O Brasil, visto da Albânia

Imagem: Adir Sodré
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o romance “Dossiê H”, de Ismail Kadaré

Ismail Kadaré é uma figura notável no mundo da literatura. O fato de ser albanês o torna um tipo de ornitorrinco, um espécime muito raro, endêmico. Se tivesse nascido em Java ou nas ilhas Fiji, remotos lugares que só conhecemos por imagens do National Geographic, seria compreensível. Mas a Albânia está na Europa, faz fronteira com a Grécia, e só algumas milhas de mar Adriático a separa do salto da bota italiana. Entre gregos e romanos, portanto. Como um país como esse ficou isolado por tanto tempo da chamada cultura ocidental? É certo que após a II Guerra Mundial passou por uma ditadura comunista obscura, mas e os vinte séculos anteriores?

Kadaré se tornou conhecido dos brasileiros depois que seu belo romance Abril Despedaçado foi roteirizado para o cinema por Karim Ainouz e dirigido por Walter Salles. Uma história trágica de traições e vinganças, num clima quase medieval, foi transplantada para o Nordeste brasileiro com talento e respeito ao enredo original.

Mas Kadaré não é só tragédia. Dossiê H, escrito em 1991, dez anos antes de Abril Despedaçado, é muito engraçado. Pelo menos até a primeira metade da história…

Dois jovens irlandeses, estudantes de literatura em Nova York, nos anos 1930, resolvem ir para a Albânia (então um reino, governado pelo rei Zog). Acreditam que ali há pistas da tradição homerista, ou seja, da Ilíada e da Odisseia. Querem demonstrar que os rapsodos da cultura popular albanesa carregam consigo as marcas ancestrais da grande epopeia. Os pesquisadores levam um aparelho recém inventado, um gravador, onde pretendem registrar os cantos homéricos.

A Embaixada da Albânia concede os vistos, mas suspeita de que são espiões. O prefeito da região remota onde vão se instalar recebe instruções para vigiá-los. A mulher do prefeito vê nos irlandeses a oportunidade de um romance proibido, capaz de tirá-la da monotonia em que vive.

Está criada a trama. Pouco a pouco, somos levados a um mergulho na cultura rural albanesa, na tradição dos rapsodos, no isolamento da Península Balcânica. Os conflitos entre tradição e modernidade, cultura erudita e popular, ciência e superstição, são colocados na mesa com muita habilidade.

Para os membros de uma seita de fanáticos obscurantistas, o aparelho que registra vozes deve ser destruído, e isso vai dar o toque sinistro na trama. Kadaré retoma um tema ancestral do embate entre a ciência e o conservadorismo: a verdade não pode ser revelada.

Relendo a obra em 2020, no Brasil, não podemos deixar de ter a impressão de que a história se repete, mais uma vez. O avanço de “seitas de fanáticos obscurantistas” é visível, em todas as áreas. A ameaça de apagar vídeos, filmes, gravações e cinematecas está presente, e é alimentada pela facção atualmente no poder. O desprezo pelo conhecimento acadêmico e a pesquisa é evidente, com corte de verbas, ataques às universidades e abandono de museus e o encerramento de programas de fomento à cultura. Assistimos o grotesco prefeito do Rio de Janeiro formar uma quadrilha, paga com o dinheiro público, para impedir gravações e reportagens sobre a situação da saúde. O diferente, seja ele negro, mulher, gay, sindicalista ou índio, é tratado como inimigo.

Uma leitura enviesada do livro 22 da Odisseia, Mnesterofonia, onde Odisseu (Ulisses, na versão latina) mata todos os pretendentes à mão de Penélope – ou ao trono -, poderia ensejar desejos mitológicos aos atuais detentores do poder. Como a leitura dos clássicos não faz parte de seu estreito repertório, contentam-se em repetir procedimentos históricos temperados de ignorância, atraso e comportamento de bando, com a conivência de uma justiça venal e um legislativo corrompido.A dissipação da república, da res publica dos romanos, é estimulada por igrejas que anseiam por uma nova Era Medieval, de cruzadas contra o “inimigo”.

