Argentina – a rua como resposta

Imagem: Steve Johnson
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Por EMILIO CAFASSI*

A derrota não foi apenas numérica, mas moral: a ferrugem da corrupção e a brutalidade do ajuste econômico corroeram a legitimidade do governo. A resposta veio das urnas pelo vazio e das ruas pelos corpos

Buenos Aires não é, nessas linhas, a cidade da efervescência inesgotável nem a província administrativa. É um espelho desmesurado onde o país se contempla com suas misérias e suas mitologias. Uma espécie de cinturão que envolve – e sufoca? – a capital antes de se abrir para vastas extensões onde a renda fundiária diferencial e sua concentração atingem sua maior brutalidade.

Precariedade majoritária, desigualdade extrema e latifúndio se entrelaçam como as notas dominantes daquele território. Abriga quase 40% do cadastro eleitoral, mas também o coração simbólico da política argentina. Quem conquista sua geografia pode reivindicar uma herança de poder; quem a perde recebe a marca indelével do fracasso.

Na eleição de 7 de setembro de 2025, esse espelho pendeu a balança com uma força que nem mesmo o mais pessimista dos libertários havia imaginado: mais de treze pontos a favor do peronismo – unidos no último minuto à cola do terror – uma surra que rasga os véus das desculpas.

O espelho de Buenos Aires

Os números não apenas pintam um quadro de derrota, mas também revelam o pulso de um eleitorado abalado. De acordo com as pesquisas mencionadas, seis em cada dez moradores de Buenos Aires admitem ter cortado gastos nos últimos meses, enquanto a queda da inflação parece ser a única conquista reconhecida do governo, juntamente com uma rejeição quase equivalente aos cortes nas pensões.

Essa dupla abordagem – alívio parcial e punição profunda – significa que mais da metade dos entrevistados já preveem votar contra o partido governista em outubro. Esse panorama de um fenômeno é ainda mais preocupante para Javier Milei: o voto da classe média-baixa, outrora a força motriz por trás de sua ascensão, se afastou em massa, deixando “La Libertad Avanza” (LLA), o partido dos irmãos Milei, com um eleitorado cada vez mais semelhante ao do tradicional PRO (Partido Progressista) – o partido de Mauricio Macri.

A magnitude do revés é eloquente: na província de Buenos Aires, a aliança LLA-PRO caiu mais de 13 pontos atrás da Força Pátria (a organização que reúne os partidos peronistas), com Axel Kicillof conquistando 74 dos 84 municípios que governou – uma retenção de 88% – enquanto Javier Milei mal conseguiu manter 8 dos 12, uma perda relativa de 75%, mas uma perda absoluta significativa. O que as consultorias descrevem como percentuais é percebido na região como abandono: fábricas paralisadas e placas comemorativas da renúncia do Estado.

O vencedor indiscutível foi o governador Axel Kicillof, que não apenas derrotou Javier Milei como também desafiou a liderança de Cristina Kirchner, dividindo as eleições contra seu conselho e demonstrando que o kirchnerismo não é um cadáver político, como sonhava o partido no poder, mas um espectro que se recusa a ser enterrado.

O peronismo portenho exibiu seus músculos territoriais e deixou claro que o “último prego no caixão” prometido por Javier Milei era, na realidade, um pedaço de metal enferrujado que se cravou em seu próprio pé. Suspeito que ele não tenha tomado vacina contra tétano, o que agravará sua condição. Mas o fato mais revelador não foi a vitória peronista, mas a ausência de milhões de eleitores que haviam abraçado a fúria libertária em 2023; desta vez, eles ficaram em casa, desencantados com o ajuste que transformou a motosserra em guilhotina e com a suspeita de que a pureza anticasta era apenas mais um disfarce para antigas práticas corruptas.

O silêncio das urnas fala tanto quanto os próprios votos: não há mecanismo mais eficaz para punir um governo do que a abstenção massiva daqueles que o apoiaram ontem. Assim começou a queda do ex-presidente Fernando De la Rúa em 2001.

A derrota libertária em Buenos Aires não pode ser explicada apenas pela astúcia peronista ou pela obstinação de Alex Kicillof. No lodo da política argentina, onde ajustes e desconfianças se misturam, a indignação popular encontrou novos motivos para manchar as urnas roxas. O ajuste, apresentado como uma cirurgia virtuosa, transformou-se em carnificina: aposentados empobrecidos, pontes e hospitais paralisados, médicos e cientistas transformados em inimigos dos gastos.

