Antecedentes da eleição de 2022

Imagem: Romario Roges
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Por FLÁVIO MAGALHÃES PIOTTO SANTOS*

O que é diferente no cenário atual para Bolsonaro é contra quem ele irá concorrer

Duzentos anos se passaram desde a independência do Brasil e nada parece mais distante de uma real independência para o país. A condição social da maior parte da população brasileira é de grande miséria e sofrimento, haja vista o aumento da fome, das pessoas sem-teto, do desemprego, da violência, da má qualidade da saúde e do transporte. De fato, o Brasil passa por uma intensa crise econômica e social. Há também uma crise política, com um sistema que  abriga não políticos, mas sim capangas a serviço de frações do capital como a indústria farmacêutica, os planos de saúde, latifundiários, indústria e bancos. O aumento de votos nulos e brancos nas últimas eleições mostra que a população não se sente representada pelo atual sistema político.

Pois bem, o cenário é grave e necessita de reflexão para se obter alguma resposta satisfatória sobre o que se fazer diante da crise atual. Antes do início de nossa análise, é necessário ter em mente alguns pontos. O primeiro é de que a eleição não resolverá os problemas sociais enfrentados pela população. A eleição é um dos mecanismos que existem para realizar uma disputa política, mas nem o único e nem o mais importante. A luta política não é feita a cada dois anos quando se discute em quem votar, mas cotidianamente naquilo que podemos chamar de processo de conscientização política. Portanto, atribuir à eleição de 2022 um cenário de bem contra o mal ou salvação contra o apocalipse é uma ingenuidade muito grande, quando não um ato de má fé.

Um segundo ponto vital refere-se à história. É preciso analisar primeiro o governo que aí está, sua política econômica, sua orientação cultural, sua relação com o latifúndio, com os bancos, com a indústria. Assim, será possível ter uma dimensão correta do que representa o atual governo em relação à condição social enfrentada atualmente. Contudo, isso não é suficiente. É necessário recuperar o desenvolvimento histórico recente para se ter clareza do que foi feito ou deixou de ser feito, em especial a História de governos de atuais candidatos, tais como Lula. Comecemos então nossa análise.

 

Antecedentes

Num distante 2018, o cenário era de apreensão e dúvida. Após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o país foi governado pelo representante das grandes frações do  capital e vice da própria Dilma, Michel Temer. Temer fez um governo de extrema impopularidade, como não podia deixar de ser. Implementou reformas vitais à burguesia, tais como a trabalhista, que, a pretexto de produzir mais vagas de emprego, retirou diversos direitos dos trabalhadores e aprofundou a superexploração da força de trabalho.

Esta reforma dizia apenas querer flexibilizar a legislação vigente, o que na verdade era um eufemismo para  legalizar condições precárias de trabalho, aumentar a superexploração da força de trabalho e manter o lucro num momento de crise sistêmica do capital. Além disso, seu governo aprovou uma medida para estabelecer um limite para os investimentos públicos (saúde, educação, transporte, moradia, alimentação, cultura, esporte, etc.) por 20 anos.

Esta proposta de emenda à Constituição foi feita para atender as frações capitalistas que lucram com o Estado brasileiro, em especial em relação à dívida pública, mas também com as privatizações e pacotes de benefícios. A medida era uma necessidade da classe capitalista como um todo para manter sua taxa de lucro e para desviar o dinheiro do Estado para si própria. Temer foi a saída que as distintas frações capitalistas acharam para conter a crise aberta com o impeachment. Temer se segurou no governo, pois não existia mais ninguém para colocar no lugar. A esquerda estava desmobilizada e sem orientação, não fazendo, assim, qualquer combate e resistência significativos.

