Ciência-Educação-Conhecimento: luzes próximas

Imagem: João Nitsche
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

A educação como prioridade não existiu no Brasil, senão em corações corajosos de educadores e educadoras

Este texto tem sua razão de ser a partir da leitura de um editorial da imprensa paulista publicado em 5 de outubro último e tratado adiante. Ele também motiva os argumentos iniciais sobre a história brasileira, os quais ajudam a compreender quem somos, nossos modos de  apreciação da ciência e da arte, os sentidos de empreendimentos individuais e coletivos, como conseguimos dar alguns avanços entre numerosos recuos políticos e os processos que explicam nossos mal-estares em face da democracia, que entre nós jamais foi governo do povo.

Ato contínuo, discute-se também um artigo sobre educação, de Maria Alice Setubal, da mesma data e no mesmo jornal. Mas cabe, primeiramente, pensar no trio de valores que dá título a este texto, cujas conexões são pedra-de-toque para o debate que move conhecimento, educação e ciência.

Como primeiro olhar, constata-se que uma construção simbólica ampla e capilarizada capaz de unir e mover pensamento, desejo e organização jamais existiu na história cultural do Brasil. Se houvera existido, teríamos uma ação educacional pública de tal consistência – suporte do trio que encabeça este comentário – que prescindiríamos de marcos temporais enviesados como o exame Pisa-OCDE para a moçada de 15 anos e o marcador de conteúdos escolares, o Ideb, ambos entendidos como fenômenos que tanto informam nossos atrasos como revelam a tentativa de apalpar no escuro uma globalização social já moribunda. O defeito construído na história sincroniza todos os nossos males, tais como a escravidão, o emprego miserável, quer para o trabalho manual, quer intelectual, a supremacia branca e masculina, a ação cultural reprimida e humilhada, o partidarismo que parte os indivíduos, a mediocridade comum dos governos, o pêndulo do poder francamente autoritário e a feitura de modernidades seletivas e usurárias.

Ainda que o símbolo imaginado e desejado permeie todos os grupos sociais nos tempos e espaços do Brasil, ele nunca foi solidificado como cultura política comum. Mantemo-nos a remoer nas bordas do símbolo. No entanto, vimos sua viabilidade nas lutas pela escola popular e no manifesto dos pioneiros da educação nova de 1932, assim como nas defesas intransigentes da dignidade dos que aprendem e ensinam em face de disposições constitucionais e sua decorrência, na criação de sociedades científicas e associações de profissionais da educação e da cultura. Encontramos seus sinais na depuração dos sentidos de ciência, que tanto configura as áreas e subáreas do saber junto às agências de fomento quanto orienta a construção da Plataforma Lattes e, felizmente, compõe o currículo pleno da educação básica, a saber: ciências da natureza, ciências humanas e sociais, matemática (s), artes e línguas, rebatidas e desdobradas na riqueza do campo diversificado do currículo escolar, cujos atos de construção e execução comunitária são o único caminho para explicara verdade social deste país e a efetiva viabilidade do seu conhecimento pelas novas gerações..

A construção simbólica espera – para nós ansiosamente – o amadurecimento do país, quer pela direção de estadistas honestos e anti-populistas, quer pela ação do povo leitor da palavra e da vida, portanto participante dos desafios de saber e compartilhar. Essa construção espera sua vez e sua hora. Atualmente, nem pensar, pois a mediocridade é o diapasão e o regente da boiada insana e, no fundo dela, Brilhante Ustra é o anjo da mais alta estirpe. Nesse lugar, anos-luz distante da inteligência e da dignidade, para quê Ciência? Ora, fazer dela um construto firme e forte para o país implica, simultaneamente, na derrubada do mito e do mítico, que encabeçam as instituições oficiais do Brasil.

No entanto, somos 210 milhões de pessoas, uma riqueza vital incomensurável, a despeito de em boa medida invisível. Somente essa existência problemática já é capaz de ensinar que quaisquer discursos que façamos terá de pensar o todo dinâmico, instável e mitigado. Caso contrário, não será verdadeiro, especialmente por obra deste momento histórico, em que o “verdadeiro” significa somente o pensamento medíocre mitificado. No nível de pensamento proposto, as ciências, sempre no plural da natureza e da cultura, têm pleno sentido.