  1. rRugido à corrosão

O povo, que antes ria do rugido do Leão, começou a sentir os golpes da motosserra e as mordidas do suborno em seus próprios corpos. Somando-se a essa ferida social, estava o ácido da corrupção. As gravações de áudio de Diego Spagnuolo discutindo subornos na Agência para Deficientes, o caso $Libra e os negócios obscuros de associados presidenciais atingiram o cerne da narrativa anticasta.

Como sustentar o discurso contra privilégios quando a própria irmã do presidente e seus confidentes são mencionados em esquemas de favores e propinas? A motosserra, símbolo de redenção, passou a ser vista como uma espada mecânica de dois gumes: ela corta subsídios para os pobres, mas também abre brechas por onde podem se infiltrar negócios obscuros.

O barro não é apenas material eleitoral: é uma metáfora para um país onde o poder está afundando em sua própria cova. Lá, a abstenção tornou-se a forma mais pura de protesto: milhões decidiram não manchar as mãos com aquela lama contaminada, condenando o partido no poder a uma derrota mais profunda do que qualquer diferença numérica.

A corrupção não é um desvio esporádico da política argentina: é sua ferrugem persistente, aquela crosta que se acumula nas engrenagens até travar a máquina republicana. Javier Milei havia prometido lubrificar o sistema com a honestidade do outsider, erradicando os vícios da “casta”. Mas as intrigas em torno de Karina e dos Menem, entre outros escândalos, mostraram que a anticasta também sabe enferrujar.

Os analistas foram mordazes: o partido no poder reagiu com o mesmo reflexo que denunciava em seus adversários, minimizando os eventos, acusando os acusadores e recusando-se a exigir suas renúncias. Essa simetria corrosiva apagou a distinção entre o novo libertarianismo e o antigo kirchnerismo, afundando o primeiro no mesmo atoleiro moral do qual prometera escapar.

Em termos mais profundos, corrupção não é apenas suborno ou contratos fraudulentos: é também a demonstração descarada de poder, as viagens luxuosas do presidente enquanto os hospitais estão fechados, o desrespeito às formas básicas de convivência e a violência verbal transformada em método.

Tudo isso constitui uma “corrosão da forma” tão grave quanto o roubo material, pois corrói a confiança coletiva. A ferrugem, quando avança, não conhece cores ou ideologias partidárias: infiltra-se em cada fresta e ameaça corroer a própria legitimidade da democracia.

A democracia argentina está mais uma vez à beira do abismo. As urnas de Buenos Aires falaram com uma voz ambivalente: puniram o partido governista, mas sem conceder um cheque em branco à oposição. Esse gesto permeia tanto a fúria quanto a esperança. A fúria de quem sabe ter sido enganado pela motosserra que prometeu cortar privilégios e acabou cortando direitos. A esperança de que ainda possa haver um vislumbre de memória coletiva, em defesa do bem comum contra a ganância privatizadora e a impudência corrupta.

Assim, a província volta a ser um espelho excessivo e um cinturão desconfortável: reflete o desgaste de um governo corroído pela própria ferrugem e aperta todo o corpo da nação até deixá-la sem fôlego. A abstenção ensurdecedora nas urnas, mais eloquente do que qualquer slogan, alerta que o tempo da indulgência está se esgotando. Talvez aí, nessa mistura de vazio e reflexão, esteja a chave: resgatar a democracia do atoleiro não com novas máscaras, mas com um pacto menos enferrujado, mais humano, capaz de romper o cerco e devolver o fôlego a todo o país.

O plano econômico de Javier Milei assenta num paradoxo: vangloria-se de ser uma âncora de estabilidade, mas está a afundar-se em areia movediça. A premissa oficial era clara – um dólar estável para conter a inflação – embora até os especialistas admitam que a “solução otimista” seria uma desvalorização ordenada e a solução pessimista, uma desvalorização com moratória. O que se apresentava como uma cirurgia virtuosa tornou-se uma autópsia social: reservas esgotadas, ciência demonizada e um país mergulhado na recessão e na paralisia industrial.

A estabilidade era apenas uma miragem adquirida ao preço de uma depressão econômica e social devastadora. Após a derrota na Província de Buenos Aires, a mística foi desfeita: Javier Milei deixou de ser o “imperador invulnerável” como os seus acólitos o descreviam e tornou-se um líder defensivo, assediado pelos mercados e pelos humores das ruas.