Nesse mesmo ano, o ex-presidente Lula foi condenado e preso pela operação Lava-Jato, capitaneada pelo ex-juiz Sérgio Moro. Esta operação teve uma clara orientação política e parcialidade abissal, como toda justiça dentro do sistema capitalista tem de ser. Esse fato não reduz em nenhuma medida o fato de o próprio Lula ter se aproximado demais de empreiteiras que não parecem ter uma grande vontade de melhorar a condição de vida da população brasileira. Desta forma, o PT estava sem o seu principal candidato e acuado diante do cenário eleitoral que se avizinhava.

Dentro da centro-direita, existia a candidatura de Ciro Gomes, certamente um dos candidatos que mais estuda a realidade brasileira, desde seus aspectos sociais até sua questão econômica. Sua postura é insuficiente, no entanto, para romper de forma efetiva com a dependência na qual o Brasil se encontra. Tanto é que ele se orgulha de ter feito parte da elaboração do Plano Real, que foi uma forma de aprofundar a dependência brasileira em face das potências capitalistas estrangeiras. A crítica geralmente feita a ele de que seria um candidato desequilibrado e que teria acessos de raiva é um erro de análise completa.

A viabilidade de uma proposta política não se dá através das características pessoais daquele candidato, mas sim de suas propostas e de sua real conexão com o povo. Não importa se Ciro Gomes é desequilibrado ou não, se tem acessos de raiva ou não. Importa saber o que ele fará para acabar com a superexploração da força de trabalho e com a miséria da maior parte da população.

No campo da esquerda, existia a candidatura de Guilherme Boulos pelo PSOL, que contava com o apoio de outros partidos de esquerda, como o PCB, por exemplo. Boulos é um militante do MTST com uma longa trajetória política de combate às injustiças e desigualdades sociais, em especial em relação à moradia. Era de se esperar uma resposta crítica e até revolucionária de sua candidatura. Mas não foi isso que aconteceu. Em um dos primeiro debates que participou, Boulos começou sua fala saudando o ex-presidente Lula, então na cadeia. A saudação não é algo irrelevante, tampouco deve ser negligenciada. Ela indica a orientação que Boulos pretendia ter dentro do seu espectro político, isto é, uma subserviência aos interesses do PT, ou melhor, do próprio Lula. Mas ainda falaremos sobre o governo Lula.

Por fim, no campo da extrema direita existia um candidato que participava da vida política do país há 30 anos, mas sem nunca ter aprovado qualquer projeto ou ter feito algo de relevante. Sua fama residia em fazer ataques a mulheres, troçar das pessoas pobres, tecer comentários racistas e saudar a ditadura civil-militar de 1964, fazendo inclusive apologia da tortura. Jair Bolsonaro era esse candidato. Expulso do exército, Bolsonaro nunca deixou de ter grande admiração pela caserna. Esteve ligado à milícia do Rio de Janeiro, que é uma organização criminosa que controla diversas regiões da cidade e subjuga sua população. Bolsonaro é uma pessoa que não tem conhecimento de nada, fala absurdos como se fossem a coisa mais normal, xinga e ofende quando é contrariado e se irrita facilmente quando não sabe responder perguntas um pouco mais complexas. Uma figura patética, mas que contém grandes ameaças em sua postura.

Dada essa completa falta de conhecimento da realidade em todos aspectos (sociais, políticos, culturais, econômicos), sua candidatura esteve pautada em dois pontos. O primeiro era de ser contra tudo que estava instaurado no sistema político brasileiro, ou seja, contra aquele sistema condenado pela imensa maioria da população por justamente abrigar ladrões e não políticos. Esse ponto foi de extrema importância para sua candidatura, pois ao falar contra o sistema político vigente, Bolsonaro automaticamente se transformou numa alternativa para milhões de pessoas insatisfeitas com o cenário político do país.

Seu grande trunfo foi se apresentar como alternativa real ao que se encontrava presente naquele momento. Isto era evidentemente falso, pois Bolsonaro era parte deste mesmo sistema, ele sendo um desses que eram efetivamente ladrões. Mas como a consciência crítica da população não caminha com suas necessidades, essa mentira se transformou numa verdade mais por vontade do que por efetividade real. Insatisfeitos com o petismo, com o PSDB e com todos os outros candidatos, a população viu em Jair Bolsonaro uma oportunidade de colocar algo novo na política, nutrindo falsas esperanças de que ele acarretaria uma mudança na sociedade brasileira. A falta de conhecimento histórico e de consciência crítica levou milhões de pessoas a aderir a esta falácia. E também existiam aqueles que efetivamente concordavam com Bolsonaro em termos morais (defesa da ditadura, anticomunismo) e votaram nele.

Um segundo ponto de extrema importância foi Jair Bolsonaro ter colocado um guru da escola de Chicago e economista ultraliberal para ser o seu futuro ministro da Fazenda. Paulo Guedes era o responsável por ditar qual seria a política econômica do governo Bolsonaro. E apesar de o próprio Jair Bolsonaro ser um nacionalista reacionário, a única forma de angariar apoio das frações mais importantes do capital era justamente apelando para alguém que fosse efetivametne adotar políticas em favor do capital estrangeiro e nacional. Paulo Guedes foi a resposta que Jair Bolsonaro conseguiu dar a esses grandes anseios e medos por sua candidatura.

De início, os grandes meios de comunicação ficaram apreensivos com sua candidatura. Contudo, assim que Paulo Guedes foi anunciado, O Globo, O Estado de São Paulo, Folha de São, Valor Econômico, Rede Globo viram alguém que defenderia os interesses liberais em toda sua potência e assim entenderam que Bolsonaro era um mal necessário, pois o candidato do PT, Fernando Haddad, apesar de também ser um liberal, teria alguma conexão, ainda que fraca, com reivindicações sociais. Paulo Guedes apareceu como um raio em céu azul para todos desavisados, tal qual Jair Bolsonaro. E assim, seu desconhecimento passou a favorecê-lo e transformá-lo em um sábio da economia.

A campanha começou e houve alguns debates, que mostraram a pobreza de praticamente todos candidatos. Um candidato do Rio de Janeiro chamado Cabo Daciolo, antigo filiado ao PSOL, atraía o riso da audiência ao apontar planos comunistas para a implementação da Pátria Grande na América Latina. Seu discurso beirava a sandice, ainda que contivesse algumas críticas reais à situação da classe trabalhadora. O restante dos candidatos se digladiavam e Ciro Gomes, Fernando Haddad e Guilherme Boulos pareciam ser os que sabiam alguma coisa sobre a realidade brasileira. Jair Bolsonaro se apresentava como de fato era: alguém que não sabe de nada e vive de tiradas que distorcem a realidade.

Eis que, em um comício, Jair Bolsonaro recebe uma facada em seu estômago. Ele é operado e sua saúde melhora. Apesar disso, ele escolhe deliberadamente não participar de mais nenhum debate. Uma decisão incrivelmente acertada, pois assim não demonstraria sua total ignorância de forma escancarada e poderia levar a candidatura ao êxito. E foi o que de fato aconteceu.

No segundo turno, estiveram presentes Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. A rejeição ao PT era extremamente grande e Jair Bolsonaro se aproveitou disso. Não havendo qualquer debate, restou a Fernando Haddad torcer para sua rejeição diminuir, o que não ocorreu. O resultado foram 57 milhões de votos para Bolsonaro e 47 milhões para Fernando Haddad, sendo que entre brancos, nulos e abstenções o total chegou a 45 milhões, evidenciando que uma grande parte da sociedade brasileira não via em qualquer um dos dois uma alternativa real à podridão do sistema político. Bolsonaro sepulta a lúgubre derrota do petismo e do lulismo, iniciando assim seu governo. É dele que devemos nos ocupar agora.

