Por KATE MACKENZIE & TIM SAHAY*
Os novos desenvolvimentos tecnológicos estão remodelando a ordem global, assim como as relações bi e multilaterais que a sustentam. Todas as tensões do momento apareceram no fórum BRICS que se reuniu no Brasil
Uma revolução tecnológica global está em andamento, com a China no comando. Os líderes da China chamam isso de mobilização de “novas forças produtivas qualitativas”, referindo-se a “grandes mudanças não vistas em um século”. No Ocidente, em que o crescimento tem se tornado cada vez mais lento, cada avanço que ganha as manchetes é lido como outro “momento Sputnik”.
Ora, isso, tem dado origem a novas ansiedades e à pressão por uma resposta política ambiciosa. Esse foi o caso do DeepSeek – um modelo de linguagem amplo, aparentemente eficiente e de código aberto que sugou trilhões da bolha de Inteligência artificial de Wall Street. Outro caso foi a sonda chinesa que trouxe de volta à Terra as primeiras amostras do lado oculto da lua. Esse feito, como se sabe, acelerou a corrida espacial em satélites militarizados com impactos significativos para os EUA no Indo-Pacífico.
Ademais, há também o caso do “Build Your Dreams”. A BYD, principal fabricante de veículos elétricos da China, saiu de seu mercado doméstico em busca de uma impressionante expansão internacional. Essa empresa chinesa ameaça, assim, o futuro da coalizão política europeia baseada no motor de combustão interna.
Tudo isso tem provocado novas ondas de ansiedade entre os formuladores de políticas ocidentais e capitães da indústria. O dramático surto de investimento da China em veículos elétricos, baterias poderosas e energia solar pode abater a demanda de petróleo em cinco milhões de barris por dia até 2030. Essa tecnologia verde mais barata agora está permitindo mais de cem países libertar-se dos caros hidrocarbonetos importados em direção às terras altas iluminadas pelo sol da autossuficiência elétrica.
Como se sabe, várias ondas tecnológicas se seguiram na história do capitalismo após a Revolução Industrial do século XVIII: ferro e energia hidráulica, aço e motor a vapor, eletricidade e energia química, petróleo, eletrônicos e aviação, tecnologia da informação e comunicação; e, finalmente, energia renovável. Se as duas primeiras ocorreram sob a liderança da Inglaterra, as três seguintes sob a liderança dos EUA, a última acontece agora sob a liderança da China.
O domínio tecnológico da China está ancorado em investimentos de capital humano de longo prazo. Tem criado, assim, quadros qualificados de engenheiros e empresas tecnoindustriais dinâmicas sobrepostas, apoiadas por uma forte política industrial e finanças públicas, sob uma lógica de minimização de riscos.
O pacote chinês formado por “automação, digitalização e eletrificação” oferece às empresas e nações não apenas a redução da emissão de carbono, mas também – e de forma mais persuasiva – aumento da produtividade, eficiência e soberania energética. A base material da produção, consumo e informação globais sistemas estão sendo refeitos. Não é preciso ser marxista para pensar que tudo isso implicará numa transformação radical na política global.
De onde virá o próximo “momento Sputnik”? Eis as possibilidades: fábricas automatizadas, biotecnologia e biomedicina, pequenos reatores nucleares modulares, drones, baterias de íon de sódio e chips de processamento de Inteligência artificial.
Essa predominância chinesa na tecnologia está causando o que Adam Tooze chamou de “segundo choque da China”. Se o primeiro ocorreu quando a China foi incorporada às cadeias de suprimentos do Ocidente e do Leste Asiático, o segundo ocorre agora por meio de uma inversão: agora é o Ocidente, em particular a Europa, que está tentando seguir a China. Pela primeira vez em dois séculos, o Ocidente não é mais o líder em tecnologia do futuro, mas o seguidor.
É nesse contexto que os aliados americanos na Europa e no Leste Asiático estão começando a romper com um EUA. Se esse país se mantém agressivo no mundo, ele está ficando para trás em tecnologias de ponta.
Esses desenvolvimentos estão remodelando a ordem global, assim como as relações bilaterais e multilaterais que a sustentam. Ora, todas as tensões do momento apareceram no fórum BRICS de países de renda média que se reuniu recentemente. Nos últimos dois anos, o BRICS dobrou seus membros originais para incluir cinco novos países – Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia, Indonésia e Irã.