A transmissão nacional em que apresentou o orçamento buscou restaurar essa autoridade perdida. O presidente pareceu solene, sem recorrer ao seu arsenal de insultos, prometendo que um déficit zero é “inegociável” e que simultaneamente aumentará as verbas da previdência social. Mas as letras miúdas do projeto revelam outra conclusão: os números estão caindo em termos reais em comparação com 2023, e o Artigo 30 elimina os limites legais que historicamente protegiam a educação, a ciência e a defesa.

Mais saúde e mais universidades são anunciadas, mas menos é consagrado. A epopeia televisiva e a revista Excel se contradizem como um espelho refletindo uma imagem invertida. E enquanto se recitam elogios à austeridade, o país se vê sobrecarregado com quase mil projetos de obras públicas abandonados na província de Buenos Aires, lembretes de um ajuste que não é abstrato, mas de tijolos descascando e hospitais inacabados.

Hoje, essa tensão transbordou para o Congresso e para as ruas. A Câmara dos Deputados precisa se pronunciar sobre os vetos presidenciais à restauração do financiamento universitário, aos serviços de emergência pediátrica e aos programas para pessoas com deficiência. Lá fora, sindicatos, organizações estudantis e organizações sociais se mobilizam para exigir o respeito a esses direitos básicos. Se o partido governista se refugia em tecnicismos, as ruas nos lembram que a fome, a doença ou a exclusão não esperam pelo balanço final.

  • OOrçamento, ruas e cadernos

Ao mesmo tempo, a política revela suas fissuras mais obscuras, mas não caminha sozinha: do outro lado do balcão, aparecem os verdadeiros cúmplices da máquina corrupta. O caso “Cadernos” – um dossiê monumental iniciado em 2018 com base nas anotações de um motorista sobre o sistema de propina em obras públicas – voltou ao centro das atenções.

Inclui não apenas ex-funcionários, mas também CEOs de grandes construtoras (como Techint, IECSA, Roggio etc.), banqueiros e magnatas que financiaram a lubrificação do poder com malas de dólares. Quase cinquenta deles tentaram extinguir seus casos oferecendo US$ 25 milhões, como se a responsabilidade corporativa pudesse ser resolvida com um cheque.

O Ministério Público e a Unidade de Inteligência Financeira rejeitaram a tentativa com uma declaração contundente: “Neste Ministério Público, a impunidade não está à venda”. O que foi apresentado como “reparações integrais” foi, na realidade, a compra coletiva de absolvições. Porque a corrupção não se sustenta apenas na política: ela requer a cumplicidade ativa do capital, de conselhos de administração que fazem do suborno apenas mais um item em seus balanços.

Um país sujeito a ajustes também não precisa de um mercado negro para a inocência: essa “impunidade à la carte” é outra forma de corrupção, tão corrosiva quanto o próprio suborno.

O paradoxo se completa com a liberdade de imprensa. O juiz suspendeu a censura prévia – aquela aberração jurídica que abordamos recentemente – às gravações de áudio de Karina Milei, a pedido da própria interessada. Assim, enquanto as contas de universidades e hospitais são fechadas, uma rachadura se abre na esfera pública. A liberdade é concedida, ironicamente, não como uma conquista, mas como uma permissão.

O partido no poder se vê preso entre dois cenários contraditórios: a defesa de um orçamento que ajusta com supostas luvas de pelica e a tentativa de salvar empresários e funcionários amigos por meio de pagamentos redentores. E, no meio, uma sociedade que já experimentou o poder da punição silenciosa nas urnas de Buenos Aires. O espelho revela a ferrugem do poder: ajuste sem futuro, promessas sem apoio e moral sem fundamento. O risco não é apenas econômico: é o esvaziamento da confiança democrática, o único fio tênue em que se apoia a forma representativa liberal-fiduciária, indulgentemente chamada de democracia.

O país volta a se olhar em seu espelho desmesurado, e o que reflete não é apenas uma derrota eleitoral, mas um plano econômico que range, um orçamento que promete com uma mão o que tira com a outra, e uma justiça cuja imagem iludiu os empresários com a possibilidade de comprar absolvições de quem pagasse mais.

A rua, por sua vez, fala no plural diante do silêncio ensurdecedor das urnas: onde o voto estava ausente, o corpo agora está presente. Nessa encruzilhada, a democracia não pede milagres, apenas um respiro menos enferrujado que nos permita romper o cinto sufocante sem cair no atoleiro do cinismo.

O desafio é se desta vez a ferrugem será definitiva ou se ainda há mãos dispostas a polir o metal para que o reflexo no espelho finalmente devolva um rosto um pouco menos desfigurado. Ali, na rebelião como exercício de revogação, pode estar a única saída: arrancar o cinismo para que ele respire novamente como no já distante ano de 2001.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.


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