A busca da serenidade

Ben Shahn, Willis Avenue Bridge, 1940
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Por EMILIANO JOSÉ

Comentário sobre o livro recém-lançado de Bernardino C. Horne

Varón não chegara ainda aos 90 anos de idade, e começara a pensar no livro Envejecer: el duelo por sí mismo. A partir de si mesmo, as reflexões. Serenas.

Em alguns momentos, deixava a ideia de lado. Não o agradava a maneira como ela, a ideia, o fazia submergir excessivamente em torno do tema da morte e dos problemas relativos à velhice.

Mas, e sempre há um mas, o fato de já ter entrado na casa dos 90 anos de idade, já estar a caminho de completar um século, não obstante às vezes não queira pensar, o envelhecimento e seu destino, a morte, são questões a ocupá-lo, a tomar o pensamento dele nessa quadra da existência.

Varón, de batismo Bernardino Horne, argentino, é psicanalista. Não precisa dizer, mas digo: de longa tradição, um mestre, um pensador da área. Ele e vários outros psicanalistas foram obrigados a fugir da Argentina. Todos, de uma maneira ou de outra, envolvidos na luta contra o regime militar do país vizinho.

Como ele diria: corpo ao chão. As balas passam por cima, e ele corpo ao chão. Melhor fosse no Brasil. Melhor ainda, se na Bahia, onde aportou, em agosto de 1976. Tornou-se uma referência na área.

Chegou à Bahia, como ele conta, escapando da perseguição da ditadura argentina, a abater-se sobre a Faculdade de Medicina, onde ele era professor adjunto na cátedra de Psicologia Médica. Diretor do setor de atenção ao público, espaço onde ele havia operado uma mudança radical na política de atenção, abrindo o leque de atendimentos dos transtornos mentais, psicológicos.  

Dava aula sobre Freud, a desfrutar de uma plateia estudantil grande e participativa. Notícias iam chegando: mataram fulano, sumiram com sicrano. Não teve dúvidas: o próximo seria ele. Com a roupa do corpo, seguiu para o aeroporto de Buenos Aires e tomou o primeiro avião em direção a Salvador.

Varón, primeiro latino-americano nomeado Analista da Escola Europeia (AE), primeiro presidente da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), também dela fundador, da qual participa até hoje. É Analista-membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).

Segue trabalhando como psicanalista, abrindo cursos. Requerido. Pelo conhecimento e sabedoria.

Fio da navalha

E agora resolveu encarar a velhice e a morte. Um livro a tentar dialogar serenamente sobre essa fase da vida, a velhice. E sobre o fim. Não é uma reflexão amarga ou sombria. Às vezes, parecerá duro.

Pelos dois temas. Caminha no fio da navalha entre a celebração da vida e a expectativa da morte. Voltado à velhice, essa etapa da vida, e à morte, inescapável.

Não tem a carga da psicanálise com olhar acadêmico. O livro fala ao cidadão comum. Não foi fácil. Primeira vez a escrever para um público mais amplo. Provável a reação de uma ou outra psicanalista com essa escolha dele, ao escrever. Talvez, é só conjetura, preferissem pitadas mais fortes de Freud ou Lacan, íntimos de Varon, muito íntimos.

Os dois aparecerão ao longo do texto. De modo comedido, no entanto. Preferiu dialogar com pessoas pouco afeitas ao mundo psicanalítico. Envolvidas com as dificuldades da velhice. E com o medo, o pânico da morte.

Em todo caso, como o uso do cachimbo faz a boca torta, partiu, tentando manter rigor metodológico, do singular, do particular, do universal. Singular, como impressão digital da alma, própria de cada um, e assim, interessa à psicanálise cuja finalidade é alcançar o singular de cada sujeito.

O particular, a implicar um conjunto, cujos elementos têm algo em comum. Apesar das singularidades, compartilham um vínculo a garantir sejam um grupo. O particular dos velhos é a idade. Apesar das singularidades, das diferenças, inevitáveis, têm em comum o fato de serem todos velhos.  O universal é a categoria a incluir todos os seres humanos, como quando se diz “todos os seres humanos são mortais”.

Prefere, ele diz, deslocar-se, ao longo do livro, desde o singular, e aqui de novo é o uso do cachimbo, porque tal categoria o atrai como psicanalista, dá vazão à intenção de reunir algumas características comuns da velhice, os elementos mais frequentes e aqueles a serem chamados de paradigmáticos relativos àquela idade.