 

O governo Bolsonaro

A despeito do que dizem muitas pessoas, o governo de Jair Bolsonaro não é o pior governo da história do Brasil. Ele é sim muito ruim. Jair Bolsonaro iniciou seu mandato com apenas uma certeza do que deveria fazer: deixar Paulo Guedes realizar sua política econômica ultraliberal e tentar aprovar mais reformas que fossem benéficas para o capital e deletérias para os trabalhadores. Nos diversos outros campos (cultura, saúde, educação, transporte, meio ambiente), Jair Bolsonaro não sabia o que fazer, mas sabia que tinha que desmontar o mínimo que existia de políticas públicas benéficas.

E foi esse o roteiro que seu governo seguiu. A grande reforma conquistada por Bolsonaro, e que apaziguou por um tempo a ânsia por lucro das diversas frações capitalistas, foi a reforma da previdência. À luz da sua amada escola de Chicago, Paulo Guedes elaborou uma proposta de reforma previdenciária que se espelhava no que foi implementado durante a ditadura de Salvador Allende no Chile. Esta reforma proposta por Guedes alterou o próprio financiamento da previdência, passando de um regime de transição, onde os trabalhadores ativos contribuem para pagar a aposentadoria dos inativos, para um de capitalização, onde cada trabalhador é responsável por contribuir para sua própria aposentadoria. Esse fundo previdenciário seria gerido por entidades públicas e privadas, mostrando sem qualquer inibição que o dinheiro dos trabalhadores iria direto para a especulação bancária, criando mais do capital fictício.

Além disso, a reforma da previdência aumentou a idade mínima para aposentadoria tanto de mulheres, quanto de homens. Isso significa que os trabalhadores precisarão efetivamente trabalhar mais tempo de suas vidas para conseguir se aposentar e receber um salário extremamente baixo. Esta foi uma medida que visou claramente à extração de mais-valia absoluta, porque expande o tempo de trabalho dentro da vida do trabalhador. Medida essa que só poderia acontecer em um país dependente como o Brasil, onde o desenvolvimento industrial regrediu e por isso mesmo não é possível uma extração de mais-valor relativo.

Foi uma vitória para os capitalistas e uma derrota estrondosa para os trabalhadores. Os meios de comunicação, que fabricam a consciência da sociedade, ficaram por meses dizendo que a previdência era deficitária e dessa forma transformaram uma mentira em verdade. O que esses mesmos meios de comunicação criticam no governo Bolsonaro, a saber, de mentir e distorcer informações, é feito diuturnamente em relação aos tópicos que interessam às grandes frações do capital. A reforma da previdência foi vendida não como uma opção, mas como uma necessidade.

Não houve nada que os trabalhadores pudessem fazer. À esquerda, derrotada e fragmentada, restou aceitar o resultado e torcer para uma possível reversão no futuro com a eleição de algum governo menos ultraliberal. A ingenuidade dá maus frutos.

O mesmo aconteceu com uma empresa estatal, a Petrobrás. A Petrobrás é administrada há algumas décadas não como uma empresa pública, mas sim como uma empresa que deve dar lucro aos acionistas. Isso não foi Jair Bolsonaro que inaugurou. Os problemas estão latentes agora justamente porque houve uma guerra entre Rússia e Ucrânia que acabou por impactar todo o fornecimento de petróleo ao redor do mundo, além da própria crise sistêmica do capital que já tinha seus reflexos nos preços da gasolina, óleo diesel e etanol. Agora, os preços destes combustíveis estão chegando a níveis estratosféricos e Jair Bolsonaro tira e coloca novos presidentes da estatal. Não basta mudar a política de preços da Petrobrás ou fazer um “colchão” que possa contrabalançar os efeitos de uma crise. É necessário estatizar a Petrobrás, defendê-la da sanha do capital estrangeiro, transformá-la em uma empresa que esteja a serviço da população brasileira e não contra ela.

