Por ELIAKIM FERREIRA OLIVEIRA*
Nota acerca da proposta de reforma da grade de disciplinas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH – USP.
1.
De tempos em tempos, pela própria mudança do corpo docente, discente e do contexto social em geral, os cursos universitários se veem diante da necessidade de reformar suas grades curriculares. Muda o perfil social do aluno, são contratados docentes com formações e interesses de pesquisa distintos dos da geração anterior e o mundo social, por sua própria dinâmica, se modifica – hoje, aliás, muito mais rapidamente do que há trinta anos, sobretudo nos aspectos midiático, informacional e tecnológico. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, diz o verso de Camões.
No entanto, essas reformas não podem perder de vista certo caráter formativo essencial, vinculado a projetos político-pedagógicos de longo prazo e a conteúdos que, por serem pontos de referência – bússolas em determinadas áreas de pesquisa –, devem resistir à força devoradora do tempo ou adaptar-se a essas mudanças.
Eu poderia dar o exemplo do clássico conteúdo de filologia, quase tão antigo quanto o de filosofia, e que, a despeito das diversas novidades trazidas pelas ciências da linguagem, soube adaptar-se bem, sempre se renovando e permanecendo, como ainda permanece, fundamental para os problemas levantados por essas ciências.
É no interior de um cenário que pressupõe temas como esses que o Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH – USP vem discutindo, de maneira bastante democrática, em reuniões docentes e plenárias, uma proposta de mudança que impactará diretamente a habilitação em português. A proposta busca flexibilizar a formação dos estudantes, oferecendo-lhes mais disciplinas optativas e, portanto, tornando o percurso menos enrijecido, ao mesmo tempo que torna obrigatórias outras disciplinas.
A proposta dá ocasião ainda – como foi alegado em plenária entre docentes e discentes – para que os professores, diante de um maior número de disciplinas optativas, possam ministrar conteúdos diversos, em geral elaborados a partir da formação específica de cada um, o que certamente reforça o ideal universitário de unir ensino e pesquisa. Além disso, menos disciplinas obrigatórias e mais oferta de disciplinas optativas tendem a diminuir as salas lotadas, às vezes com mais de 100 alunos, que dificultam o livre curso do trabalho docente.
Para tanto, foi proposto que duas das disciplinas de Literatura Brasileira se tornem optativas, mantendo-se apenas duas como obrigatórias. Algo análogo ocorreria com as disciplinas de Literatura Portuguesa, em que duas das quatro também se tornariam optativas. Disciplinas obrigatórias cujo período ideal, hoje, é o início do ciclo da habilitação em Português (2º ano do bacharelado em Letras), como Introdução ao Latim I e II, se tornariam optativas.
Para preencher esses espaços, disciplinas como Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Literatura Infantojuvenil passariam a ser obrigatórias, atendendo a uma antiga demanda dos alunos, especialmente daqueles que, no ensino básico, têm que trabalhar com literatura infantojuvenil.
A proposta prevê, ao mesmo tempo, uma reestruturação da disciplina obrigatória Introdução aos Estudos de Língua Portuguesa (IELP I e II), hoje oferecida no Ciclo Básico (1º ano do bacharelado em Letras), e a possibilidade de incluir, nesse ciclo, uma disciplina (ou ao menos atividades) do que se convencionou chamar, na FFLCH, de Práticas de Leitura e Escrita Acadêmicas (PLEA) – algo já feito em alguns cursos: no primeiro ano do curso de filosofia, nas disciplinas introdução à filosofia i e filosofia geral I; no primeiro ano do curso de ciências sociais, especialmente nas disciplinas ciência política I e antropologia II; em uma disciplina optativa do curso de filosofia, oferecida para todos os cursos da FFLCH e ministrada por vários professores, denominada justamente Práticas de Leitura e Escrita Acadêmicas; e em uma disciplina do Programa de pós-graduação em Linguística.
2.
Abaixo, apresento minha posição em relação a essas propostas. Em tempo: ressalto que esta é a posição de um discente do curso de Letras, em término de formação, e não representa uma posição geral do corpo discente. Além disso, quero também destacar o enorme respeito que nutro por esse curso e pelo corpo docente, com quem aprendi tudo o que sei em matéria de estudos de linguagem.
Em primeiro lugar, sou contrário a que se reduza o número de disciplinas obrigatórias de Literatura Brasileira. Parto do fato de que estamos em um curso de Letras no Brasil, dentro de um prédio que todos os departamentos de Letras decidiram batizar de “Antonio Candido”, autor de uma célebre Formação da literatura brasileira, estudo rigoroso de como os que viviam no Brasil – ou no que viria a ser o Brasil – se puseram em marcha na direção formativa de sua própria literatura, por meio de inúmeras manifestações literárias que, a certa altura, tornaram-se, finalmente, uma tradição literária — objeto fundamental de nossos estudos no curso de Letras.
Defendo que, na medida em que somos quem somos e estamos onde estamos, temos a função de investigar, difundir e ensinar a literatura brasileira – o que também quer dizer investigar e ensinar a dinâmica histórica e social do próprio país à luz dela, bem como a dinâmica das formas e dos recursos literários pelos quais o Brasil se expressa literariamente e marca a sua distinção, formal, social e histórica, em relação a outras literaturas. A meu ver, já é estranho que, levando em consideração esse ethos do curso, as disciplinas de Literatura Brasileira V e VI também tenham se tornado optativas em reformas passadas.
Também sou contrário a que as disciplinas Introdução ao Latim I e II se tornem optativas, uma vez que – sem desconsiderar as abordagens sincrônicas – é fundamental, para a compreensão de diversos fenômenos do português, ter noções da estrutura da língua latina e da diacronia das línguas românicas.
Isso é essencial para os cursos de fonética e fonologia do português (por exemplo, distinção entre vogais abertas e fechadas, sistema acentual, quedas de sílabas átonas, surgimento de fricativas sonoras, processos de nasalização e palatalização próprios do português etc.); de morfologia do português (por exemplo, mudança do sistema de declinação, uso preponderante de preposições, mudança do sistema de conjugação, afixos produtivos de origem latina etc.); e de sintaxe do português (por exemplo, mudança da ordem de constituintes, ordem menos flexível, sujeito nulo, objeto nulo etc.).
Vale também mencionar como o conteúdo das disciplinas de Introdução ao Latim é importante para o curso de Filologia Portuguesa, que lida com o tratamento de textos antigos, de outras fases do português, cujo exame frequentemente demanda a clareza dessas noções oriundas dos estudos da estrutura do latim.
3.
Considero legítima a demanda dos alunos pela obrigatoriedade dos conteúdos de Literatura Infantojuvenil, levando-se em conta a importância desse conteúdo para as aulas de literatura do ensino básico. No entanto, a obrigatoriedade dessa disciplina no bacharelado me parece estranha: trata-se de uma disciplina que diz respeito a um gênero, e um gênero não constitui, por tradição nossa, uma disciplina obrigatória de literatura.
As disciplinas obrigatórias de literatura são, historicamente, organizadas – na falta de expressão melhor – pelo critério de nacionalidade. Temos disciplinas obrigatórias de literatura brasileira e portuguesa, e pleiteia-se a obrigatoriedade de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Ora, a literatura infantojuvenil diz respeito, em parte, a um gênero, em parte, a um público específico.
Isso não significa que o conteúdo dela não possa (e deva) ser abordado em disciplinas obrigatórias em que são discutidos gêneros, formas literárias, públicos específicos e recepção, como é o caso da disciplina Introdução aos Estudos Literários II do Ciclo Básico, na qual essa literatura pode ser tratada como um capítulo relevante dos estudos gerais de literatura e teoria literária. E nada impede que, levando-se em conta que a demanda diz respeito ao conteúdo do ensino básico, essa disciplina se torne obrigatória na carga horária da licenciatura a ser cumprida no curso de Letras.
No que toca à obrigatoriedade de literaturas africanas de língua portuguesa, penso que, uma vez que há disciplinas obrigatórias de literatura portuguesa ao lado das de literatura brasileira, faz bastante sentido que essa disciplina também se torne obrigatória, como parte da expressão da literatura lusófona – o que certamente contribui para a compreensão, por comparação e contraste, de nossa história comum. Não há razão para, ao privilegiar a literatura portuguesa, deixarmos de privilegiar as literaturas africanas em língua portuguesa.
Por fim, levando em consideração a mudança do perfil do aluno e a desejada expansão da universidade pública, torna-se cada vez mais urgente – pela minha experiência enquanto monitor de práticas de leitura e escrita acadêmicas desde 2018 – a existência de disciplinas de letramento acadêmico e de prática da produção textual dos gêneros da academia. Não é possível esperar que o aluno chegue à universidade já munido do domínio das formas, das técnicas e das práticas que constituem o pão nosso de cada dia nos cursos universitários de linguagens e humanidades.
Reconheço, sim, que minha posição, se não levar em conta o rearranjo da grade do curso, resulta em um aumento significativo do período de formação, o que, para o aluno que precisa logo ingressar no mercado de trabalho ou na pós-graduação, constitui um empecilho. Esse fato, a meu ver, enfatiza a necessidade da continuidade das discussões sobre essa reforma, na qual é inevitável, ao abrir caminhos, fechar outros – portanto, ao incluir, também abrir mão.
4.
Além disso, reconheço e destaco a importância de dar espaço para o professor “respirar”, o que quer dizer: poder dedicar-se à pesquisa, ministrar disciplinas que digam respeito às suas contribuições para o mundo acadêmico e ter seus períodos sabáticos, em que possa dedicar-se exclusivamente à pesquisa, e tenho plena consciência de que salas lotadas, com turmas de 80 a 100 alunos, dificultam muito a realização desse objetivo. Isso é fundamental.
Mas, para isso – e para efetivar um curso flexível, com mais disciplinas optativas –, é preciso tocar no problema mais sério: deve haver contratação de mais professores em todas as áreas, algo que, infelizmente, ao lado do tema do aumento salarial e das bolsas de permanência estudantil, vem sendo pouco discutido nas propostas das chapas que se candidataram à reitoria.
Extrapolando o tema desta nota, mas ainda dentro da discussão geral acerca da reforma curricular, encontro aqui a ocasião de chamar a atenção para a necessidade de reformas mais amplas, que dizem respeito ao pendor interdisciplinar do curso de Letras da USP e ao caráter transdisciplinar das ciências da linguagem.
Por exemplo, no caso dos estudos clássicos, não é incomum ouvirmos, pelos corredores, manifestações sobre a necessidade que têm os alunos dessa área de poder realizar uma habilitação tanto em grego quanto em latim, além de terem a possibilidade de também se habilitarem em português.
Necessidade semelhante se manifesta nas conversas informais dos estudantes da habilitação em linguística, cujos interesses de pesquisa frequentemente exigem o estudo comparativo de línguas, ainda que estejam restritos apenas ao português como segunda habilitação. Dado o próprio escopo da linguística, é fundamental que os alunos dessa área tenham a oportunidade de cursar uma habilitação em outra língua, além do português, justamente para adquirirem uma formação linguística mais ampla. Desafio que me apresentem um grande linguista que não tenha se dedicado ao estudo de mais de uma língua já em seus anos de formação.
Reitero que mudanças como essa exigem a expansão do curso de Letras da USP, com a contratação de mais professores e o eventual aumento do tempo de formação para os alunos que optarem por um percurso com mais de duas habilitações. Mas também reconheço que essa é justamente a característica do curso de Letras e das ciências em torno das quais ele gravita: trata-se de um curso vastíssimo, que almeja abarcar – e efetivamente abarca – a amplitude imensa das ciências da linguagem.
O curso de Letras da USP, assim como a FFLCH inteira, deve ter consciência de sua importância, de sua grandiosidade, do peso que tem e que deve ser reconhecido pela própria Universidade.
*Eliakim Ferreira Oliveira é bacharel Letras e doutorando em Filosofia na USP.
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