Pedra, Penha, penhasco – a invenção do Arcadismo brasileiro

Paul Klee, O mar atrás das dunas, 1923.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

Trecho, selecionado pelo autor, do livro recém-lançado

Em 1995, Jorge Antonio Ruedas de la Serna (1945-2018) questionava o menor interesse dos estudiosos brasileiros em abordar as letras produzidas durante o chamado Arcadismo. Para o pesquisador mexicano, isso se devia ao fato de a poesia daquele período carregar ambiguidade estilística e política (em adesão à hipótese formulada por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira, em 1959).

Seja como for, no ano seguinte à publicação de Arcádia: tradição e mudança, Ivan Teixeira se propunha a abordar aspectos sincrônicos e diacrônicos da poesia árcade, com ênfase na produção de Basílio da Gama. Em 1997, Joaci Pereira Furtado questionou o emprego de termos imprecisos em manuais de literatura brasileira, que haviam sedimentado a imagem de que os homens letrados que ocuparam ou passaram pelas vilas da capitania de Minas Gerais teriam sido despertados pelo sentimento nativista. Inventados como poetas dotados de gênio, a perícia técnica se diluía na trajetória ambivalente entre a burocracia cortesã e a denúncia versificada.

O debate sobre a sociabilidade cortesã e o papel das letras como componente da figuração enobrecedora foi retomado pelo historiador Marco Antonio Silveira, que, em 1997, descreveu a composição estratificada de Vila Rica, onde o esforço de se distinguir social e politicamente justificaria o empenho dos bacharéis em se instalar numa estrutura orientada por um sem-número de códigos, leis e preceptivas.

No ano seguinte, Perfecto Cuadrado editou uma alentada antologia (Poesia Portuguesa do século XVIII) em que também questionava o entrelugar dos poemas setecentistas nos estudos literários: “O século XVIII tem sido geralmente mal tratado [sic] (e maltratado) pela historiografia e pela crítica literária portuguesa”. A compilação editada na Galícia reverberava o alerta embutido na tese de Ruedas de La Serna, em São Paulo.

Quarenta anos após Formação da Literatura Brasileira ser publicada, Ivan Teixeira retornou ao cenário editorial com o impressionante Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica: obra decisiva para que se reavaliassem os textos produzidos sob a lupa da Inquisição, o poder de Sebastião José de Carvalho e Melo e as preceptivas vigentes naquele tempo.

Em 2001, Alcir Pécora incluiu o relevante capítulo “Amor à Convenção”, em torno da poesia de Silva Alvarenga, na coletânea Máquina de Gêneros. Dois anos se passaram, até que a Revista USP publicasse o dossiê Brasil Colônia, com numerosas colaborações em torno das matérias ditas coloniais, com destaque para os artigos de Luciana Gama e Ricardo Martins Valle – este, no ano anterior à conclusão de sua tese de doutorado sobre a obra de Cláudio Manuel da Costa.

Também data de 2003, Estes penhascos, versão em livro da dissertação de mestrado de Sérgio Alcides defendida em 1996, onde também alertava para os riscos de ler os poemas de Cláudio Manuel da Costa sob a lupa psicologizante, atrelada à mera subjetividade pessoal. Em 2008, a dissertação de Djalma Espedito de Lima, em torno da epopeia Vila Rica, recebeu o prêmio da Capes e foi publicado em livro. De lá para cá, tornou-se mais difícil (se não constrangedor) ignorar ou desprezar os estudos relacionados à poesia e às artes produzidas durante o século XVIII, no antigo Estado do Brasil.

Mais recentemente, devem ser mencionadas a dissertação de mestrado (2017) e a tese de doutorado (2020) produzidas por Caio César Esteves de Souza, que descobriu poemas inéditos atribuídos a Alvarenga Peixoto; e a minuciosa análise sobre as edições de Marília de Dirceu, conduzida por Heidi Strecker durante o mestrado, concluído em 2020.

Neste ensaio, discute-se porque os poemas bucólicos que circularam no século XVIII vieram a ser descritos e classificados imprecisamente nos florilégios, coletâneas e manuais de literatura dita brasileira, escritos a partir do século XIX. Para evitar anacronismos, pretende-se situar e caracterizar de outro modo a poesia produzida no universo luso-brasileiro, entre a segunda metade do Setecentos e a primeira metade do Oitocentos, o que implica percorrer versos produzidos por numerosos letrados que viveram aquém e além-mar naquele período.

Para isso, consultaram-se coletâneas da poesia produzida durante o Setecentos. Para melhor discorrer sobre a matéria, o trabalho se concentrou em dois vértices: (i) Revisão da historiografia “literária” luso-brasileira, especialmente aquela feita no país; (ii) Breve análise de obras produzidas nas partes do reino de Portugal, durante o período.

Sobre o segundo item, vale o alerta de Evaldo Cabral de Mello (2002, p. 15), em Um Imenso Portugal, de que “[Em 1822,] os nacionalistas não éramos nós, mas os portugueses de Portugal que, dentro e fora das Cortes de Lisboa, clamavam contra o que lhes parecia a escandalosa inversão de papéis pela qual o Brasil transformara-se no centro da monarquia lusitana, relegando a metrópole à posição de colônia”.

