A condenação de Nicolas Sarkozy

Imagem: Quentin Grignet
image_pdf

Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

Uma condenação baseada não no crime cometido, mas na suspeita de que poderia ter sido, revela mais sobre a crise de uma nação do que sobre a culpa de um homem

1.

“Alucinante”. Eis a manifestação exata, a favor ou contra, sobre a decisão do Tribunal de Correção de Paris que condenou o presidente Nicolas Sarkozy a cinco anos de prisão por um conjunto de crimes: (i) financiamento ilegal de campanha, (ii) corrupção e (iii) enriquecimento ilícito – que o próprio Tribunal reconheceu que não existiu.

“Escandaloso”. Outra impressão sobre essa condenação que decorre da “convicção” de juízes de que o antigo presidente da República francesa tivera a “intenção” de cometer ou deixar cometerem-se crimes. Notadamente de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influência.

“Ódio sem limites”. Desejo de “humilhar”. “Humilhação”. Eis as designações mais corriqueiras sobre o que a decisão da justiça francesa que envia para a prisão um outrora chefe de estado.

O núcleo da investigação que conduziu a essa decisão e condenação repousa sobre um documento, veiculado e promovido pelo periódico Mediapart, no início da campanha presidencial francesa de 2012, que advertia que o presidente Nicolas Sarkozy recebera dinheiro o coronel Muammar Gaddafi (1942-2011), então mandatário líbio, para financiar a sua campanha vitoriosa de 2007.

Esse documento advinha do serviço secreto da Líbia. Que, em 2012, sofria uma intervenção internacional liderada pela França, pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos e endossada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em resposta à ameaça do coronel Gaddafi de “lavar as ruas Líbia”, notadamente de sua capital, Trípoli, com o “sangue” dos insurretos da Primavera Árabe de 2010-2011 que tomavam conta país.

O presidente Nicolas Sarkozy, o primeiro-ministro David Cameron e o presidente Barack H. Obama haviam obrado para “impedir” a concretização dessa ameaça e acabaram por promover um inequívoco regime change na Líbia.

Inicialmente, com a desestabilização do regime. Em seguida, com o assassinato do coronel Gaddafi. E, na sequência, com a submersão da Líbia, do Magreb, do Mediterrâneo e da própria Europa nessa anomia que subsiste até os dias que correm.

Em 2012, portanto, após a morte do coronel Gaddafi, os seus antigos correligionários tinham razões sobrantes para se vingar do presidente francês, do primeiro-ministro inglês e do presidente norte-americano. E o fizeram. Mais amplamente ao encontro do francês. Que, em 2012, concorria à sua própria reeleição à presidência da França.

2.

O ponto da vingança foi o envio de um suposto documento supostamente secreto ao periódico Mediapart. Que se incumbiu de promovê-lo e divulgá-lo.

Não se sabe o quanto esse documento influenciou as presidenciais francesas de 2012. Fato foi que o presidente Nicolas Sarkozy as perdeu para o socialista François Hollande.

Adiante, dada à gravidade das acusações contidas no documento e à contundência das manifestações do periódico Mediapart, a justiça francesa obrigou-se a abrir um inquérito cujo propósito era esclarecer os fatos. Sobretudo para se saber se ocorreu ou não o financiamento ilegal da campanha presidencial de Nicolas Sarkozy em 2007.

A narrativa construída por Mediapart indicava que Nicolas Sarkozy recebera o financiamento e, uma vez eleito presidente em 2007, havia retribuído através da normalização, valorização e reconhecimento do coronel Muammar Gaddafi no cenário francês, europeu e mundial.

Efetivamente, sob a presidência de Nicolas Sarkozy, o mandatário líbio fora suntuosamente recebido na França para uma visita de estado e amplamente promovido em todas as partes do mundo pelo presidente francês.

Desse modo, uma vez aberta em 2013-2014, a investigação perdurou por onze anos e chegou a uma conclusão, seguida de decisão judicial, na última quinta-feira, 25 de setembro de 2025. Tendo como veredicto que (i) O documento veiculado e promovido pelo periódico Mediapart era falso. (ii) Não houve dinheiro líbio na campanha presidencial de Nicolas Sarkozy em 2007. (iii) Não houve irregularidades no financiamento daquela campanha presidencial de Nicolas Sarkozy em 2007. (iv) Não existiu corrupção do candidato Nicolas Sarkozy naquela campanha nem depois. (v) Não ocorreu enriquecimento ilegal de nenhuma parte.

Mas, mesmo assim, Nicolas Sarkozy, talvez, eventualmente, possivelmente, tivera a “intenção” de cometer ou deixar cometerem-se crimes. E, por essa “intenção”, merece ser preso. “Justificando-se”, assim, uma condenação a cinco anos de prisão, com o cumprimento imediato da pena.

Não vem ao caso interpelar a justiça francesa. Tampouco existe lugar para muito se problematizar a situação. O caso merece da parte de todos – franceses ou não – simplesmente meditação.

3.

Nenhum presidente francês foi mais detestado que Nicolas Sarkozy sob a Quinta República Francesa. Nem o general De Gaulle, que, após os incidentes de maio de 1968, perdeu o referendum do ano seguinte e partiu. Nem o presidente François Mitterrand nem o presidente Jacques Chirac, que viveram momentos impopulares extremos em seus períodos.

Nicolas Sarkozy chegou à presidência francesa relativamente jovem, aos 52 anos, após uma longuíssima trajetória político-partidária iniciada nos anos de 1970, na qual angariou múltiplas vitórias, derrotas, adversários e inimigos em vários setores. Notadamente no judiciário francês. Donde ele próprio, Nicolas Sarkozy, como advogado, advém.

Muitos desses inimigos festejam a decisão do Tribunal de Correção de Paris. Exaltando que a condenação possui dimensão essencialmente moral cujo objetivo foi demonstrar que, na França, “a justiça é para todos”, “todos são iguais perante a lei” e “ninguém está a cima da lei”. Nem mesmo um antigo presidente da República. Com ou sem comprovação de delito. Visto que “intenção” segue sendo “intenção”. Um suposto de “potencialidade” de cometer-se ou deixar-se cometer crimes.

“Alucinante”. “Escandaloso”. “Sem palavras”. Ainda não se sabe quantos dias, meses ou anos o presidente Nicolas Sarkozy ficará em regime fechado. Mas sabe-se tratar-se de uma situação triste e singularmente inacreditável.

Em toda a tortuosa história francesa, os franceses condenaram assim apenas dois de seus mandatários: o monarca no século XVIII e o marechal Pétain depois da Segunda Guerra Mundial. O rei Luis XVI foi preso em Versalhes, julgado em Paris e decapitado. O marechal Phillipe Pétain, responsável pelo regime nazista de Vichy, foi condenado por alta traição, recebeu a pena de prisão perpétua e morreu pouco tempo depois.

O presidente Nicolas Sarkozy é potencialmente o terceiro a vivenciar essa experiência de cárcere. O que diz menos do presidente e mais da França. Que só condenou seus mandatários em crises existenciais excepcionais. Como parece ser o caso.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ)


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES