Por VERA BOHOMOLETZ HENRIQUES*
Salta aos olhos a ocupação de todo o estado de São Paulo por escolas cívico-militares, desde o rio Paraná até o litoral, do Vale da Ribeira à fronteira com Minas Gerais. A privatização da gestão escolar alcança amplitude semelhante
1.
Há uma grande interrogação sobre o que deve ser a escola, em tempos de comunicação instantânea, múltipla, enlouquecida, da informação, ou da desinformação. Livros não podem ser lidos instantaneamente, e, no passado, precisávamos de mestres que nos mostravam os caminhos para descobrir sua magia e nos sugerir leituras, na escolha entre tantos.
Diante de estórias que invadem a telinha nas mãos das crianças, ou jovens, continuamente, a cada momento – como convocá-los para conhecer o mundo, sua história, sua gente e suas criações, tão distantes do apelo imediato da nova cor de cabelo do grupo que seguem no instagram?
Qual é o papel da escola básica pública, hoje? Qual o papel de professoras e professores? Diante do novo cenário, que mudou regras de convivência, essa questão mobiliza, no mundo, pensadores da educação. O que fazer com o telefone celular na sala de aula? diante da pressa introduzida pelas mensagens curtas e curtíssimas das redes sociais, na hora de ler um texto de duas páginas? da força da imagem em movimentos coloridos e chocantes, em oposição à sala de aula fechada, organizada em carteiras? da revolta de crianças e jovens com a escola estagnada?
Realizar esse debate, no país, seria urgente, para repensar a organização da escola pública e a formação permanente de seus docentes. Urge reorientar a política pública da Educação. Como em qualquer área das ciências humanas e sociais aplicadas, esse debate não pode prescindir da participação daqueles que estão envolvidos na prática, em algumas dezenas de horas semanais de convivência com os estudantes.
Não pode ficar restrito a pesquisadores, assim como na organização da rede de saúde não pode faltar a participação daqueles que estão em contato direto com a população, no cuidado de sua saúde. O Sistema Único de Saúde, único em mais de um sentido, foi construído em termos de conselhos de trabalhadores e usuários da saúde eleitos, em todos os níveis da hierarquia.
No entanto, por motivos que escapam, no caso da Educação, essa ideia não é óbvia – imagina-se que qualquer pessoa “razoável” pode opinar sobre o tema, pensamento fixado no dito conhecido de “quem sabe, faz, quem não sabe, ensina“. Assim, recentemente, com base nessa ideia, envolveram-se no planejamento e na organização da educação pública também os empresários, que deveriam entender e dedicar-se à organização de negócios, não de gente, ou das possibilidades de descoberta do encanto da convivência e do conhecer o mundo.
Destaca-se a atuação da Fundação Lemann, na construção do currículo brasileiro do ensino médio, como relatado pelas pesquisadoras Tarlau e Moeller.[1] A discussão do que deveriam aprender nossos jovens na etapa final do ensino básico iniciou-se em um seminário em, pasmem, Yale. Em pouco tempo, a fundação que organizou o simpósio tornou-se assessora do Ministério da Educação do Brasil.[2]
Seriam, nesse caso, inúteis tantos departamentos de pesquisadores da educação, da psicologia, da neurociência, em nossas universidades, cujos estudos raramente chegam aos outros institutos ou departamentos?
Em resposta negativa a essa pergunta, academias de ciências, medicina e engenharia norte-americanas encomendaram a todos esses pesquisadores que propusessem caminhos para uma metodologia de ensino, a partir de conhecimentos estabelecidos em suas áreas, no período de três décadas, o que resultou na publicação “Como as pessoas aprendem: cérebro, mente, experiência e escola”.[3]
A proposta desse estudo é que o aprendizado acontece em processo semelhante ao processo pelo qual passa o pesquisador, que busca soluções para perguntas, se debruça, experimenta, discute com seus pares, erra, volta à questão….
2.
Ignorando essas discussões, a era do supercapitalismo trouxe a São Paulo a mágica das plataformas “educativas”,[4] em que um clique basta para localizar a Nigéria, no mapa, ou a posição do elemento sódio, na tabela periódica. O professor passa a ser um elemento descartável, pois seu papel reduz-se a apresentar powerpoints e disparar tarefas, preparadas por autores anônimos.
Mas de que servem essas duas informações, se a criança, ou o adolescente, não enxerga o planeta como um ambiente do “antropoceno”, ou a história da África hoje e ontem, ou a ideia integradora de estrutura atômica que está por trás de tantos materiais que fazem parte do nosso cotidiano?
Sem que essa pergunta seja ao menos considerada, no lugar de equipe pedagógica, desempenham papel fundamental, na nova política educacional do governo do novo ex-capitão, as equipes gestoras, que controlam semanalmente a utilização da parafernália pronta digital pelos professores da escola. Interessante a designação da plataforma de controle: super business intelligence. Diretores ameaçam professores com transferência ou demissão (ilegal, por sinal) e, se não exercem seu controle de forma efetiva são afastados.
Mais recentemente, a política educacional do governo estadual se espraiou para a prefeitura da capital. A recente demissão de diretores de escolas municipais, alguns premiados, outros com evidente inserção em suas comunidades foi noticiada nos grandes jornais.[5] A justificativa, como no caso do estado – embora esta não tenha chegado à comunicação impressa, televisiva ou outra – é a de que não foram cumpridas metas.