Em Pedra, Penha, penhasco, a poesia atribuída aos homens letrados do Setecentos é considerada como texto e pretexto para ilustrar a tentativa de filiação às auctoritates (modelos colhidos na tradição greco-latina, medieval e moderna), e claro, discorrer sobre os usos da retórica e da poética nos versos produzidos, sob a túnica eclesiástica e o manto Real, recuperando a lição de Ernst Kantorowicz sobre as dimensões temporal e espiritual do rei. Tenha-se em mente o caráter convencional e protocolar, aplicado aos poemas e à performance dissimulada dos homens letrados,[i] durante o período – que não guardavam relação direta com o senso “nativista”, nem envolviam “espontaneidade”, fruto de sentimentos “inspirados” pela natureza local.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete falas: ensaios sobre tipologias discursivas (Editora Cancioneiro). [https://amzn.to/3sW93sX ]

Referência

Jean Pierre Chauvin. Pedra, Penha, Penhasco: a invenção do Arcadismo brasileiro,. São Paulo, Pedro & João Editores, 2023, 100 págs. Disponível aqui.

Nota


[i] Ao examinar a poesia de Cláudio Manuel da Costa, Ricardo Martins Valle (Revista USP, n. 57, 2003, p. 119) percebeu que “A fábula inventa a criação de um rio, nascido de uma pedra, desentranhada de uma terra, que mais tarde sustentará os cuidados dos homens presentes. O mito inflete duas quedas, a do pai e a própria, e três numes atuam, como machina, sobre a tragédia: Júpiter, Apolo e Amor. Para aquela civilização regida pelas ordenanças régias, as potências do concerto e do desconcerto do mundo se sustentavam sobre os atributos dessas três deidades pagãs as quais deviam servir de ornamentos ao documento dos versos de Cláudio”.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Anselm Jappe Daniel Brazil Tales Ab'Sáber Bruno Machado Marilia Pacheco Fiorillo Salem Nasser Juarez Guimarães Heraldo Campos Andrew Korybko Marjorie C. Marona Fernão Pessoa Ramos João Lanari Bo Michel Goulart da Silva Michael Löwy Vanderlei Tenório Chico Whitaker Ricardo Fabbrini Francisco Pereira de Farias Vinício Carrilho Martinez Bernardo Ricupero Samuel Kilsztajn José Machado Moita Neto Paulo Capel Narvai Tarso Genro Otaviano Helene Liszt Vieira Marcos Silva João Adolfo Hansen José Luís Fiori Walnice Nogueira Galvão Eugênio Trivinho Daniel Costa João Carlos Loebens José Micaelson Lacerda Morais Paulo Fernandes Silveira Eleonora Albano Antônio Sales Rios Neto Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luciano Nascimento João Feres Júnior Berenice Bento Marcus Ianoni Mariarosaria Fabris Alysson Leandro Mascaro Rafael R. Ioris Ronaldo Tadeu de Souza Remy José Fontana Luiz Roberto Alves Luiz Werneck Vianna Lucas Fiaschetti Estevez Slavoj Žižek Atilio A. Boron André Márcio Neves Soares João Carlos Salles Julian Rodrigues Alexandre de Freitas Barbosa Chico Alencar José Dirceu Flávio Aguiar Alexandre Aragão de Albuquerque Manchetômetro Bento Prado Jr. Leonardo Avritzer Gerson Almeida Carla Teixeira Jorge Luiz Souto Maior Igor Felippe Santos Tadeu Valadares Jean Marc Von Der Weid Henri Acselrad Luiz Carlos Bresser-Pereira Celso Frederico Yuri Martins-Fontes Luiz Bernardo Pericás Eugênio Bucci Gilberto Lopes Francisco Fernandes Ladeira Mário Maestri Elias Jabbour José Geraldo Couto Ronald Rocha Daniel Afonso da Silva João Paulo Ayub Fonseca Andrés del Río Antonio Martins Leda Maria Paulani José Costa Júnior Renato Dagnino Fábio Konder Comparato Luiz Marques Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Sandra Bitencourt Eliziário Andrade Celso Favaretto Sergio Amadeu da Silveira Milton Pinheiro Osvaldo Coggiola Antonino Infranca Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Martins Flávio R. Kothe Gabriel Cohn Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leonardo Boff Jean Pierre Chauvin Airton Paschoa Francisco de Oliveira Barros Júnior Marcelo Módolo Alexandre de Lima Castro Tranjan Eduardo Borges Dennis Oliveira Rodrigo de Faria Michael Roberts Jorge Branco Valerio Arcary Denilson Cordeiro João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Guimarães Lima Ricardo Abramovay Marilena Chauí Matheus Silveira de Souza Boaventura de Sousa Santos Marcos Aurélio da Silva Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Annateresa Fabris Benicio Viero Schmidt Caio Bugiato Lincoln Secco Afrânio Catani Vladimir Safatle Eleutério F. S. Prado Kátia Gerab Baggio André Singer Armando Boito Luiz Renato Martins Dênis de Moraes Luiz Eduardo Soares Henry Burnett Carlos Tautz Everaldo de Oliveira Andrade Fernando Nogueira da Costa Rubens Pinto Lyra Lorenzo Vitral Ari Marcelo Solon Ricardo Antunes Claudio Katz Ladislau Dowbor Luís Fernando Vitagliano Thomas Piketty Paulo Sérgio Pinheiro Leonardo Sacramento Ronald León Núñez Priscila Figueiredo Ricardo Musse Manuel Domingos Neto Gilberto Maringoni José Raimundo Trindade Érico Andrade Maria Rita Kehl

NOVAS PUBLICAÇÕES