O lago encantado de Grongonzo

Imagem: Paulo Monteiro / Jornal de Resenhas
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre o livro de Marilene Felinto

Não imaginem que O lago encantado de Grongonzo, o segundo romance da escritora, jornalista e tradutora Marilene Felinto, seja leitura fácil, dessas que podem ser lidas de forma desatenta. Marilene não é de fazer concessões. Basta ver As mulheres de Tijucopapo (1982), seu premiado e elogiado romance de estreia e, também o livro Graciliano Ramos: outros heróis e esse Graciliano (1983), biografia polêmica e original do grande escritor nordestino. Tradutora de Conrad e de Shaw, é revelação poderosa na prosa.

O tema de Grongonzo não é um só, são vários, interligadíssimos: a amizade, a ruindade (nossa e dos outros), a raiva como possibilidade amorosa. Isso tudo é trabalhado a partir da história de Deisi, que relembra, reconstitui, reavalia e revive seu passado. Deisi está em Grongonzo, esse lugar que transforma “mulheres em pedras”, o seu “território” quase crítico, onde passou a infância, à espera de amigos – Lena, Estefânia e Demian, ex-namorado, de quem se separara espontaneamente.

Deisi e outros irmãos foram criados pela avó na violenta Grongonzo dos “tempos do onça”, cidade de “quatro armas”, onde todos eram militares e a criançada “filhos de uma ou outra patente”. Deisi era filha de marrons, de fuzileiro naval. Havia filhos de soldados rasos e verdes, de cabos brancos, de sargentos, de tenentes azuis da Aeronáutica. Estudavam juntos no mesmo “Patronato Maria Tereza” (p. 49).

Muito cedo aprende a manejar seu bodoque de talo de goiabeira e tiras de pneu, arma indispensável para sua sobrevivência e para extravasar os rancores. Não aceita trocar seu bodoque por um lápis de borracha na ponta e não dá moleza para os filhos dos tenentes que no colégio se metiam a falar bem, “a não se misturar com ninguém” e, suprema ousadia, a fazer versos nas aulas, com tal arrogância, “como se as palavras fossem azuis, fossem de quem nasceu bem”. Ela e seus amigos, aos bandos, se acoitavam nas touceiras de capim e munidos de bodoques em V e cartucheiras carregadas de sementes de carrapateira, abriam fogo contra os gostosões, filhos dos oficiais. O rancor como moral para os jacobinos rurais.

A exemplo dos amigos, a relação que mantêm com a avó que a criou é de amor e ódio. A velhinha lhe fornece, porém, um guia seguro de sobrevivência, através de provérbios, frases-feitas e palavras (“fazia palavras, apenas. Que até matavam pessoas”): “cada cabeça é um mundo”; “fede que só catinga de aruá”; “besta é caju, que nasce com a cabeça pra baixo”; “aqui se faz, aqui se paga”; “eu te piso, eu te repiso, eu te reduzo a granizo”. A avó quase lhe matava (logicamente com palavras), ao exprimir o que pensava a respeito da neta mais velha: “tão cheia de ruindade essa menina, da ponta do cabelo ruim até o dedo do pé sujo”.

Mais se poderia falar a respeito de O lago encantado de Grongonzo, mas acho que dá para parar por aqui. Marilene dá o seu recado numa linguagem próxima da linguagem oral, frases curtas – na maioria das vezes os períodos não ultrapassam uma linha –, registrando o que a sua personagem diz, pensa ou o que mal formula. E o faz com a precisão de um atirador de elite, disparando palavras mortíferas, rancorosas, mas de uma quase intratável ternura: “as palavras carbúnculo” em que Mário de Andrade via a possibilidade e o princípio de “um carinho diamante”.

*Afrânio Catani é professor aposentado na USP é professor visitante na UFF.

Publicado originalmente no extinto Leia Livros. São Paulo. Ano IX, setembro, 1987, p. 30.

 

Referência


Marilene Felinto O lago encantado de Grongonzo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Avritzer Lincoln Secco Flávio Aguiar Berenice Bento Marcelo Módolo Airton Paschoa Celso Frederico Chico Whitaker Boaventura de Sousa Santos Luiz Eduardo Soares Carlos Tautz Henry Burnett Juarez Guimarães Milton Pinheiro Paulo Capel Narvai Eleutério F. S. Prado Leonardo Boff Ronald Rocha Sandra Bitencourt Daniel Brazil João Adolfo Hansen José Dirceu Fábio Konder Comparato Ronaldo Tadeu de Souza Eugênio Trivinho Ladislau Dowbor Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michael Roberts Vinício Carrilho Martinez Yuri Martins-Fontes Leda Maria Paulani Luciano Nascimento Priscila Figueiredo Flávio R. Kothe Jorge Branco João Carlos Salles Sergio Amadeu da Silveira Denilson Cordeiro Armando Boito Tales Ab'Sáber Salem Nasser Paulo Fernandes Silveira Michel Goulart da Silva Michael Löwy José Machado Moita Neto João Carlos Loebens Dênis de Moraes Alexandre Aragão de Albuquerque Marjorie C. Marona Tadeu Valadares Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Everaldo de Oliveira Andrade Valerio Arcary Walnice Nogueira Galvão Eduardo Borges Eugênio Bucci Atilio A. Boron Julian Rodrigues Gilberto Lopes Marilena Chauí João Paulo Ayub Fonseca Vanderlei Tenório Thomas Piketty Matheus Silveira de Souza Luis Felipe Miguel Alexandre de Freitas Barbosa José Raimundo Trindade Lorenzo Vitral Igor Felippe Santos Fernando Nogueira da Costa Marcos Aurélio da Silva Ricardo Antunes José Costa Júnior Érico Andrade Daniel Costa Manuel Domingos Neto Otaviano Helene Antonino Infranca Rubens Pinto Lyra José Luís Fiori Lucas Fiaschetti Estevez Rodrigo de Faria Slavoj Žižek Marcos Silva Samuel Kilsztajn Gabriel Cohn Andrés del Río Vladimir Safatle João Sette Whitaker Ferreira Ari Marcelo Solon Andrew Korybko Dennis Oliveira Bernardo Ricupero José Geraldo Couto João Lanari Bo Remy José Fontana Renato Dagnino Luiz Bernardo Pericás Antônio Sales Rios Neto Antonio Martins Luís Fernando Vitagliano Manchetômetro Bruno Machado Afrânio Catani Luiz Renato Martins Leonardo Sacramento Rafael R. Ioris Tarso Genro Valerio Arcary Alysson Leandro Mascaro Henri Acselrad Paulo Martins Mariarosaria Fabris Bento Prado Jr. Luiz Roberto Alves Claudio Katz Carla Teixeira Marcus Ianoni Osvaldo Coggiola Francisco de Oliveira Barros Júnior José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Fabbrini Paulo Nogueira Batista Jr Ronald León Núñez Luiz Werneck Vianna André Singer Heraldo Campos Marcelo Guimarães Lima Eleonora Albano Luiz Marques Elias Jabbour Anselm Jappe Francisco Pereira de Farias André Márcio Neves Soares Fernão Pessoa Ramos Gerson Almeida Gilberto Maringoni Ricardo Abramovay Kátia Gerab Baggio Eliziário Andrade Caio Bugiato Daniel Afonso da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Alexandre de Lima Castro Tranjan Jorge Luiz Souto Maior Plínio de Arruda Sampaio Jr. Celso Favaretto Jean Pierre Chauvin Mário Maestri Liszt Vieira Paulo Sérgio Pinheiro Maria Rita Kehl Annateresa Fabris Benicio Viero Schmidt Jean Marc Von Der Weid João Feres Júnior Ricardo Musse Francisco Fernandes Ladeira Chico Alencar

NOVAS PUBLICAÇÕES