No campo da cultura, Jair Bolsonaro esvaziou qualquer forma de financiamento artístico, denunciando isso como “mamata” ou “ideologia”. O Ministério da cultura foi extinto e foi criada uma secretaria da cultura. Ocupada por pessoas sem qualquer comprometimento com a cultura e a arte como elemento fundamental para a transformação social e para a formação de uma consciência crítica, essa pasta teve um secretário que fez um discurso igual a um discurso do nazista Joseph Goebbels. Também teve a participação da atriz Regina Duarte, que se algum dia entendeu a cultura como transformadora, abandonou de vez isso quando decidiu apoiar Jair Bolsonaro. De fato, a cultura sofreu de uma intensa deslegitimação e falta de verbas. Bolsonaro não quer “ideologia”, mas onde ele diz que há ideologia, há na verdade pensamento crítico e valorização da cultura popular brasileira. É por isso que a cultura constitui uma ameaça constante não somente ao seu governo, mas às elites econômicas e políticas.

Em seu segundo ano de governo, estourou um acontecimento que ninguém poderia prever: uma pandemia de um vírus que teve origem na China. A história opera de uma forma curiosa. Ela traça uma trama, que é feita pelas pessoas daquela determinada época. Essa trama permite que certos personagens históricos ganhem ou percam força. Como diria Marx, “as circunstâncias fazem os homens, assim os homens fazem as circunstâncias”.

Onde Jair Bolsonaro poderia ter se alçado a alguém que consegue fazer alguma coisa corretamente, ele preferiu não fazer nada. Mas não porque ele não sabia o que fazer, mas simplesmente porque ele não se importava com o sistema de saúde e muito menos com a saúde do povo. Sua decisão foi deliberadamente não fazer nada e as pessoas deveriam continuar a ir trabalhar, pois afinal a economia não pode parar. Neste momento, o Sistema Único de Saúde (SUS), público e gratuito, provou o quão importante ele é. E mesmo o então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, um ex-deputado a serviço de querer privatizar o SUS, reconheceu que este era na verdade o maior patrimônio público para o enfrentamento daquela crise sanitária.

Jair Bolsonaro não recomendou o isolamento social, fez piada da utilização de máscaras, incentivou o uso de remédio sem eficácia comprovada, negligenciou a compra de vacinas. E aquilo mesmo que ele tentou salvar, a Economia, se aprofundou numa crise que já vinha de anos antes.

No que tange ao meio ambiente, Jair Bolsonaro nunca escondeu seu desprezo pelas comunidades indígenas e suas reservas, a preservação da fauna e flora que existem nas nossas florestas e tampouco pela reforma agrária. Ao contrário, suas ações foram todas feitas com o intuito de permitir a garimpeiros e grileiros a devastação e o desmatamento das florestas, a destruição das comunidades indígenas que restam, a venda ilegal de madeiras e por fim a expansão ilimitada dos grandes latifundiários. Esses são carinhosamente chamados de “agronegócio”. E o bordão da globo que o “Agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo” concorda totalmente com a política de valorização e expansão da fronteira agrícola, não importando quais prejuízos isso trará.

É muito interessante observar como os grandes veículos de comunicação não discordam da política de valorização dos latifúndios que Jair Bolsonaro dissemina, mas apenas condenam cinicamente o desmatamento da Amazônia. O jornal O Estado de São Paulo faz diversos editoriais para ilustrar como esse “agronegócio” é eficiente, produtivo, capaz de obter uma safra com alta utilização de tecnologia e por isso não precisaria expandir seus territórios. Nada mais falso que isso, pois a produção capitalista não conhece um limite que não seja ela mesma. A produção agrícola tem de avançar sobre mais territórios, não importa o quão eficiente possa ser, quanta tecnologia altamente sofisticada utiliza. O modo de produção capitalista exige a expansão sempre maior do lucro e a única forma de aumentar a produção após se utilizar de todas as máquinas eficientes é expandir o próprio terreno da plantação. Mas isso é cinicamente ignorado pelos meios de comunicação e também pelos latifundiários, que acreditam ser possível plantar mais alimentos no próprio ar e não na terra.