Sob a presidência do Brasil, o fórum deste ano se concentrou em industrialização verde, no financiamento climático e na governança sustentável. Em contraste com a missão original do BRICS de desafiar as instituições ocidentais, o bloco agora é caracterizado em parte pela ambição de seus membros de se isolar estrategicamente dos EUA. Expressam, assim, uma nova visão de soberania, de alta tecnologia, alimentada principalmente por energia limpa.
Enquanto o Ocidente vê o BRICS como um bloco antiocidental quixotescamente desdolarizado, ele próprio se mantém unido menos pela repulsa a uma velha ordem e mais pela atração fornecida pela reformulação da base material de uma nova soberania, em uma nova era de globalização.
Hype e reforma
Em 2001, o auge da globalização financeira liderada pelos EUA, Jim O’Neill, do Goldman Sachs, cunhou um acrônimo cativante – BRIC – com as iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China (a África do Sul não se juntaria até 2010). Ele as identificou como economias em rápido crescimento, tanto em termos de produtividade quanto em termos de valorização da moeda.
Combinando dados específicos de cada país sobre população, infraestrutura e investimento, O’Neill sugeriu que o PIB da Índia eclipsaria o do Japão até 2032 e que a China seria a maior economia do mundo até 2041. Esses desenvolvimentos, especularam os analistas do Goldman, teriam impactos nas carteiras de investimento globais, forçando uma mudança na posição dominante do Ocidente.
O fórum do BRIC foi formalmente estabelecido na Rússia, em 2009. Em parte, pretendia projetar uma resposta ao crash de 2008 que permitisse que seus quatro estados membros se isolassem das ondas de choque provocadas pela crise financeira. Além disso, os membros tinham um objetivo comum de reformar a governança global, redistribuir os direitos de voto no FMI e no Banco Mundial, melhorar o comércio Sul-Sul e expandir a liquidação em moeda local.
Em 2014, o BRICS – a África do Sul tornara-se membro do grupo – lançou instituições para imitar as criadas em Bretton Woods. O Novo Banco de Desenvolvimento deveria fornecer financiamento ao desenvolvimento tal como o Banco Mundial. O Arranjo Contingente de Reservas deveria fornecer liquidez sem condicionalidades onerosas ao estilo do FMI.
Essas novas instituições, no entanto, permaneceram limitadas em escopo e escala. Eis que havia diferenças limitantes entre os membros do BRICS, de tal modo que não havia forte motivos para o Ocidente se sentir ameaçado. A carteira de empréstimos do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) é pequena em relação ao seu capital integralizado e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA) depende das decisões do FMI para grande parte do financiamento que oferece.
A coisa mudou, no entanto, depois de 2020, quando os EUA e a UE se uniram em torno da agenda de confronto com a China e a Rússia. Em 2022, as potências ocidentais impuseram, conjuntamente, sanções financeiras russas após a invasão da Ucrânia e alinharam-se para tentar bloquear os avanços da China em tecnologia avançada. A Europa recusou uma “dissociação” agressiva, havendo optado por uma “redução gradual”. De qualquer modo, ambos os lados do Atlântico se uniram sob a tese de que o BRICS se tornou uma coalizão antiocidental.
Note-se pelos gráficos apresentados em sequência que os membros do BRICS se tornam recentemente menos importantes na sustentação dos déficits gêmeos dos EUA e que as ligações comerciais com os EUA se enfraqueceram.


Como resultado da guerra na Ucrânia e no Oriente Médio, o próprio BRICS tornou-se necessariamente mais focado na geopolítica do que na governança global, havendo optado por um não alinhamento estratégico em termos de comércio e investimentos. Significativamente, a Rússia pôs a desdolarização na agenda 2023-2024 do bloco.
Mas a dependência do dólar para o bloco como um todo não se mostrou nem se mostra fácil de escapar. O banco de desenvolvimento do BRICS parou de fazer negócios na Rússia, em 2022, porque nenhum dos outros membros queria perder o acesso a bancos de financiamento em dólares.
Diversificar, desdolarizar, descarbonizar
Com a reeleição de Donald Trump, a unidade de propósito compartilhada pela UE e pelos EUA começou a rachar. Os líderes centristas da União Europeia agora declaram que os EUA são um “inimigo do projeto europeu”. Ademais, muitos países europeus estão perseguindo objetivos semelhantes aos de alguns países do Sul.