É possível puxar do interior das ações de organizações e instituições citadas muitos exemplos, mas talvez convenha manter-se no cotidiano em que se tomam posições e se armam confrontos capazes de elucidar e ensinar.

O editorial citado, sério mas canhestro, foi lido na Folha de São Paulo, página A2, denominado Luzes distantes. Ele se propôs mostrar a distância entre o trabalho de cientistas e a sociedade. Provavelmente o texto foi escrito por pessoa portadora de saber científico em área e subárea do saber, seja das Ciências da Natureza, seja das Ciências Sociais Aplicadas ou das Ciências Humanas. Seu espaço exíguo, talvez página e meia de texto, não consegue senão concluir que “Os cientistas do país, parece, seguem encastelados em seus laboratórios”. Os argumentos do escritor foram baseados em pesquisas de opinião que ofereceram leituras distintas de setores sociais ouvidos antes da pandemia, num caso de mais distantes “luzes” científicas e noutro mais próximas. Ao fim e ao cabo, tais enquetes de opinião (oxalá tenham sido feitas sob critérios normatizados) revelaram quer confiança nos conceitos e práticas científicas desconhecidas, quer descrença na ciência. Justifica-se, pois, a asserção final citada.

Um grande tema, tratado com seriedade, mas em espaço bisonho. Cabe, no entanto, questionar a falta de certa inflexão científica do editorialista diante do tema, tanto pela melhor crítica às pesquisas feitas quanto pelos sentidos, abrangência, qualificação e divulgação midiática dos cientistas como pessoas e seus trabalhos, quer predominantemente teóricos, quer empíricos. Quanto ao povo pesquisado, supõe-seter sido uma média de nós mesmos (incluindo alguns cientistas), a gente brasileira que pôde ser e é o que os muitos saberes e práticas conflitantes – e corruptas – da história levaram a ser. E depois de completada a fase da “armação tecnológica” das indústrias da cultura, como bem denominou Muniz Sodré, as gentes foram movidas pelas enxurradas de fetiches, ícones, simulações, idolatrias e desinformação, respeitadas exceções no campo dos estudos de comunicação social, que, aliás, compõem a área das ciências aplicadas.

A tacada final do editorialista (a despeito do parece, que não consola ou amaina a significação do período frasal) é resultado da realidade histórica tratada acima, que tem menos a ver com a educação científica do povo do que com a violência política rotineira que desfaz os laços entre saber, conhecimento e ciência, ou entre escola e sociedade, cultura e educação. Uma teia de laços continuamente desfeitos, cujo acúmulo não perfaz uma cultura deseducativa, mas de fato uma sucessão de crimes contra a humanidade brasileira.

Escapou ao editorialista que as luzes podem estar próximas se o tratamento dado à questão for ao fundo do problema e se a compreensão da amplitude da Ciência receber o devido lugar. Muita gente se encontra com cientistas, supondo-os jamais acabados ou perfeitos, nas relações cotidianas, quer os e as jovens que fazem mestrado e doutorado com bolsas de estudo em todas as áreas e subáreas. Além do mais, ensaios e resultados de pesquisa são difundidos tanto pelos canais de divulgação (limitados é verdade, mas o que não é limitado hoje?) de agências, áreas e departamentos universitários, quanto pela presença dos cientistas no trato dos fatos diários e contínuos, outra vez consideradas as ciências em sua totalidade.

Nos termos da divisão de áreas e subáreas do fazer científico, também presente nos currículos da educação brasileira, os e as cientistas compõem vários estratos sociais, são gente nada encastelada, mais ainda quando movidos por necessidades sociais que só ganham sentidos na multi e na transculturalidade, lugares de cientistas da natureza, das ciências humanas e sociais, da matemática e do tratamento científico dos dados estéticos e linguísticos.

No entanto, a assunção do e da cientista como pessoa ativa na luz do dia das necessidades e desejos sociais não garante a difusão ampla do seu trabalho e o seu conhecimento por parte de amplos setores da sociedade brasileira, que também desconhece vereadores, deputados, ministros, dirigentes dos esportes, governantes globais, ganhadores de prêmios científicos, esportivos etc. Para criar novas sintonias e sincronias sociais no país dependente, mal-amado, fruto de interesses corporativos e sistematicamente mal dirigido carece-se de mudar o país, revolucionar conceitos e rotinas políticas, fazer acontecer a modernidade para todos e todas.