Sujeito não tem idade

Não esconde: ele se apoia, por momentos, na subjetividade dele mesmo, vida posta na velhice. Recupera, também, relatos inscritos em anos do atendimento psicanalítico, sobretudo, evidente, experiências dos pacientes de idade mais avançada.

E depoimentos, experiências de um ou outro amigo.

Freud, lembrado por ele, um dos poucos momentos, não recomendava análise para os velhos. Análise implica um processo de mudanças a longo prazo, e esse longo prazo não se adequa ao tempo disponível para os velhos. A psicanálise hoje considera de modo diverso. O sujeito não tem idade.

Vai vivendo, transitando por todas as etapas da vida, e a velhice tem também a dinâmica dela, as particularidades concernentes a ela. A experiência centrada na súbita visão, o de repente e inevitável encontro com a velhice e a morte, uma dessas particularidades.

É a última parada. Saber lidar com ela. Saber do final anunciado. Varón não dá voltas, vai direto ao ponto: o horizonte dos velhos é a morte. E o caminho em direção à morte é um caminho construído sobre a perda dos seres queridos e das aptidões e capacidades físicas e mentais, perda dos próprios desejos, tudo a exigir da pessoa velha um luto permanente por si mesmo, em vida.

Tenham calma, nem tudo está perdido. Tem tudo aquilo, no caminho. Sem deixar de reconhecer, no entanto, nos velhos, a conquista da experiência, da serenidade, a possibilidade de ver crescer os netos. E assistir aos filhos desenvolver com saúde e êxito o que cada um elegeu para a vida deles.

Há tesouros na etapa da velhice. Cabe abraçar tal etapa. Assim, é possível vivê-la plenamente. Se houver a aceitação dela de modo sereno.

Morte é solitária

A percepção da morte é algo profundamente solitário, dirá Varon. Cada um enfrenta a indesejada das gentes de maneira singular, própria. Ela sempre nos alcançará. Chega a todos e a cada um numa lenta e continuada elaboração, mas, bom não se enganar, isso de pouco adianta. A morte pode também apresentar-se de maneira inesperada.

Nos vários exemplos colhidos, localiza a impotência produzida pela velhice, a inexorabilidade da morte no horizonte. O pânico diante da morte desencadeia uma resposta singular e única. Há algo em comum: o terror (palavra que deriva de terra e enterrar), a impotência, o sentimento de incapacidade, de solidão, total desamparo.

Varón quis chamar duelo por si mismo aos sentimentos de empobrecimento e incapacidade experimentados pelo sujeito com a perda progressiva das faculdades do corpo e da mente, acontecimentos sofridos no decurso, no trânsito em direção à morte y sobre los cuales debemos hacer um verdadero trabajo de luto.

Cada etapa da vida traz consigo perdas e ganhos. Satisfação pelos desafios superados, insegurança diante do que vem pela frente. Um jovem chegado à adolescência, perde as vantagens da infância. Na velhice, perde-se a juventude e, também, numa etapa dela, a própria maturidade, quando a potência de cada um chega ao máximo – na velhice, perde-se essa potência.

Dialoga com duas etapas. Há o pânico do jovem em relação aos desafios da vida. Na velhice, o pânico se vincula à proximidade da morte. E o envelhecimento, anota Varon, é um roedor a golpear a todos lentamente. Importante: saber estimar o tanto perdido.

O contar, falar, hablar sobre aquele ser de antes é parte do duro trabalho de aceitar as perdas e, ao mesmo tempo, aceitar quien soy ahora, este sujeito a dizer do passado, a sentir saudades, nostalgia de quien me dio muchas satisfaciones y alegrias y de quien me siento orgulloso.

Não comparar a velhice com a juventude, sábia lição de Varón.

Há velhos em ótimas condições, levando bem a velhice. Outros, mal.

Um viejo que está bien no es um joven ni está joven, está menos viejo. O ponto de partida de todo luto é reconhecer a realidade. Desenvolver um saber e um comportamento de acordo com a realidade: aquel que yo era no existe más. O segundo momento, volver a los recuerdos. Com isso, o sujeito volta a seu passado.

É do que falam os velhos, do passado, de los recuerdos. Tal comportamento é positivo. Se não se tornar uma ideia fixa, insistir na beleza, grandeza contida tão somente no passado.