As diversas outras áreas foram conscientemente negligenciadas por Jair Bolsonaro por não constituírem de fato uma preocupação de seu governo. A Educação teve apenas ministros que procuravam combater a “ideologia” existente nas salas de aulas e que acusavam os professores de tomarem partidos. Aqui está uma das forças do governo Bolsonaro, mas não somente sua, mas de toda a classe dominante. Como Marx e Engels apontaram em A ideologia alemã, as representações que os indivíduos produzem são uma expressão mental consciente – real ou ilusória – daquela determinada realidade, de suas relações sociais. A ideologia atua como um mecanismo de distorção da consciência, porque a própria realidade produz essa inversão.

No entanto, as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante. A ideologia é justamente a tentativa da classe dominante de distorcer a realidade, em primeiro lugar e secundariamente, transformar seus interesses particulares em interesses universais. É assim que funciona quando o “agronegócio” é vendido como algo positivo para toda sociedade, quando é dito que a reforma trabalhista gerará mais empregos, quando aqueles que acusam um determinado grupo de produzir ideologia são eles mesmos os produtores da ideologia que mascara a realidade. Jair Bolsonaro e a classe dominante fazem essa inversão constantemente.

Quando Jair Bolsonaro é acusado de conspirar para realizar um golpe, ele aponta que na verdade ele é quem quer salvar o país de um golpe. A ideologia opera de forma a esconder a verdade das relações sociais e a produzir um mundo fantástico onde tudo aparece de ponta cabeça. Tão fantasiosa, quanto útil, a ideologia conquista as mentes e corações das pessoas de forma a impossibilitar a análise crítica da realidade e com isso impedir a transformação revolucionária da sociedade. Nada há de mais velho e de mais nocivo que a captura da consciência social, pois é dela que se depende para transformar o mundo.

Além de todo esse mecanismo ideológico de ocultação da realidade, Bolsonaro reuniu elementos práticos para mostrar sua força. Concedeu diversos benefícios a policiais, estaduais  e federais, de forma que esta categoria sente uma necessidade de lealdade a alguém que defende seus interesses. A posse de armas foi facilitada, tendo como objetivo armar a população para que, em caso de um golpe por parte de Bolsonaro, ocorra uma apoio armado por parte da própria sociedade civil. Por fim, Bolsonaro abrigou milhares, e isto não é um eufemismo, de militares para trabalhar no governo, concedendo amplos privilégios para esse setor. Em primeiro lugar, Bolsonaro faz isso porque sente que deve sua trajetória ao exército e porque efetivamente sua concepção política, econômica, social do que seria o Brasil foi formada dentro da própria corporação.

Em segundo lugar, é claro o objetivo de ter nos militares um apoio material (armas, soldados) para que, caso haja a necessidade, Jair Bolsonaro possa se defender por via bélica. Está claro que a grande parte do Exército concorda com as concepções de Bolsonaro e apenas uma pequena minoria tenderia a discordar. Até que ponto  o Exército de fato apoiará o atual presidente caso ocorra contestação à perda nas eleições, ainda é um mistério. O Exército em si não apoiará Bolsonaro se não tiver o apoio da burguesia para tanto, ou pelo menos setores importantes dentro desta. Por isso, ainda paira a incerteza sobre o que ocorrerá dentro deste cenário hipotético.

Apesar de todos os escândalos, da falta de qualquer política pública minimamente organizada, da destruição de mecanismos de controle, ainda que precários, de elementos importantes do país (meio ambiente, Educação, etc), Bolsonaro ainda conta com apoio de uma parcela significativa da sociedade brasileira. E é dessa forma que ele chegará às eleições que se avizinham em Outubro, pois se nada abalou essa porcentagem de pessoas que ainda confia nele, não será em 3 meses que isso mudará. O que é diferente no cenário atual para Bolsonaro é contra quem ele irá concorrer. Se antes o ex-presidente Lula estava na cadeia, agora ele está solto e as pesquisas indicam que ele lidera a disputa presidencial até o momento.

*Flávio Magalhães Piotto Santos é mestrando em História Social na Universidade de São Paulo (USP).

 

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