O objetivo agora é reduzir exposição aos EUA e até mesmo criar um conjunto de instituições para ajudar a garantir a soberania e neutralizar a desestabilização provocadas pelas guerras comerciais, pelos acordos de segurança rasgados e por um sistema baseado no dólar cada vez mais armado.
Com o bloco do Atlântico Norte sob tal pressão, o seu interesse no BRICS está aumentando. A legitimidade ocidental, além disso, está enterrada nos escombros de Gaza. Novos e aspirantes a ingressantes no clube têm uma mistura de motivações. Para o Egito, que tem lutado durante anos com escassez de dólares e programas do FMI, as transações em moedas locais são atraentes.
Para a Indonésia, a diversificação dos laços comerciais e diplomáticos é uma demonstração de sua política de não alinhamento de longa data. A Nigéria, por sua vez, busca laços econômicos com países maiores e um papel regional maior no continente. Para os Emirados Árabes Unidos, o bloco é uma forma de aumentar sua influência regional. A Arábia Saudita (convidada, mas ainda não aceitou) tem uma visão semelhante.
De acordo com Layla Ali, do Centro de Pesquisa do Golfo, ambos os países “veem a cúpula do BRICS como uma plataforma estratégica para expandir seus laços diplomáticos e econômicos em escala global”.
Cooperação industrial verde
Uma disputa dramática está ocorrendo agora dentro do próprio BRICS. Os países membros ricos em petróleo e gás estão enfrentando um desafio crescente. Eis que os seus modelos de crescimento das economias do BRICS se defrontam com uma tendência para uma política industrial mais ecológica.
Os países do BRICS que historicamente importaram grandes quantidades de petróleo e gás da Rússia ou do Irã agora enfrentam o rápido crescimento das energias renováveis; este é o caso da China, mas também do Brasil, Índia e África do Sul. O resultado é que os combustíveis fósseis agora representam menos da metade da geração total de eletricidade do bloco.


Isso não impediu a Rússia e o Irã de perfurarem mais poços de petróleo e gás. A exportação da China de fontes de geração e eletrificação baseadas em energia limpa, bem como sua tecnologia verde, estão gerando, mediante acordos de financiamento, conversões energéticas ao redor do mundo, mas o resultado ainda está para ser visto.
Essa disputa implícita sobre a matriz energética dominante e a economia política construída em torno da energia dita limpa decidirá não apenas os arranjos de poder geopolítico entre as nações do BRICS nas próximas décadas, mas o destino da maioria dos povos do mundo. Em um esforço para vencer esta disputa, a China está construindo hegemonia exportando não apenas seus produtos verdes, mas também em uma mudança estrutural. Eis que exporta a sua tecnologia, engenharia, cadeias de suprimentos e financiamento.
Dois relatórios recentes, que tratam de financiamento de energia Limpa, um do APO (Analisys and Policy Observatory) e do Net Zero (Industrial Policy Laboratory) mostram exemplos de cooperação industrial verde entre a China e os países em desenvolvimento. A Clean Energy Finance estima que, desde o início de 2023, as empresas chinesas investiram mais de US$ 100 bilhões no exterior em 130 tecnologias limpas. Trata-se, pois, de um “tsunami de energia limpa”.
A cooperação industrial verde bilateral entre os membros do BRICS sugere novos padrões de desenvolvimento econômico utilizando duas vantagens. Primeiro, os países membros agora possuem muitas das principais tecnologias verdes. Em segundo lugar, eles têm mercados consumidores domésticos em rápido crescimento, proporcionando escala e lucros para o crescimento industrial.
Vejam-se alguns exemplos:
O Brasil sob o presidente Lula está fazendo movimentos muito mais fortes em direção a Pequim. Lula convenceu diretamente a chinesa BYD a investir em uma fábrica no estado da Bahia, que será seu primeiro centro de produção de veículos elétricos fora da Ásia – projetado para produzir 150.000 veículos por ano. Sem dúvida, o grande mercado consumidor do Brasil deu a Lula uma vantagem de negociação para trocar tecnologia por acesso ao mercado.
