Nietzsche no Brasil

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Scarlett Marton*

A partir do ano 2000 Nietzsche torna-se “popular” no Brasil; é explorado pela mídia, utilizado pelos meios de comunicação, apropriado pelo mercado editorial

A presença de Nietzsche é incontestável entre nós. Nas últimas décadas, a repercussão de seus escritos acabou por fazer-se sentir nas mais diversas áreas: na literatura, nas artes plásticas, na música, na psicanálise, nas chamadas ciências humanas.

Houve quatro ocasiões em que a sua presença se fez sentir com maior ênfase no Brasil. Já no início do século, suas ideias despertaram interesse; aqui chegaram, provavelmente, através do movimento anarquista europeu e, em particular, do espanhol, que considerava Nietzsche um pensador dos mais revolucionários. E sua obra deixou marcas em romances e contos brasileiros de teor anarquista.

Poucas décadas depois, seguindo o espírito da época, Nietzsche passou a ser tomado em nosso país como pensador de direita. Por ocasião da Segunda Grande Guerra, artigos ideológicos, que apareciam em revistas de cunho fascista, pretenderam apropriar-se de seu pensamento. Mas, quando chegava ao auge a sua difamação entre nós, intelectuais de peso tomaram a sua defesa, conclamando a que se levasse em conta “sua técnica de pensamento” e se recuperasse o filósofo Nietzsche.

Por fim, na efervescência de Maio de 68, quando a extrema-esquerda francesa fez dele o suporte de suas teorias, aqui passou a ser visto como iconoclasta. Na França, Foucault, Deleuze, Derrida e outros questionavam conceitos desde sempre presentes na investigação filosófica, punham em xeque noções consagradas pela tradição, subvertiam formas habituais de pensar e, ao lado de Marx e Freud, incluíam Nietzsche entre os “filósofos da suspeita”; em nosso país, quase como uma caixa de ressonância, privilegiava-se a vertente corrosiva do seu pensamento.

Então, Nietzsche passou a nomear um estilo a serviço de um certo sentimento de existência, marcado pela ousadia e pela irreverência. Invocou-se o seu nome, para pôr em causa as instituições e os valores estabelecidos, a maneira bem-comportada de pensar e de agir de nossa sociedade. A ele se recorreu para afirmar a necessidade de transbordamento e excesso, o desejo de êxtase e vertigem. Enfim, dele se lançou mão para proclamar radicalismos políticos e pulsões eróticas; dele se fez o patrono de uma “comunidade de rebeldes imaginários”. E assim se formou e cristalizou a imagem de Nietzsche libertário, conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos. Não havia nada melhor do que essa imagem de Nietzsche para contrapor-se à ditadura militar, que levava à recrudescência da violência no Brasil.

Ao lado desse Nietzsche libertário, que continua presente entre nós, prepara-se um outro nos anos de 1990. O país abre-se ao neoliberalismo e a tudo o que ele acarreta, a começar por converter cidadãos em consumidores. O ano 2.000 marca um ponto de inflexão no trato com o pensamento nietzschiano. No Brasil, Nietzsche torna-se “popular”; é explorado pela mídia, utilizado pelos meios de comunicação, apropriado pelo mercado editorial. Publicam-se livros introdutórios a respeito de sua filosofia, textos de divulgação de suas ideias, artigos em jornais e revistas que mencionam a qualquer propósito palavras suas. No mais das vezes, operam-se recortes arbitrários em seus escritos visando a satisfazer interesses imediatos. Dele se fala como se fala de um autor na moda: sem ter conhecimento da densidade de sua reflexão filosófica. Tomado como objeto de consumo, Nietzsche é domesticado. A partir do ano 2.000, impõe-se cada vez mais a imagem de um Nietzsche que nos ensinaria como ser bem-sucedido na profissão, preservar a saúde, encontrar a felicidade, em suma, como viver bem. Ele deveria sobretudo nos ensinar a evitar o estresse quando questionamos pré-juízos, crenças e convicções.

Hoje, presenciamos a presença de vários Nietzsche. De um lado, há aquele que, domesticado, é completamente desprovido de caráter crítico. De outro lado, há o que se toma como um objeto de estudo como qualquer outro, ainda que continue a atrair as massas. É sobretudo como historiadores da filosofia que se comportam os estudiosos nietzschianos. Ricas e múltiplas, as pesquisas sobre o pensamento de Nietzsche continuam a prosperar entre nós.

Entre as pesquisas em curso mais relevantes, não se pode deixar de mencionar as que revelam uma outra face do filósofo. Voltando-se com atenção e rigor para os seus textos, elas exploram aspectos totalmente inesperados de seu pensamento: os ataques contra o ideal democrático, o combate à ideia de igualdade, a crítica da abolição da escravidão, a intolerância em face dos enfermos e fracassados, a condenação do movimento de emancipação feminina. É um Nietzsche conservador que surge na cena filosófica brasileira. No momento, em que a extrema direita chega ao poder, essa imagem de Nietzsche denuncia a situação mesma que estamos vivendo: os cinco pontos acima estão em vigor entre nós.

A perseguição política, que leva a expulsar do país, encarcerar e até assassinar políticos de oposição, ao lado da censura aos blogueiros e da limpeza ideológica nas universidades, bem mostram que vivemos num estado de exceção e não numa democracia. A promoção dos interesses de grupos ligados ao capitalismo financeiro e ao agronegócio leva boa parte da população a viver abaixo da linha da pobreza, aprofundando as desigualdades sociais. A reforma das leis trabalhistas, contrariando a Constituição brasileira, que reduzem ou mesmo suprimem os direitos dos trabalhadores, e o abandono deliberado da luta contra o trabalho escravo ainda presente no país, condenam milhares a uma espécie de escravidão. O extermínio dos índios, o ódio contra os negros e o desprezo pelos imigrantes bolivianos e haitianos, além dos insultos xenófobos e racistas que invadem a vida cotidiana, manifestam intenções de caráter eugênico. A condenação do aborto, o desprezo pela igualdade de gênero nos salários e na política, assim como as atitudes homofóbicas, são indícios das ideias retrógradas sobre o lugar da mulher na sociedade.

Mas Nietzsche também revela entre nós o seu potencial de resistência. Em vez de apropriar-se de certos aspectos de seu pensamento que seriam suscetíveis de confirmar os seus discursos, os ideólogos do poder, expressando a sua ignorância, não podem suportá-lo. Se os movimentos religiosos conservadores, apoiados por políticos evangélicos, não aceitam o anunciador da morte de Deus, os militares no poder rejeitam o discípulo de Dioniso, que contribuiu para a contestação da ditadura nos anos de 1970. E assim volta, em toda a força, o Nietzsche libertário.

*Scarlett Marton é professora titular aposentada do Departamento de filosofia da USP. Autora, entre outros livros, de Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche (Barcarolla)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Claudio Katz Marcelo Guimarães Lima Paulo Martins Anselm Jappe Paulo Nogueira Batista Jr Caio Bugiato Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Renato Martins Alysson Leandro Mascaro Igor Felippe Santos Vladimir Safatle Celso Frederico Mariarosaria Fabris Alexandre de Freitas Barbosa Afrânio Catani Sandra Bitencourt José Luís Fiori João Paulo Ayub Fonseca Dennis Oliveira Ladislau Dowbor Gilberto Maringoni Antonino Infranca Antonio Martins Daniel Brazil Samuel Kilsztajn Juarez Guimarães Bernardo Ricupero Berenice Bento Gilberto Lopes João Sette Whitaker Ferreira Annateresa Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Carlos Tautz Leda Maria Paulani Fernão Pessoa Ramos Priscila Figueiredo Valerio Arcary Otaviano Helene Remy José Fontana Luiz Carlos Bresser-Pereira Tarso Genro Leonardo Sacramento Ari Marcelo Solon Luiz Werneck Vianna José Machado Moita Neto Jorge Branco Leonardo Boff Atilio A. Boron Daniel Costa Benicio Viero Schmidt Paulo Fernandes Silveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Ricardo Antunes Celso Favaretto Luiz Eduardo Soares Matheus Silveira de Souza José Raimundo Trindade Daniel Afonso da Silva Airton Paschoa Jean Pierre Chauvin Andrew Korybko Chico Alencar José Geraldo Couto Ronald Rocha Luciano Nascimento Elias Jabbour Andrés del Río Vinício Carrilho Martinez Eleonora Albano Michael Löwy Salem Nasser Lucas Fiaschetti Estevez Kátia Gerab Baggio Rubens Pinto Lyra Thomas Piketty Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Módolo Flávio R. Kothe Carla Teixeira Fernando Nogueira da Costa Jean Marc Von Der Weid Armando Boito Lorenzo Vitral Mário Maestri Heraldo Campos Plínio de Arruda Sampaio Jr. Francisco Fernandes Ladeira José Costa Júnior João Feres Júnior Lincoln Secco Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gabriel Cohn Tadeu Valadares Fábio Konder Comparato Luiz Bernardo Pericás Michel Goulart da Silva Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Musse Eugênio Bucci Rafael R. Ioris Boaventura de Sousa Santos Henry Burnett Flávio Aguiar Milton Pinheiro Marilena Chauí Bruno Fabricio Alcebino da Silva Dênis de Moraes José Dirceu Érico Andrade Paulo Capel Narvai Leonardo Avritzer Bento Prado Jr. Walnice Nogueira Galvão Everaldo de Oliveira Andrade Ronaldo Tadeu de Souza André Márcio Neves Soares Ricardo Abramovay Slavoj Žižek Maria Rita Kehl Luiz Roberto Alves João Carlos Loebens Yuri Martins-Fontes Marcos Silva Vanderlei Tenório João Lanari Bo Ricardo Fabbrini João Adolfo Hansen Eliziário Andrade Osvaldo Coggiola Tales Ab'Sáber Ronald León Núñez Henri Acselrad Francisco Pereira de Farias Luis Felipe Miguel Valerio Arcary Denilson Cordeiro Marcos Aurélio da Silva Manuel Domingos Neto Gerson Almeida Antônio Sales Rios Neto Jorge Luiz Souto Maior João Carlos Salles Marcus Ianoni Renato Dagnino Rodrigo de Faria Julian Rodrigues Eleutério F. S. Prado Eduardo Borges Michael Roberts Bruno Machado Sergio Amadeu da Silveira Luís Fernando Vitagliano José Micaelson Lacerda Morais André Singer Chico Whitaker Manchetômetro Eugênio Trivinho Luiz Marques Liszt Vieira Marjorie C. Marona

NOVAS PUBLICAÇÕES