Por CIDOVAL MORAIS DE SOUSA*
A crise do metanol revela que a ciência brasileira opera por um sistema de castas: soluções salvadoras desenvolvidas na periferia permanecem invisíveis até que a mídia as consagre, desvelando o abismo entre produção científica e reconhecimento social
1.
A recente crise de intoxicação por metanol no Brasil, com mais de uma dezena de mortes e centenas de casos suspeitos, escancarou não apenas uma falha grave na fiscalização sanitária, mas também três dimensões estruturais da ciência brasileira que merecem atenção crítica: o papel da mídia na legitimação do conhecimento científico, as assimetrias regionais na distribuição de recursos para pesquisa, e a singularidade da ciência periférica como resposta concreta aos problemas do território.
Esses três aspectos, embora distintos, se entrelaçam e podem ser compreendidos à luz do chamado “Efeito Mateus”, formulado pelo sociólogo americano Robert K. Merton (1910-2023).
Inspirado na passagem bíblica do Evangelho de Mateus (25:29) – “A quem tem, será dado, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado” – o “Efeito Mateus” descreve como cientistas e instituições já reconhecidos tendem a receber mais crédito, financiamento e visibilidade, enquanto aqueles menos prestigiados enfrentam obstáculos para legitimar suas contribuições, mesmo quando são igualmente ou mais relevantes.
No Brasil, esse fenômeno se manifesta com intensidade: a ciência feita fora dos grandes centros acadêmicos é frequentemente invisibilizada, subfinanciada e desvalorizada. O caso da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), que desenvolveu uma tecnologia inovadora para detectar metanol em bebidas adulteradas, é emblemático dessa dinâmica.
A tecnologia da Universidade Estadual da Paraíba combina espectroscopia infravermelha com inteligência artificial para identificar a presença de metanol, inclusive em garrafas lacradas. Além disso, a universidade criou um canudo colorimétrico que muda de cor ao entrar em contato com bebidas contaminadas – uma solução simples, barata e eficaz.
Ambas inovações foram publicadas em revistas científicas internacionais e têm potencial para salvar vidas. No entanto, até serem repercutidas pela grande mídia – com destaque no Jornal Nacional, G1, UOL e outros veículos da mídia nacional, regional e local – essas contribuições permaneceram praticamente desconhecidas fora dos círculos acadêmicos e da própria comunidade paraibana.
2.
Esse episódio reforça a proposição de Hebe Vessuri, segundo a qual “a ciência que não é comunicada, não existe”. No Brasil, comunicar ciência ainda é um desafio. A maior parte da produção científica circula em revistas especializadas, anais de congressos e portais técnicos, o que garante validação entre pares, mas não necessariamente visibilidade pública.
Existe um gap profundo entre comunicar ciência e torná-la socialmente relevante. A mídia, com todos os seus limites e riscos – como a espetacularização – cumpre um papel fundamental: ela agenda o debate, expõe o tema à arena pública e mobiliza atores políticos e institucionais. Foi isso que aconteceu com a Universidade Estadual da Paraíba. A pesquisa já existia, já funcionava, já salvava vidas. Já tinha sido publicada, inclusive, em periódicos de elevado impacto acadêmico, como Food Chemistry e Food Research International, mas só passou a ser reconhecida nacionalmente após sua exposição midiática.
Esse fenômeno nos convida a revisitar a forma como nossas instituições comunicam seus produtos tecnocientíficos. A divulgação científica não pode ser vista como um apêndice da pesquisa, mas como parte essencial do processo. É preciso romper o isolamento técnico e pensar estratégias que coloquem a ciência em diálogo com a sociedade.
Mas a invisibilidade não é apenas comunicacional – ela é estrutural. O segundo aspecto revelado pela crise do metanol diz respeito às assimetrias regionais na distribuição de recursos para pesquisa. O Capítulo VI do Livro Violeta da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, com o qual contribuí no seu processo de construção, faz uma constatação importante: os investimentos em CT&I continuam fortemente concentrados nas regiões Sul e Sudeste, especialmente em instituições já consolidadas e com alta visibilidade.
Essa lógica perpetua um ciclo de desigualdade: quem tem mais recursos produz mais, publica mais, recebe mais – enquanto universidades periféricas lutam para manter seus laboratórios funcionando, com orçamentos inexpressivos, que contrariam a lógica do bom senso. Nesse contexto, uma pergunta se impõe: estamos financiando a ciência pela fama ou pela relevância territorial? O Efeito Mateus, em minha leitura, ajuda a entender essa dinâmica.
É preciso, urgentemente, rever os critérios de distribuição de fomento, valorizando não apenas indicadores de produtividade acadêmica, mas também o potencial de impacto social e territorial. A ciência brasileira é diversa, e essa diversidade precisa ser refletida no orçamento público. A ciência feita na periferia não é menos qualificada – é menos reconhecida. E essa falta de reconhecimento tem raízes profundas, que vão além da comunicação: elas estão no próprio sistema de avaliação e financiamento da ciência.
3.
O terceiro aspecto revelado pela crise do metanol é a singularidade da ciência periférica. Essa ciência, produzida fora dos grandes centros, carrega uma característica essencial – ela nasce do território, escuta suas urgências e responde com soluções simples, eficazes e acessíveis.
Essa ciência não busca prestígio acadêmico – busca impacto social. E por estar mais próxima das dores da população, é mais ágil, mais empática e mais transformadora. A periferia não tem tempo para abstrações distantes: ela precisa de respostas. E é justamente essa urgência que torna sua produção científica tão potente. Reconhecer essa singularidade é essencial para repensar os critérios de valorização da ciência brasileira.
A crise do metanol, portanto, não é apenas uma tragédia sanitária – é um marco epistemológico. Ela nos obriga a olhar para os mecanismos de legitimação da ciência, para os critérios de distribuição de recursos e para a potência da produção periférica. O Efeito Mateus continua operando, concentrando prestígio, financiamento e visibilidade em poucos atores.
Mas a ciência brasileira pulsa em muitos lugares – especialmente onde a dor é mais aguda e a urgência mais real. Valorizar instituições como a Universidade Estadual da Paraíba é mais do que uma questão de justiça – é uma estratégia de sobrevivência.
O Brasil precisa olhar para suas universidades periféricas não como coadjuvantes, mas como protagonistas. Porque é nelas que a ciência se faz com propósito, com urgência e com compromisso. E talvez seja nelas que o futuro da ciência brasileira esteja silenciosamente sendo construído.
*Cidoval Morais de Sousa, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual da Paraíba, é secretário regional da SBPC Paraíba.
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