O discurso de Lula tem estimulado uma nova política industrial para o Brasil. Nesse sentido, a Bahia se apresenta como um excelente exemplo da transição energética global em ação. Dois gigantes americanos da indústria do século XX – Ford e GE – venderam suas fábricas em Camaçari para a BYD e para a Gold Wind respectivamente, que são os maiores fabricantes mundiais de EV e turbinas eólicas.
Para garantir que o valor agregado e o know-how locais sejam criados para as empresas nacionais, o governo da Bahia negociou com a BYD um centro de P&D e metas de localização. O primeiro carro “made in Brazil” da BYD já foi mostrado bem a tempo para a cúpula do BRICS.
A China e os Emirados Árabes Unidos estão cooperando em veículos elétricos, energia solar e metais de transição. O poder de barganha dos Emirados Árabes Unidos aumentou, ganhando cláusulas de localização e transferências de propriedade intelectual, já que as empresas chinesas são cada vez mais tarifadas nos mercados ocidentais.
Empresas chinesas de energia solar como a LONGi estão construindo conhecimento e habilidades locais, exemplificados por sua academia solar em Dubai, enquanto processam metais provenientes da gigante brasileira de mineração de ferro Vale em centros de fabricação de aço verde no Reino do Golfo.
Nem toda colaboração intra-BRICS envolve a China. Brasil e Índia, ambos com fortes coalizões de agricultores em suas legislaturas, têm concentrado cooperação em matéria de biocombustíveis sustentáveis. Eles planejam liderar uma aliança global de biocombustíveis para combinar recursos, experiência e tecnologia para, eventualmente, triplicar sua produção conjunta de biocombustíveis para aviação, carros e navegação.
O casamento combina a experiência tecnológica do Brasil com suas patentes e posição industrial de décadas em biocombustíveis com a crescente demanda de biocombustíveis da Índia (agora o terceiro maior consumidor mundial de etanol) e a aviação de passageiros em rápido crescimento.
Uma mudança sem volta
Uma crítica popular às iniciativas multilaterais do BRICS é que elas carecem de eficácia: o NDB e o CRA são não grande o suficiente para fazer o trabalho. O “BRICS Pay” é uma fantasia e os esforços coordenados de reforma dentro dos sistemas de votação de Bretton Woods não tiveram sucesso.
Mesmo assim, cada país está buscando estratégias de desdolarização, assim como no campo da energia verde e da indústria. O advento do BRICS implica inerentemente uma nova ordem mundial. E ela será pós-americana. Eis que há agora muitas nações interessadas nesse projeto.
Observa-se algum progresso relativo dos cinco países do BRICS na luta pela desdolarização, pela energia verde e pela renovação da indústria. A China fez progressos significativos no faturamento comercial não em dólar e na precificação de commodities. Mas lidar com a centralidade do dólar continua sendo mais difícil do que avançar na manufatura verde e na geração de energia.
Uma pergunta que anima muitos envolve saber quem será o dono das indústrias verdes e de suas cadeias de valor? Uma entrevista recente com o presidente da empresa de metais e mineração Vale foi reveladora: “‘Somos uma empresa brasileira administrada pelo Canadá que se aventura na Indonésia com os chineses e os sauditas. Bem-vindo ao próximo estágio da complexidade política do mundo em que vivemos.” As colaborações bilaterais e os avanços tecnológicos chineses podem resultar em uma mudança sistêmica, uma mudança na ordem mundial?
A ordem geopolítica do pós-guerra repousava sobre três pilares: hegemonia americana, sistema de energia de combustíveis fósseis e uma ordem comercial multilateral aberta. Os Estados Unidos agora atacaram cada pilar na base de sua ordem global de hidrocarbonetos.
Existem agora dois modelos globais concorrentes de energia e influência: um baseado em combustíveis fósseis, outro em tecnologias verdes e um novo modelo de desenvolvimento sustentável. A tecnologia da China está encontrando novos mercados em todo o mundo porque muitas pessoas que tem poder a desejam.
Mas até agora não há nenhum apoio real de finanças, comércio e transferência de tecnologia – já que nenhuma nova ordem internacional de governança sustentável ainda foi construída. A questão crítica do futuro do BRICS reside na disposição e capacidade de seus países membros de efetuar uma colaboração mais ampla nas áreas de tecnologia, comércio e finanças. Um quarto do caminho para o século XXII, tudo está em disputa.
*Kate Mackenzie é pesquisadora do Policrysis.
*Tim Sahay é pesquisador do Policrysis.
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