Por EMIR SADER*
A história não é uma rota previsível, mas um rio de contradições onde até o mais sólido pode se dissolver, abrindo espaço para o novo e o inesperado
1.
Eu posso dizer que pertenço a uma geração privilegiada. Não por ter vivido só de felicidades e de vitórias, mas, ao contrário, por ter sido contemporâneo de grandes acontecimentos históricos e culturais e vivido tudo isso com uma geração de grandes nomes, os melhores que pude conhecer.
Gerações anteriores tiveram que conviver com um longo refluxo de revoluções e com todas as consequências que aqueles períodos produziam. Velhos dirigentes trotskistas contam que era desesperador falar do cruzamento do deserto que representava a vitória do fascismo na Europa, do stalinismo na Uniao Soviética e nos partidos comunistas. Diante desses períodos, quando se chegou à década de 1960, parecia que o pior tinha ficado definitivamente para trás.
Para quem vivia deste lado do Atlântico, até a revolução parecia algo distante, como um fenômeno asiático, protagonizado por Vladímir Lênin e por Mao Zedong. E ideologicamente europeu, que era de onde nos chegavam as leituras e as interpretações.
Contávamos com a Revolução Mexicana, distante no tempo e da qual haviam ficado quase que apenas versões cinematográficas, musicais, de que Pancho Villa e Emiliano Zapata eram os principais personagens, sem a verdadeira dimensão política do fenômeno que ambos representavam.
Quem nasceu ainda nos anos 1940 já pôde saudar a vitória da Revolução Cubana, em 1959, e o surgimento de líderes extraordinários como Fidel Castro e Che Guevara. Além de ser contemporâneo, no Brasil, da bossa nova, do cinema novo, do novo teatro popular brasileiro – de que os Teatros de Arena e Oficina eram as melhores expressões –, da luta de resistência contra o frustrado golpe de 1961, da luta de resistência contra a ditadura militar.
Em meio a tudo isso, os Sartre, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Garcia Marquez, Eduardo Galeano, Júlio Cortazar, Mario Benedetti e todos os autores do boom da literatura latino-americana. Da nova trova cubana, da Nouvelle Vague francesa, do cinema italiano, de intelectuais como Perry Anderson, Eric Hobsbawn, Ruy Mauro Marini, Milton Santos, Antonio Candido, Florestan Fernandes. Dos Beatles, de Pelé, Garrincha, entre tantos outros, assim como a vigência de Cuba, Argélia, Vietnam, Chile e Nicarágua.
2.
Significou também viver profundas viradas de conjunturas, a nível nacional, regional ou internacional, suficientemente importantes para nos ensinar de vez que nada está absolutamente traçado na história. Ao contrário do que pregava a velha esquerda, segundo a qual “a roda da história não volta para trás”.
Aquela ilha isolada no meio do Caribe rompeu com os acordos da Guerra Fria e começou a construir o socialismo a 90 milhas do maior império da história. Dava a sensação de que aqueles tempos em que a esquerda era minoria iam ficando para trás.
Até que, em um momento de 1989, Fidel Castro disse, para surpresa geral, que a União Soviética poderia acabar. Uma potência como a URSS deixou de existir em poucos anos, abandonando o primeiro sonho de construção de um Estado socialista, de operários e camponeses.
Houve momentos em que a previsão do encadeamento de tipos de sociedade, do comunismo primitivo ao comunismo parecia se confirmar, com uma crise de esgotamento do capitalismo, enquanto distintas formas de socialismo se disseminavam pelo mundo. Giovanni Arrighi recordava que a discussão, ainda nos anos 1970, era sobre quando o capitalismo terminaria. Se dava por estabelecido que o capitalismo havia se esgotado e se aproximava do seu fim.
Depois da velha esquerda ter previsto o fim da história nos anos 1930, com o triunfo do socialismo, retornava a absurda previsão do “fim da história”, desta vez com a vitória do liberalismo político e das economias de mercado.
Mas o que se impõe, uma e outra vez, é a história como processo aberto, em que nem todas as alternativas são possíveis a todo momento, mas em que “tudo o que é sólido desmancha no ar”, conforme a bela imagem do Manifesto Comunista. As vias da historia estão sempre abertas, é preciso saber captar as suas contradições e construir alternativas de superação dos dilemas aparentemente sem solução.
Vivemos, no mundo contemporâneo avanços inimagináveis e retrocessos impensáveis, somos surpreendidos por vitórias inesperadas e por derrotas dolorosas. Convivemos com gênios da política, da música, da literatura, e com monstros da politica, da economia e do terror.
*Emir Sader é professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana (Boitempo). [https://amzn.to/47nfndr
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