City Football Group

Imagem: Jonny Gios
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Por DIEGO RABELO*

A contradição é flagrante: clubes que vestem as cores do progressismo são financiados por regimes que asfixiam as liberdades que essas mesmas cores representam

1.

O termo “sportwashing” designa o uso estratégico do esporte — especialmente de modalidades de grande alcance midiático, como o futebol — para reabilitar ou suavizar a imagem internacional de regimes autoritários, corporações ou figuras públicas envolvidas em violações de direitos humanos, corrupção ou outras práticas eticamente condenáveis. O conceito deriva da combinação entre sports (esporte) e whitewashing (branqueamento simbólico), sugerindo uma espécie de “lavagem de imagem” por meio da emoção coletiva, da idolatria esportiva e do entretenimento globalizado.

No contexto das relações internacionais, o sportwashing está intimamente ligado ao debate sobre soft power, formulado por Joseph Nye, que se refere à capacidade de um Estado influenciar outros atores não pela coerção (hard power), mas pela atração e persuasão cultural. Para regimes do Oriente Médio — em especial monarquias do Golfo como os Emirados Árabes Unidos, o Catar e a Arábia Saudita —, o investimento em clubes de futebol, grandes eventos esportivos e infraestrutura global serve como instrumento de legitimação diplomática, diversificação econômica e construção de prestígio simbólico.

No caso específico dos Emirados Árabes Unidos (EAU), a criação do City Football Group (CFG), controlado majoritariamente pelo fundo soberano Abu Dhabi United Group, vinculado ao xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan — membro da família real de Abu Dhabi e vice-presidente dos EAU —, representa um projeto de poder sem precedentes no futebol global.

O City Football Group hoje possui ou controla participação em uma série de clubes distribuídos por todos os continentes: o Manchester City (Inglaterra), New York City FC (EUA), Melbourne City (Austrália), Montevideo City Torque (Uruguai), Girona FC (Espanha), Mumbai City FC (Índia), Troyes AC (França), Palermo FC (Itália), Lommel SK (Bélgica), Sichuan Jiuniu (China) e, mais recentemente, o Esporte Clube Bahia, no Brasil.

Essa teia de clubes constitui um império transnacional corporativo, com marcas, jogadores, torcedores e fluxos financeiros interconectados — uma verdadeira rede global de influência política e cultural, mascarada sob o discurso de “profissionalização” e “modernização” do futebol.

2.

A existência de um conglomerado dessa magnitude suscita questões morais, jurídicas e políticas. Por um lado, o grupo se apresenta como exemplo de gestão eficiente e investimento sustentável; por outro, é um veículo direto da diplomacia pública de um Estado autoritário, cuja estrutura de poder é baseada em uma monarquia absolutista teocrática, fortemente influenciada pelo wahhabismo, corrente ultraconservadora do islã.

Os Emirados Árabes reprimem duramente a dissidência política, a liberdade de imprensa e os direitos das mulheres. Ativistas feministas são presas, a homossexualidade é criminalizada e há fortes restrições à liberdade de expressão. Além disso, o país participou ativamente da devastadora guerra no Iêmen, ao lado da Arábia Saudita, provocando uma das maiores crises humanitárias do século xxi e centenas de milhares de mortes civis — e ainda assim derrotado por um exército infinitamente inferior tecnologicamente, os Houthis, integrante do chamado Eixo da Resistência.

Essas contradições se tornam particularmente visíveis quando o poder dos EAU se estende a contextos periféricos, como o do futebol brasileiro. A aquisição do Esporte Clube Bahia pelo City Football Group em 2022 foi celebrada como marco de modernização e renascimento do clube, que passou a contar com investimentos milionários e infraestrutura de ponta. Entretanto, ela também coloca o Bahia — clube que reivindica para si identidade popular e a causas progressistas — diante de um dilema ético.

O clube, em sua comunicação institucional, assume campanhas públicas em defesa da diversidade sexual, da igualdade de gênero e do respeito ambiental — valores frontalmente opostos à realidade política e cultural dos Emirados Árabes, cujo regime reprime LGBTQIA+, restringe direitos das mulheres e censura críticas ao Estado.

3.

Para agravar a posição política do clube que reivindica para si a alcunha de “popular” o país que normalizou relações diplomáticas com Israel por meio dos Acordos de Abraão (2020), e se alinha a potências autoritárias regionais, agora, controla um clube que se apresenta como símbolo de progressismo e resistência. Não é demais lembrar, que o atual ciclo de violência nos territórios palestinos deixou 70 mil mortos (números conservadores), sendo a maioria esmagadora de crianças e mulheres e idosos.

Sim senhoras e senhores, isso chama-se Sportwashing. Por trás de cada criança palestina, iemenita, libanesa ou iraniana assassinada pelo imperialismo anglo-sionista, está lá o projeto de soft power de uma monarquia sanguinária do golfo lhes dando aval.

A entrada do City Football Group no Bahia insere-se também no contexto do avanço das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) no Brasil. A promessa de profissionalização e investimento estrangeiro mascara uma nova forma de dependência econômica e cultural, em que clubes tradicionais tornam-se ativos financeiros em carteiras transnacionais, perdendo autonomia e identidade local. O “afã” das SAFs expressa uma crença quase messiânica no capital estrangeiro como salvação, ignorando que esses investimentos não são neutros, mas portadores de interesses políticos e ideológicos. Quase sempre os mais escusos…

Nesse sentido, o City Football Group não é apenas um conglomerado esportivo, mas um instrumento sofisticado de soft power do Golfo, que combina diplomacia, finanças e cultura para normalizar um regime autoritário no imaginário global. O futebol — que deveria ser espaço de emancipação coletiva e expressão popular — torna-se ferramenta de legitimação simbólica de Estados que, internamente, negam os mesmos direitos que celebram nos gramados ocidentais.

*Diego Rabelo é professor do Departamento de Museologia Conservação e Restauro da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).


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