O texto final do parágrafo já sugere discutir o texto de Maria Alice, página A-3, Folha, 5 de outubro de 2020. Denomina-se: Novas lentes para orientar as políticas de educação.

Este colunista, enquanto presidente da Câmara de Educação Básica do CNE (2015-2016) pôde trabalhar em alguns projetos ao lado da autora e testemunhar seu zelo e seu conhecimento sobre as questões educacionais brasileiras. O que se quer fazer aqui é, pois, um debate, o que Freire chamou de confronto necessário para realizar o aprendizado e o conhecimento.

O texto de Setubal é muito bom ao lidar com o conceito de equidade, que move os primeiros parágrafos. Esse conceito, muito pouco trabalhado e vivido no campo político, reconhece as desigualdades sociais, determinantes muitas vezes dos resultados estrábicos do Ideb, mas também do Pisa. No entanto, via de regra o pensamento educacional dos governos, em todas as esferas de poder, esquiva-se de aprofundar a reflexão sobre a equidade e sai correndo para adotar algum novo decreto “salvador” de um ou vários níveis educacionais da etapa básica de 13 anos. Os fazendeiros do ar conduzem suas boiadas de portarias e normas em direção exclusiva da burocracia, deixando exatamente como está a quase-tragédia da equidade. Pode ser que um ou outro agente público, e mesmo vereador ou deputado, ignore o que seja pensar equidade no quadro histórico brasileiro, mas a grande maioria, de fato, não tem mesmo é desejo, respeito e amor para com a educação e a juventude, especialmente no sentido amoroso proposto por Hannah Arendt ao final de A crise da educação. O fato implica, necessariamente, não tratá-la com e como prioridade. Portanto, se o texto de Setubal, similar a milhares de outros já escritos desde os anos de 1930,  pretende ser lido além de algumas organizações, instituições universitárias e escolares, bem como  sujeitos educadores/as, não há destinatários para o texto e a questão, pois, não consiste em mudar prioridades, mas criá-las além do blá-blá-blá conhecido em época de eleições. Sim, elas não existem. A prova maior desse fato é a importação e a tradução de “modas” educacionais, a formatação estrangeira de programas para o país-continente e suas distinções de variada espécie, o engavetamento e o esquecimento das Diretrizes Curriculares do CNE em seguida à LDB-1996 e o assassinato do Plano Nacional de Educação (2014). À luz desses dados históricos a BNCC se torna alienígena, pois ela não se realiza no vazio, muito menos fora do contexto das Diretrizes do CNE, que trataram, entre 1997 e 2013, de todas as condições para a equidade na educação brasileira, das cidades centrais às periferias, do campo à floresta, do nomadismo à educação exigente de recursos especiais, das escolas de fronteira ao mundo indígena e quilombola.

Ainda pior: à luz do disposto, o novo dinheiro do Fundeb nada significa, pois encontra um edifício político em escombros, sem mensuração histórica, sem planos e sem rumo. Nem se justifica afirmar, como faz a escritora desse bom texto, a necessidade de políticas, pois esse é um conceito de nível zero de significação no Brasil, deste modo cunhado na ditadura. O superministro Roberto Campos dos governos militares deixou sempre claro que política é enunciação geral de projeto, pois o que importa e interessa é o programa de governo (programa se liga a programado e a programar), o que sugere o dirigismo que conhecemos. Depois da redemocratização do país elegeu-se em 2018 um programador da morte… Falar, pois, em políticas é dizer nada no Brasil de hoje, visto que talvez até a sociedade organizada tenha dificuldade em escrever, circunstanciadamente, uma política em sua inteireza, como valor de governo em si mesmo e móvel de ação cidadã que submete ao seu desiderato planos, projetos e programas. Nesse sentido, mesmo o Plano Nacional de Educação, ou o Fundeb, deveria estar subordinado a certa política educacional. Pergunta-se: qual? A Constituição não é uma política, embora sugira algumas. Ora, a confusão que sempre se estabeleceu entre esses atos de governo indica que não se quis fazer política num sentido clássico, como formulação maior da res publica, integrada e integradora em níveis, graus e etapas da governança. Daí a imensa pluralização do conceito de “políticas”, a qual, no turbilhão do vale tudo, termina por não valer nada.