Em Dossiê H, Kadaré nos envolve com seu senso de humor, e pouco a pouco vai desvelando a barbárie, desembocando num final dramático, onde com maestria funde a lenda do poeta épico cego com a realidade que custamos a enxergar. Romance delicioso, escrito por um dos grandes mestres da literatura contemporânea.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Ismail Kadaré. Dossiê H. São Paulo, Companhia das Letras.

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Francisco Pereira de Farias André Márcio Neves Soares Mário Maestri Bento Prado Jr. Paulo Capel Narvai Manchetômetro Liszt Vieira Alexandre de Lima Castro Tranjan Boaventura de Sousa Santos Chico Whitaker Samuel Kilsztajn João Carlos Loebens José Luís Fiori Marcelo Guimarães Lima Renato Dagnino Valerio Arcary Juarez Guimarães Yuri Martins-Fontes Henry Burnett Ronaldo Tadeu de Souza Gerson Almeida Fernando Nogueira da Costa Vanderlei Tenório Ronald Rocha Tarso Genro João Carlos Salles José Dirceu Rubens Pinto Lyra Daniel Afonso da Silva Alysson Leandro Mascaro Kátia Gerab Baggio Michael Löwy Eleonora Albano José Geraldo Couto Milton Pinheiro Daniel Costa Ricardo Musse Dênis de Moraes Luiz Werneck Vianna Henri Acselrad João Lanari Bo José Costa Júnior Antonino Infranca Luiz Marques André Singer Ricardo Fabbrini Manuel Domingos Neto Luciano Nascimento Annateresa Fabris Lorenzo Vitral Atilio A. Boron Francisco Fernandes Ladeira Otaviano Helene Alexandre Aragão de Albuquerque Bernardo Ricupero Fábio Konder Comparato Marcos Silva Osvaldo Coggiola Thomas Piketty Leonardo Sacramento Sergio Amadeu da Silveira Dennis Oliveira Ricardo Antunes Eduardo Borges João Paulo Ayub Fonseca Valerio Arcary Andrew Korybko Paulo Fernandes Silveira Flávio R. Kothe Marilia Pacheco Fiorillo Denilson Cordeiro Slavoj Žižek Fernão Pessoa Ramos José Micaelson Lacerda Morais Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Eduardo Soares Marjorie C. Marona Ricardo Abramovay João Adolfo Hansen Matheus Silveira de Souza Maria Rita Kehl Alexandre de Freitas Barbosa Claudio Katz Érico Andrade Luiz Bernardo Pericás Marcos Aurélio da Silva Benicio Viero Schmidt Leda Maria Paulani Ari Marcelo Solon Airton Paschoa Vladimir Safatle Gabriel Cohn Antônio Sales Rios Neto Bruno Machado Sandra Bitencourt Eugênio Trivinho Roberto Bueno José Machado Moita Neto Berenice Bento Michael Roberts João Sette Whitaker Ferreira Chico Alencar Roberto Noritomi Lucas Fiaschetti Estevez Lincoln Secco Paulo Sérgio Pinheiro Tales Ab'Sáber Vinício Carrilho Martinez Luiz Roberto Alves Armando Boito Carla Teixeira Ronald León Núñez José Raimundo Trindade Rafael R. Ioris Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Martins Anselm Jappe Jorge Branco João Feres Júnior Priscila Figueiredo Jorge Luiz Souto Maior Marcelo Módolo Antonio Martins Luis Felipe Miguel Walnice Nogueira Galvão Rodrigo de Faria Carlos Tautz Igor Felippe Santos Luís Fernando Vitagliano Mariarosaria Fabris Gilberto Maringoni Gilberto Lopes Francisco de Oliveira Barros Júnior Daniel Brazil Leonardo Avritzer Salem Nasser Leonardo Boff Elias Jabbour Anderson Alves Esteves Caio Bugiato Celso Favaretto Remy José Fontana Jean Marc Von Der Weid Ladislau Dowbor Julian Rodrigues Marcus Ianoni Afrânio Catani Luiz Renato Martins Celso Frederico Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marilena Chauí Eugênio Bucci Heraldo Campos Jean Pierre Chauvin Tadeu Valadares Eleutério F. S. Prado Eliziário Andrade Luiz Carlos Bresser-Pereira Everaldo de Oliveira Andrade Flávio Aguiar

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada