Pierre Bourdieu – duas leituras

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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre dois livros que analisam a obra do sociólogo francês.

Há cerca de cinco décadas, desde o ensaio pioneiro de Sergio Miceli (1945), “A força do sentido”,[1] sobre a sociologia dos sistemas simbólicos desenvolvida por Pierre Bourdieu (1930-2002), a fortuna crítica sobre o sociólogo francês não para de crescer. Destaco aqui dois pequenos livros, publicados pouco após a morte do autor, que se constituem em eficientes guias aos interessados em conhecer algumas dimensões analíticas dos trabalhos de Pierre Bourdieu.

1.

Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola reúne entrevistas com cientistas brasileiros e de outros países, realizada para a série de televisão “Pensamento Contemporâneo”, transmitida pelo Canal Universitário do Rio de Janeiro (UTV). As entrevistas apresentam, fundamentalmente, a contribuição desses intelectuais para o desenvolvimento de sua própria disciplina, acompanhada de depoimentos sobre o pensador, de lista contendo seus textos mais importantes e indicando, no caso dos estrangeiros, as traduções disponíveis em português.

O livro de estreia da série, dedicado a Pierre Bourdieu, contém seu depoimento concedido a 27 de outubro de 1999 em Paris, em sua sala no Collège de France, com a duração de quase cinco horas. Filmada integralmente pelo cineasta Pierre Carles (1962) – que apresentou parte dela em seu filme A sociologia é um esporte de combate (2001) –, essa entrevista foi editada, reduzindo-se a uma hora e trinta minutos e recebeu o acréscimo dos depoimentos de Moacir Palmeira e Sergio Miceli, “primeiros professores brasileiros a divulgar o trabalho de Pierre Bourdieu em nosso país” (p. 11).

Pierre Bourdieu mostra-se descontraído, falando de sua trajetória, expondo as ideias centrais que desenvolveu ao longo da volumosa obra que escreveu, bem como abordando de forma mais específica temas como globalização, neoliberalismo, papel das organizações não-governamentais, ação do Fundo Monetário Internacional, televisão, dominação masculina, dentre outros (p. 12).

Inicia dizendo acreditar que a sociologia da educação e da cultura que elaborou teve o mérito de mostrar os mecanismos pelos quais a escola participa na conservação das estruturas sociais, numa sociedade de classes. “O sistema escolar contribui, então, para ratificar, sancionar, transformar em mérito escolar as heranças culturais que passam pela família” (p. 15). Ao longo de seus trabalhos pode-se notar a demonstração da existência de relações entre a origem social e o sucesso escolar, além de mecanismos sociais que mantêm essa relação.

Entretanto, acrescenta, certas coisas mudam constantemente: “se retomamos meu trabalho, desde Os herdeiros (1964) até A nobreza do Estado (1989), e mesmo em um capítulo sobre educação em A miséria do mundo, vemos que conceitos mudam o tempo todo por sobre uma base de constantes, de conhecimentos que se refinam, tornam-se mais precisos, corrigem-se e se sistematizam” (p. 16).

Pierre Bourdieu faz uma série de considerações acerca do início de sua carreira na Argélia, a maneira como vivia e entendia a situação no final dos anos 1950, a amizade com Abdelmalek Sayad (1933-1998), que prevaleceu até a morte do amigo argelino, e suas discordâncias com as concepções vigentes de escola libertária, mitificada pelo Partido Comunista.

Na Semana do Pensamento Marxista, organizada pelo PC francês, afirmou: “Aqueles que a escola libertou colocam sua fé numa escola libertária que está a serviço da escola conservadora” (p. 20).

A entrevista prossegue com um ataque aos Chicago Boys, à globalização, à precarização das relações de trabalho etc.: “Neste momento, estão acontecendo na França coisas que foram feitas no Brasil, na Argentina, pelos Chicago Boys, e vemos as consequências – aumento do desemprego, violência, criminalidade, religiões milenaristas, pentecostalistas etc. Essas consequências são encontradas também nos guetos de Chicago, ao lado do campus universitário simpático dos Chicago Boys” (p. 21).

Retoma algumas ideias centrais que havia desenvolvido em Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal (1998), criticando as concepções do Welfare State, recuperando os eixos básicos do livro de Keith Dixon, Os evangelistas do mercado (1998) – que mostra como se deu a produção bem orquestrada do discurso sobre o mundo social e sobre o mundo econômico, “repassada e difundida por grupos, lobbies, jornalistas, tendo em geral muito dinheiro por trás” (p. 27). Talvez um dos resultados mais palpáveis dessas transformações possa ser simbolizado por aquilo que caracteriza como “a destruição de todos os coletivos” (p. 28).

Na continuidade da entrevista, Pierre Bourdieu solta farpas contra o então presidente Fernando Henrique Cardoso (1931), comparando-a a Lionel Jospin (1937), a Gerhard Schroeder (1944) e a Tony Blair (1953); “[…]penso que se alguém se torna presidente social-democrata a serviço das lógicas dominantes é porque já tinha disposição nesse sentido. De qualquer maneira, é claro também que só se pode aceitar a ideia de que ele age pela força de compromissos ligados à posição política como desculpa […]. Um homem político, por mais dominado que seja, por mais que esteja ligado a uma posição política dominada, num país dominado, tem uma margem de liberdade que lhe permite agir” (p.35).

Discute, também, as posturas éticas de vários colegas acadêmicos; retoma o debate acerca do papel da mídia (“as salas de redação vêm a ser um dos lugares mais importantes de poder simbólico e mesmo político e econômico, pois é aí que se criam as ideias-força, as ideias fortes” (p. 45); ressalta a participação das mulheres, no sentido de zelar pelas relações familiares (o que ele chama de capital social da família), e suas relações com o Brasil, que acabou morrendo sem visitar (p. 51-53).

Maria Andréa Loyola escreve, ainda, um pequeno ensaio, “Bourdieu e a sociologia”, no qual procura mapear a obra do pensador, valendo-se de uma atualizada bibliografia de seus trabalhos, a maior parte dos quais já traduzidos no Brasil. Entendo que esse livro de Maria Andréa Loyola seja um estímulo significativo para o contato com um autor desaparecido no auge de sua atividade intelectual.

2.

Maria Alice Nogueira e Cláudio Martins Nogueira, professores na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, são autores de excelente livro – Bourdieu e a educação – em que dissecam as contribuições de Pierre Bourdieu, mais especificamente as dedicadas ao campo educacional.

Organizado em duas partes, os quatro capítulos da obra tratam, inicialmente, de compreender a ordem social de maneira inovadora, “que escape tanto ao subjetivismo (tendência a ver essa ordem como produto consciente e intencional da ação individual) quanto ao objetivismo (tendência a reificar a ordem social, tornando-a como uma realidade externa, transcendente em relação aos indivíduos, e de concebê-la como algo que determina de fora para dentro, de maneira inflexível, as ações individuais)” (p. 21).

A abordagem do sociólogo francês afasta-se das perspectivas subjetivista e objetivista, propondo uma teoria da prática centrada na noção de habitus. Entende que os indivíduos agiriam orientados por uma estrutura incorporada (um habitus), que refletiria as características da realidade social na qual foram socializados (p. 33).

O outro capítulo explora a realidade social, em especial através dos conceitos de espaço social, campo e capital (econômico, cultural, social e simbólico), mostrando como são essenciais “ao programa teórico e epistemológico do autor de construir uma sociologia renovada, distante do subjetivismo e do objetivismo” (p. 22).

Os capítulos dedicados à sociologia da educação de Pierre Bourdieu acompanham as várias décadas de sua trajetória, do início dos anos 1960 até a sua morte, em 2002. Ele jamais deixou de criticar as concepções da escola como instância democratizadora e difusora de uma cultura universal e racional. Critica o caráter de classe inscrito nas formas de recrutamento público escolar, do funcionamento pedagógico da escola e de seus efeitos sobre o destino social e profissional dos egressos (p. 58).

Examina, também, “a influência da escolarização e dos veredictos escolares sobre a subjetividade e a construção das identidades individuais”; fala das formas de sofrimento social originárias na família e na escola, “tal qual o caso do ‘trânsfuga’ de classe que, graças à consagração escolar, vive uma situação de ascensão social que o afasta de seu meio social de origem e de seus entes mais significativos, causando a uns e a outros uma dolorosa contradição interna” (p. 58).

Bourdieu e a educação conclui com um rico debate em torno de seus trabalhos, trazendo anexos cronologia do autor, obras (suas e sobre ele) publicadas na França e no Brasil e sites na Internet. Em suma, é leitura indispensável aos interessados no pensamento de um pensador e ativista que se tornou referência obrigatória para compreender, segundo ele, “os fundamentos ocultos da dominação” presentes nas sociedades de classe contemporâneas.[2]

**Afrânio Catani é professor titular sênior da Faculdade de Educação da USP. Autor, entre outros livros, de Origem e destino: pensando a sociologia reflexiva de Bourdieu (Mercado de Letras).

Referências

Maria Alice Nogueira e Cláudio Martins Nogueira. Bourdieu e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, 150 págs. [https://amzn.to/4mCjatn]

Maria Andréa Loyola. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2022, 98 págs.

Notas

[1] Sergio Miceli. A força do sentido. In: Pierre Bourdieu. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. I-LXI. [Nova edição: A força do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2022, 96 págs.].

[2] O comentário do livro de Maria Andréa Loyola foi publicado originalmente na Revista Brasileira de Educação (número 24, 2003) e o de Maria Alice Nogueira e Cláudio Martins Nogueira na Margem Esquerda (número 6, 2005).

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