Faça-se uma analogia: política equivale ao tipo no campo das estórias populares narradas e coletadas desde tempos imemoriais pelo humano. Planos e programas, no entanto, são os motivos, em quantidade muito superior. Uma imensidão de planos deve servir a determinada política, cuja ação cultural consiste na costura das conexões socioeconômicas e políticas a favor das necessidades e exigências do demos.

Enfim, várias das questões postas por Setubal estiveram nos olhos, nas penas e nos corações dos educadores, de modo mais persistente a partir do Manifesto de 1932. Para não citar centenas de nomes, diga-se que tais discursos vibraram no Estado Novo, na discussão da dependência e do desenvolvimentismo dos anos de 1950, na LDB dos anos de 1960, na urdidura constitucional, na LDB do fim do século e assim por diante. Em consequência, pouca gente crê, hoje, na importância de ouvir candidatos balbuciarem e fazerem ventriloquismo em torno de suposta prioridade educacional. As próximas eleições, repletas de lulas e bolsonaros nos santinhos e no plim-plim das urnas, acrescidas de ódios e revanches, não sugere qualquer relevância para o campo da educação. Elas só poderão ter valor se surpreenderem com a eleição de representações historicamente humilhadas e ofendidas, incorruptíveis e capazes de dar voz a amplos setores dos 210 milhões de pessoas que compõem a nossa terra. No caso, também os eleitores não poderão ser corrompidos.

A despeito da representação da escritora, também não há destinatário de seu texto no governo. Como é que o ambiente policial e mesquinho da Esplanada fará surgir criatividade nos agentes públicos para a construção coletiva de políticas? Tanto não se pode criar sob repressão quanto ninguém pode dar o que não tem. O que é que o senhor Ribeiro, a par do seu séquito, poderá fazer, amarrado pelo seu capitão-presidente e também amarrado pelos seus dogmas?  E é isso que acontece no governo e assim será até 2022. Ou haverá um milagre? Não convém desejá-lo para não perturbar a divindade com as coisas levianas da velha política.

Uma revolução na representação política poderá iniciar um movimento democrático ascendente, das comunidades educacionais dos municípios para o todo da nação, com apoio das organizações e instituições que esperam sua hora e sua vez de fazer história no campo da educação. Um novo valor de realidade vivida e sentida seria capaz de repensar a equidade escanteada, convocar todos os sujeitos da educação, incluindo famílias e comunidades, discutir BNCC à luz das Diretrizes Curriculares, questionar significações de políticas de governo, retomar com urgência o PNE e propor uma política nacional de bem-comum a partir da inédita prioridade brasileira, a educação. Tal movimento teria de acreditar e manifestar que sem a construção simbólica e popular da educação dentro das pessoas e instituições  pouco valem os adjutórios para comprar comida no armazém, os decretos e leis favoráveis a novos recursos para o trabalho escolar e muito menos as provinhas e os provões que submetem agentes públicos brilhantes do MEC a miragens educacionais dos países que se comprometem com a OCDE. Pior, submetem milhões de jovens que não requisitaram prova massiva alguma, exceto o ENEM, para cujo mister nunca houve melhor solução, o que se eterniza e se naturaliza.

É bela a imagem de Miguilim no Rosa, com a qual Setubal termina o seu texto, especialmente quando a fazemos contracenar com Riobaldo e seus duros confrontos de aprendizagem existencial para descobrir e revelar as razões profundas do seu amor perigoso por Diadorim-Diadorina-Diadora, ser dividido entre poderes do sertão-mundo em busca de sua unidade, encontrada somente na sua própria travessia.

A educação priorizada não existiu senão em corações corajosos de educadores e educadoras. Cabe fazê-la plenamente, não como quem abre as portas do céu, mas certamente como quem abre as portas deste país à equidade e à justiça social. Quem viver, verá. Queremos ver, não só de perto, como dentro.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

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