Isso pode torná-lo uma pessoa incapaz de perceber a velhice como uma etapa valiosa da vida, uma grande experiência, triste y alegre a la vez. Velhice e morte.

Valendo-se de Pacho O´Donnell, La Nueva Vejez, ao citar Marco Aurelio, imperador de Roma, Varon aconselha a não desdenhar da morte. Citando Marco Aurelio: “… es próprio de un hombre dotado de razón comportarse ante la muerte no con hostilidade ni com vehemencia ni con orgullo, sino aguardala como una más de las actividades naturales”.

Morte injusta

Varón não deixa de tratar da morte injusta. Esta, não pode ser comparada à morte esperada, aquela no horizonte de qualquer um. A morte injusta pode ser a provocada pelas guerras, onde jovens são destroçados. Ou por doenças súbitas, a tirar a vida da pessoa, e eu próprio neste momento vivo um luto duríssimo, a perda de minha querida companheira, 15 anos mais nova do que eu, vitimada por um câncer a surgir assim, inopinadamente. A perda de um filho, de um neto. Todas mortes injustas.

Na reflexão sobre o acúmulo de anos, Varon defende a possibilidade de a velhice propiciar a serenidade, o dejarse llevar, como definiria Martin Heidegger, a permitir ao indivíduo mudar paradigmas em relação à forma de pensar e de estar no mundo. La serenidad es, de esta manera, uma condición necesaria para la libertad.

E, eu diria, uma forma de encarar, enfrentar a morte. Morte a assombrar os velhos a la noche. Varón fala do momento difícil, a chegada da noite, para as pessoas de idade avançada. O secreto temor de dormir e não despertar.

Diz de um chiste: “Cuidado con dormirte vivo e despertarte muerto”.

Houve tempo de muito respeito aos mais velhos. Momentos na história em que se confiava aos anciões a resolução dos conflitos e a proposta de estratégias para enfrentar situações difíceis, a requerer soluções urgentes. Hoje, diante do predomínio da pulsão escópica, desse desejo e olhar e ser olhado, o posto de saber e de poder foi deslocado para os jovens, excluindo-se liminarmente os mais velhos.

As ferramentas digitais não conseguem ser apropriada pelos mais velhos e, assim, eles vão sendo deixados de lado no mundo contemporâneo, salvo as exceções. À rapidez nos jovens, lentidão nos mais velhos, oriunda dos males do corpo, variadas deficiências.

A prevalência do discurso atual do capitalismo, fundado na proeminência da vantagem econômica, do lucro, se dominava o mundo fazia muito tempo, muito mais ainda nos dias de hoje, e isso impõe condições cada vez mais desumanas para as pessoas consideradas velhas.

Varón, a par de não recusar tal ideia, faz questão de afirmar ser a velhice rechaçada antes mesmo do fervor destrutivo e produtivo do capitalismo.

Velhos e a má notícia

Los viejos son portadores de una mala noticia: la muerte está allí, implacablemente. Velho é uma palavra, em si mesma, capaz de levar nossa consciência em direção ao futuro. E no futuro, a morte. A palavra nos recorda a passagem inexorável do tempo. As conotações sociais negativas da palavra velho são oriundas de um tempo em que o mundo ainda não fora tomado pela voragem capitalista e ultracapitalista.

Os velhos são deixados de lado não só por motivos vinculados à produção e consumo capitalistas, por estes também, mas não só. Mas talvez, e quem sabe principalmente, pelo horror, pelo pânico provocado pela morte, sempre anunciada, apontada, indicada pela velhice.

A deterioração e a morte estão no horizonte de cada uma das pessoas mais velhas. São portadoras da má notícia, insista-se. Varon pensa dialeticamente. Estabelece um diálogo permanente entre a vida e a morte. Dá razões de esperança ao velho. Pela reflexão intelectual e por razões próprias, decorrentes da própria idade.

Insiste ser conveniente e saudável aos mais velhos dedicarem-se a coisas apropriadas à idade. Não pretender ser jovens, porque não são. Os velhos podem e devem ter uma vida, cheia de atividades – quase um lugar comum. Indispensável, no entanto. Cada um vive a velhice de modo singular, cada um a vive como pode.

Nessa fase, não se dá tanta importância às obrigações sociais e se valoriza muito o tempo, agora muito, muito mais valorizado, visto como um bem precioso, caro, sobretudo porque se alcança o sentido da finitude.

Uma fase, a velhice, onde se acentua o sentimento de culpa herdado da tradição judaico-cristã, ao qual cabe ser enfrentado, resolvido. Tal resolução permite viver bem no decorrer dessa fase.

Viver aqui e agora, o melhor que possamos, descartando a ideia, vinda desde o nascimento, de que acá es un vale de lágrimas, e arriba, sentado a la diestra de Nuestro Señor, é um tempo de felicidade. Viver com projetos, pequenos sejam, é boa ideia. Ajuda a viver, em qualquer idade, e mais ainda, na velhice. Cabe a cada um fazer dela uma etapa interessante. Ela, como qualquer etapa da existência, é plena de desafios.

Cabe enfrentá-los. Não temer a morte. Não entregar-se a ela. Ao menos, não fazê-lo antes do tempo.

Solidão arrodeada de gente

Frente ao temor de não contar com as habilidades requeridas em cada etapa da vida, e em todas as etapas, aparece tal temor, a solução não é retroceder e dizer “não podemos”.

Lacan chamava tal temor de “covardia moral”, e isso leva a pessoa a ter uma má opinião de si mesmo, envolta então numa vergonha do próprio fracasso.

A velhice é outra etapa da vida a exigir o esforço de transitar. Nada de pretender permanecer indefinidamente nas etapas anteriores. Chegados à velhice e até a morte somos viejos. Nuestra tarea es desenvolver las habilidades proprias de esa etapa e viverla bien, ser un viejo que está bien.

Lograr domínio do corpo para não cair, realizar atividades físicas para estar com os músculos em forma. Nunca como um jovem. Como um velho em boa forma para aquele momento da velhice. Saber valorizar o tempo, inclusive o tempo de não fazer nada. Desfrutar desse espaço de ócio, ir aceitando de modo agradável o fato de que a vida se encerra.

Discute a soledade. Recorre a Cem anos de Solidão. O coronel Aureliano Buendía quase consegue compreender, quase, o segredo da boa velhice: um pacto honrado com a solidão. Distingue esta solidão de Aureliano Buendía daquela outra, arrodeada de gente.

Há velhos cercados de muita gente e, no entanto, se sentem profundamente sós. Pesa, na velhice, não a falta de presença. Como uma montanha às costas, pesa a falta de vínculo. Nadie escucha sus historias com atención. Nadie los necessita. Comen con otros, pero en silencio. Los saludan  pero sin mirarlos. Los tocan, pero sin afecto.

A solidão arrodeada de gente é quiçá a mais cruel por carregar consigo o disfarce da companhia. E tal solidão não é notada: afinal, não lhes falta nada, estão cercados de cuidados, quando estão, naturalmente, porque as pessoas mais velhas de famílias muito pobres muitas vezes são relegadas ao mais completo abandono.

Ao idoso, mesmo bem assistido, falta-lhe o essencial: o calor humano a permitir ao viejo se sentir vivo. Hay uma soledad emocional que no se debe solamente a un aislamiento social, sino al hecho de no tener un espacio íntimo donde compartir nuestros temores o el miedo a la soledad.

De outro lado, e mantendo-se na reflexão, Varón afirma: a solidão não o assusta. Melhor, necessita dela. Vai a Melanie Klein, em Sobre la Soledade. Quien está em contacto con sus objetos internos y tiene una buena historia con ellos, se siente siempre bien acompanhado.

Varón estabelece uma dialética permanente entre a trajetória pessoal dele com a reflexão em torno da velhice de modo mais geral, vamos insistir. A velhice, na avaliação dele, depende muito do realizado pela pessoa ao longo da vida, da família construída, do tipo de trabalho desenvolvido por cada um. Ele teve a sorte, se podemos dizer dessa maneira, de se dedicar a ler, a estudar, a dar aulas. E a ser analista. A mi edad tengo suerte de que la vejez solo haya afectado mi cuerpo e no mis capacidades mentales.

Distingue, aos 93 anos de idade, alguns momentos no dia a dia dele. Escreve, atende pacientes, prepara textos a pedido de escolas psicanalíticas, desenvolve atividades físicas, dedica-se à convivência com a esposa, com filhos e netos. Depois, envolve-se no duelo por sí mismo. O que perdeu de si mesmo e o que perdeu ao viver tantos anos – cada amigo, cada familiar que morre. Um momento onde se acentuam as recordações.

