Bolsonarismo e estética do suicídio

Imagem: Ekaterina Astakhova
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SERGIO SCHARGEL*

Breve comentário sobre os acontecimentos de 08 de janeiro

“Em seus dias de dor causam-me os homens / Tal pena, que nem posso atormentá-los” (Goethe, Fausto).

Todos nós vimos, durante a pandemia, um aspecto do bolsonarismo que não pode ser classificado de outra coisa senão de suicida. Ao militar pela liberdade irrestrita – uma distopia sem respaldo no real –, o séquito militava pelo seu direito de morrer. Semelhante ocorreu no 08 de janeiro, uma pulsão niilista pela morte, a destruição tornada estética. E isso não é coincidência.

A essa altura, poucos discordam das aproximações do bolsonarismo com o nazi-fascismo. Caso não no plano programático, ao menos no estético. Entre vários elementos em comum, um se destaca: a tanatofilia. São movimentos que têm, em seu âmago, uma pulsão pela morte. E isso se aplica não apenas aos inimigos desumanizados, mas até mesmo à sua própria seita. A morte se torna tão estetizada quanto a política em si, desejável, um passo natural para alcançar o imaginário clássico do guerreiro mítico. Uma morte em favor do que é visto como um bem maior, o que aparece no lema dos Squadristi, “Me ne frego” ou, em tradução livre, “Não me importo”; ou, ainda mais, no dos falangistas “Viva la muerte!”.

Em sua doutrina, publicada dez anos depois da Marcha Sobre Roma, Benito Mussolini diz com todas as palavras que morrer pela Itália é um mal necessário para levá-la à grandeza. O belicismo é tão fundamental ao regime que afirma que a paz “é hostil ao fascismo”.

Assim como o bolsonarismo, o nazi-fascismo surgiu como uma religião capaz de mobilizar um séquito, mobilizado por um ressentimento melancólico, ao suicídio coletivo. O líder, como um messias – coincidência fortuita e sintomática este ser o segundo nome de Jair – atua contra o vácuo e fornece um sentido, uma causa em comum, uma explicação para frustrações e ressentimentos. Grupos específicos, aquilo que Hannah Arendt denominou “inimigos objetivos”, são escolhidos como culpados para as frustrações dessa massa de ressentidos, que se tornam progressivamente agressivos e dogmáticos. Não importa o inimigo – podem ser judeus, comunistas, LGBTQ+ –, importa apenas que existam, que se tenha um alvo para mobilizar paixões e ódio. Tanto pior se houver uma crise econômica e um desejo de retorno a um passado idealizado.

O nazi-fascismo não somente não encontra seu fim junto de Hitler e Mussolini, como evolui para novas vestes e se mantém, ainda que enfraquecido, mesmo na era da democracia liberal do pós-guerra. E aflora quando as condições se mostram favoráveis. Adorno e seu grupo de pesquisa já haviam percebido e tratado disso no livro Personalidade autoritária, quando apontaram que “fascismo não era um episódio isolado, mas estava presente de forma latente em amostras da população norte-americana”. Como um animal preso em uma coleira, que reage agressivamente quando solto. Ou, como diz Rob Riemen, o “filho bárbaro da democracia de massas”.

Mesmo o maior dos autoritários sempre se afirmará democrata. Qualquer trabalho que lide com pessoas e se relacione com democracia, como se sabe, deve evitar questões diretas sobre apoio a democracia. A parcela de antidemocratas assumidos é ínfima, quando comparada aos com uma personalidade autoritária adormecida, capazes de aderir ao autoritarismo se as condições se mostrarem favoráveis.

Por mais que explicitamente autoritários para nós, os bolsonaristas que invadiram Brasília no último dia 08 de janeiro se veem como os verdadeiros defensores da democracia. É paradoxal, e certamente demagógico, mas Jair Bolsonaro e seus súditos se enxergam não como autoritários em si, mas como paladinos responsáveis por resgatar uma democracia tomada por forças autoritárias e degeneradas. Um autoritarismo para acabar com o autoritarismo, portanto. A violência do real, contra uma violência do ficcional. Para isso, o messias, que se afirma perseguido, desloca seus soldados para marchar ao som de “Viva la muerte!”. Dos falangistas a Benito Mussolini, o bolsonarismo evidenciou ser herdeiro direto de uma tradição política messiânica e suicida.

Em 1938, os integralistas, enxergando o Estado Novo como traição, organizaram um levante contra Getúlio Vargas. Plínio Salgado afirmou, pelo resto de sua vida, não ter sido responsável pela manifestação. Acusou o movimento de ter sido contaminado e infiltrado por parcelas da esquerda. Permaneceu submisso ao Estado Novo, mesmo depois de preso e de seu autoexílio. Da mesma forma, os Bolsonaro negam qualquer participação, e chegam ao ápice de apontar, sem provas, uma suposta infiltração da esquerda. Enquanto os peões se movem para o abate, o pastor permanece em sua torre, em segurança, negando qualquer responsabilidade sobre suas ovelhas, mesmo após soltá-las e alimentá-las.

*Sergio Schargel é doutorando em ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de O fascismo eterno, na ficção e no real (Bestiário).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES