Por RENATO ORTIZ*
A platitude não busca convencer, apenas aplainar o pensamento. É uma performance que se esgota na superfície lisa do já sabido, transformando o espaço público em palco para uma sabedoria rasa que celebra o vazio
1.
Existe em inglês uma expressão sugestiva: “to belabor the obvious”. Ela pressupõe a existência de duas camadas de definições: primeiro, o óbvio; depois, o esforço para retrabalhá-lo em sua banalidade. A duplicidade manifesta é interessante. Não é suficiente que a primeira camada se imponha enquanto tal, a ela acrescenta-se uma dimensão que a desdobra em sua mesmice. As platitudes têm algo disso, não se contentam em afirmar o trivial, sua intenção é a ele conferir um valor distinto daquilo que se enuncia. Os semiólogos estabelecem uma diferença entre significante e significado, dizem que o significante é uma mediação, nos remete a algo que se encontra acima dele, o significado. Por exemplo, o som de uma palavra, casa (significante), e seu significado (lugar de moradia); existe entre eles um hiato, a referência primeira e aquilo que vem depois (uma espécie de “metalinguagem”); o sentido resulta desta defasagem.
A platitude é uma afirmação na qual o significante almeja ser significado. Porém, entre os dois níveis não há discrepância, tudo é plano, se anula em sua superfície lisa. “A vida é um mistério”; “Tudo acontece por uma razão”; “Às vezes as coisas ruins levam a coisas boas”. Cada uma das frases, repletas de boa intenção, resvalam na planitude de uma sabedoria rasa. Elas marcam as conversas entre as pessoas, a literatura de autoajuda, o jornalismo, o discurso dos intelectuais midiáticos. Com precisão e esmero tudo é dito de forma incipiente. Não se deve assimilar as platitudes à ideia de clichê, suas qualidades são distintas. Clichê implica a existência de uma fórmula que se reitera, o que o molda é a repetição excessiva e desgastante da originalidade (na publicidade, a imagem de King Kong no alto do Empire State). Um pouco como os emblemas, os clichês revestem-se de uma materialidade, de uma concretude, inserem-se, ou melhor, encrustam-se em um objeto específico. Esse é seu sentido etimológico: chapa metálica na qual se grava uma imagem a ser reproduzida em série. A reprodução, a serialização, contrasta assim com a originalidade anterior. As platitudes às vezes parecem clichês, entretanto, sua natureza é outra, a repetição nos remete ao insípido, não propriamente à banalização do original.
2.
Diz-se que o termo afinidade eletiva deriva da Química pré-moderna, quando ela era ainda um conhecimento frágil, não tinha inteiramente se emancipado de noções como a pedra filosofal ou a conquista da felicidade. Era utilizada para caracterizar uma situação inusitada, o movimento de partículas de substâncias diversas e contraditórias que, por fim, se encontravam. Apesar das diferenças marcantes, em algum ponto de suas trajetórias, as afinidades se manifestariam (o termo não se aplicava ao que era comum a dois ou mais objetos). As platitudes desfrutam de uma afinidade eletiva com o espaço público, malgrado suas diferenças (nele habitam intenções diversas) eles se defrontam. Na verdade, sem a dimensão da publicidade elas se perderiam na solidão de sua existência, o discurso ralo seria simplesmente inócuo, frustrante. Entretanto, o espaço público não é para a platitude um lugar de retórica. Os gregos antigos consideravam a retórica a arte de convencer o outro. Diante das pessoas o orador deveria persuadi-las de suas ideias. Para isso existia uma ciência a ser respeitada, com etapas necessárias para levar ao fim ao convencimento do outro. Ethos, a credibilidade do orador; pathos, o uso dos sentimentos como meio de persuasão; logos, a exposição racional na qual se funda o processo. O convencimento se faz assim através da constituição de um juízo. A arte da platitude é distinta, nela predomina o indiferente, tudo se resume a aplainar o relevo das coisas e do pensamento, a afirmação deve ser retilínea e rasteira, sem interrupções ou percalços. O objetivo não é convencer, mas reforçar a banalidade do mundo, afirmar algo, sem nada dizer. Estamos diante de uma performance que se esgota em si mesma.
Toda performance é um ato; para isso necessita de uma preparação prévia. Em sua exibição na esfera pública, como se diz na linguagem dos maquiadores, as platitudes exigem um “make”. A postura do corpo, a entonação da voz, a respiração da fala, tudo deve ser ajustado ao desfecho final: o trivial. Nada pode comprometer sua granulação lisa e superficial. O ato realizado não pode deixar dúvidas, sua presença é inconfundível. Creio que existe uma expressão idiomática, embora em português, que apreende talvez sua idiossincrasia profunda: “arrombar portas abertas”. O orador se posiciona em seu lugar de fala e com arroubo se arremessa no espaço vazio. Uma lufada de vento fustiga-lhe o rosto, em sua ilusão de ótica imagina ter transpassado o obstáculo inexistente à sua frente. Satisfeito com o estrondo da muralha que se desfaz, adentra ruidosamente pela casa como se o estampido de algo inaudível ecoasse dentro de si.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]
Publicado originalmente na BVPS.
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