articulação desarticulada. Conseguiram uma vaga possibilidade de apoio através de “blindados da Marinha”. Mas os comandos da Aeronáutica e do Exército recusaram o golpe e parece até que mandaram os golpistas de volta para casa, isto é, o Palácio do Planalto.

Para completar o quadro já comprometido, num gesto contraditório, às vésperas da posse do presidente eleito, o presidente-líder da intentona ausentou-se do país. O que esperava ele? Ser chamado triunfalmente de volta para reassumir o comando do país? Fugir de responsabilidades diante do que poderia acontecer? A ambiguidade de seu gesto revelou uma aliança entre fantasia e covardia que não deve ter animado sequer seus cúmplices mais próximos.

Deste modo, tudo o que restou aos articuladores do golpe foi promover a arruaça definitiva do oito de janeiro de 2023. Apesar dos riscos que continha, da depredação promovida, do apoio protetor encontrado no quartel diante do qual se reuniam antes de avançar para a Praça dos Três Poderes, foram debelados pela PM da capital, providencialmente posta sob novo comando e com a supervisão do então ministro da Justiça recém empossado. Ao mesmo tempo, o novo presidente já obtivera o amplo reconhecimento internacional sobre a legalidade e a legitimada de sua posse.

Esta análise das debilidades do golpe tramado não deve contribuir para subestimar os riscos que a democracia correu no país, nem que ainda pode vir a correr. A serpente não está morta. O cenário internacional, hoje mais adverso par a democracia do que há dois anos, continua a cevá-la. Idem, os nervosismos de mercado e mídia corporativa que continuam a investir na deslegitimação do governo legal e legitimamente eleito e empossado, e de seu programa de alcance social. O objetivo destas iniciativas é o de enfraquece-lo para a eleição de 2026. Se este objetivo não for atingido, certamente haverá quem pense em soltar de novo a serpente hoje contida, mas sempre de bote armado.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]


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