Este livro é, também, o espaço pensado por ele para compartilhar algumas daquelas recordações a medida que voy escribiendo y associando esos recuerdos con este duelo por mí mismo y, sobre todo, con aquello que ganho haciendo este processo.

De alguma forma, Varón cobra de cada um a responsabilidade diante da própria morte. Cada pessoa é relativa ou parcialmente responsável pela própria morte. Está tudo certo: há a genética, as contingências da vida, mas há a atitude de cada um diante da morte. E há, também, o desenvolvimento profissional e pessoal de cada um a condicionar nosso modo de envelhecer e o momento de morrer. Cada velhice e cada morte são únicas, singulares.

Chegada ao topo e a descida

A metáfora a tomar a vida como uma montanha. Queremos subir, e subimos. Chegados ao topo, realizados pela façanha, tudo se inverte: começamos a descer, com lentidão e prudência. Uma queda ou derrapada pode ser fatal.

Sentimos el influjo de la muerte mientras más aumentan las dificultades de la vida, cuyas tentativas fundamentales son las de retardar el descenso y hacerlo lo más agradable y lento que sea posible. Filósofos dizem: o ser é “para la muerte. E é. Mas, também, podemos filosofar de outro ângulo: o ser existe para a vida, nasce para viver, com um princípio e um fim. Então, desfrutar dela.

Manter a mente ativa é tão importante como manter o corpo em forma. Los viejos carregam um estigma. Trazem consigo uma mensagem: en el horizonte está la muerte. São os portadores da má notícia, insista-se nessa lembrança.. Varón, no entanto, não desanima a los viejos. São também amados.

Nada, no entanto, deve obscurecer o fato de que sendo velhos, provocam mudanças nos ambientes. Se um velho chega a uma conversação de jovens, algo cambia. E isso não é desamor, desatenção ou desprezo. Pode ser encarado com um respeito carinhoso. Mas, representa, também, tal chegada, um mal-estar, um incômodo, inegavelmente.

A morte mais difícil na velhice é a da companheira, do companheiro. Não é apenas a morte de um ser querido. É a partida da pessoa com quem se vive diariamente. Eu próprio senti isso, agora, com a perda de minha querida Carla, há um ano. Adorável companheira. É muito difícil.

Não recusa a discussão sobre o sexo na velhice. Nela, quando se abandona a pressão fálica centrada na penetração, se alcançaria o erotismo próprio da idade anciã, a abrir um campo mais amplo, que incluye otro tiempo, otras caricias, otras formas de placer.

Nem deixa de tratar da ambição da imortalidade no ser humano. Esse anseio, ele diz, pode ser visto como um convite a expandir a compreensão do que significa ser humano.

Na conclusão, Varón faz uma espécie de acerto de contas. Abre as portas não do inferno, mas da esperança. É possível aos velhos viver plenamente, divertir-se, cumprir as tarefas concernentes às condições deles. O velho, a velha deve aceitar a boa notícia de estarem vivos. Vivos, num mundo muito diferente daquele em que nasceram. A desfrutar dessa atual etapa da cultura humana. Com a experiência deles, podem ajudar aos filhos e netos em alguns dos problemas surgidos para eles.

Terminou o livro no dia 28 de abril de 2025. De si próprio, considera ter vivido até agora uma história de final feliz. Viveu a vida com felicidade e amor. Tirou de si a coragem necessária para enfrentar as inúmeras dificuldades da vida.

Enfrentou ditadura argentina, conseguiu escapar, desenvolver uma rica trajetória intelectual. Convive e desfruta da vida em família: com a companheira, com os cinco filhos, com as pessoas com quem se casaram, com os netos. No trabalho dele, trata de refletir, o quanto possível e com muita alegria, sobre os problemas atuais e o tempo desperdiçado pelas loucuras próprias do mundo de hoje.

Ao partir, e sou eu a dizê-lo, deixará um enorme legado à humanidade. Quem desfruta da sabedoria dele, pode dizer isso, sem receio de errar.

*Emiliano José é jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia.

Referência


Bernardino C. Horne. Envejecer: el duelo por sí mismo. Olivos, Grama ediciones, 2025, 120 págs.


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