No entanto, uma verificação desta explicação da Prefeitura não resistiu a uma confrontação com os dados, realizada por pesquisadores de Rede Escola Pública Universidade (REPU), como noticiado, também, pela grande mídia.[6] Quais teriam sido os critérios, então, para o afastamento destes 25 diretores, e não de outros, entre os 345 que não cumpriram a meta, muitos dos quais com resultados semelhantes, ou piores?[7]
Seriam movidas pela fúria privatista, já bastante adiantada no estado, que já englobou instalações de cultura, de pesquisa, de saúde, de educação, ou cemitérios e vias urbanas? A privatização da gestão escolar, nos dois âmbitos, estado e prefeitura, vem sendo anunciada.[8]
Não importa que contrarie a Constituição Federal, ou a própria lei do estado de São Paulo, que prevê a participação do Conselho Escolar, composto por alunos, pais, professores, funcionários e comunidade, na gestão da escola. Há alguma experiência, no mundo, de gestão democrática conduzida por empresa privada trabalhando em conjunto com a comunidade?
3.
Em perspectiva complementar, observamos o levante da nova extrema direita, que movimentou águas subterrâneas e fez emergir os que continuavam acreditando no sucesso da caserna, na gestão do país. No caso da escola, trouxeram uma solução fácil: a disciplina militar dos estudantes reorganizaria a escola para que todos pudessem aprender melhor.[9]
Assim, em São Paulo, militares aposentados foram contratados como “educadores”, para introduzir as práticas da fila, do cabelo curto e do exame criterioso da indumentária, e, dada sua formação especial, receberem remuneração adequada, maior, naturalmente, do que a dos professores, preparados especificamente para atuar na educação.
Assustados com a investidura empresarial e militar, educadores e pesquisadores, isoladamente, ou através de comunidades e coletivos, vêm se mobilizando há alguns meses.
A ideia de uma Frente Popular em Defesa da Educação Pública ganhou a participação de dezenas de grupos espalhados pela urbe, e teve seu lançamento em 31 de março, no auditório nobre da Faculdade de Direito. Brigada pela Vida, Coletivo Paulo Freire, Salve a Escola Pública, Coletivo Educar Liberta, Pedagogia Periférica, Fórum EJA São Paulo – só para citar alguns dos inúmeros agrupamentos presentes, de nomes desconhecidos, como tem sido característico das manifestações em defesa das instituições democráticas, na última década.
Em meio a essa movimentação, que surge independente em diversos espaços, pais de alunos de uma escola estadual da zona Sul, participantes do Conselho da Escola, viram suas iniciativas serem bloqueadas, e o diretor da escola afastado. Na busca de um caminho coletivo para enfrentar o ataque à escola, que lembra épocas históricas bastante tenebrosas, juntou-se um grupo de pais de algumas escolas.
Inspirados na experiência chilena de 2019, em que o estado revidou com violência às reivindicações de estudantes, denunciada através de um mapa da violência do estado, propuseram-se a reunir dados sobre a tentativa de transformar a escola pública de São Paulo em empreendimento empresarial sob controle ideológico da direita.
Surge, assim, o mapa interativo do ataque à escola pública de SP. Sua construção iniciou-se a partir de notícias de jornal e de documentos divulgados pela Secretaria Estadual de Educação de SP. A ideia é que, após seu lançamento, que ocorreu em 17 de junho, grupos e pessoas contribuam com informações que permitam formar um quadro preciso do tamanho da iniciativa dos governos do estado e do município.
Ao buscar um zoom do estado de São Paulo no mapa, salta aos olhos a ocupação de todo o estado por escolas cívico-militares, desde o rio Paraná até o litoral, do Vale da Ribeira à fronteira com Minas Gerais. A privatização da gestão escolar, ainda em menor escala, alcança amplitude semelhante.
A punição de professores e diretores aparece mais concentrada em torno da grande São Paulo – talvez porque a construção do mapa tenha se iniciado na capital, e, também, porque essa informação depende de manifestação do professor ou diretor. Entretanto, as ameaças de processo administrativo, especialmente na rede estadual de ensino, têm amedrontado muitos educadores que relutam em compartilhar suas histórias.
Na universidade, estamos muito distantes desse torvelinho. Quanto tempo levará a chegar?
*Vera Bohomoletz Henriques é coordenadora do Projeto Escola Pública do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP).
Notas
[1] Tarlau, R., & Moeller, K. (2019). ‘Philanthropizing’ consent: how a private foundation pushed through national learning standards in Brazil. Journal of Education Policy, 35(3), 337–366. https://doi.org/10.1080/02680939.2018.1560504
[2] O Projeto Lemann e a Educação Brasileira – 2a Edição, Bruna Werneck Canabrava, Caminhos Editora 2022
[3] Como as pessoas aprendem: cérebro, mente, experiência e escola, Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos,SENAC 2007
[4] Nota Técnica, Plataformas digitais nas escolas públicas paulistas: o que são e como controlam o trabalho pedagógico, REPU/GEPUD 2025
[7] https://www.repu.com.br/_files/ugd/9cce30_eb8fc20b88e64ac8aee9a424a40088da.pdf
[8] https://www.metropoles.com/sao-paulo/governo-de-sp-autoriza-edital-para-privatizar-gestao-de-143-escolas e https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2025/06/03/prefeitura-de-sao-paulo-vai-comecar-concessao-de-tres-escolas-a-iniciativa-privada-ainda-neste-ano.ghtml
https://www.educacao.sp.gov.br/escolas-da-rede-estadual-de-sp-vao-adotar-o-modelo-civico-militar-partir-segundo-semestre/ [9] https://operamundi.uol.com.br/constituinte-no-chile/mapa-interativo-mostra-casos-de-violencia-estatal-durante-protestos-no-chile/ e https://express.adobe.com/page/ryYFhL2SNjzve/
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