Por JOÃO PEDRO STEDILE*
Prefácio à nova edição do livro de Celso Furtado
1.
Felicito as editoras pela republicação do livro Dialética do desenvolvimento, do mestre Celso Furtado. Obra que foi escrita no calor dos embates ideológicos e da luta de classes do ano de 1963, das quais o autor participou ativamente como estudioso e ministro, e publicada em 1964, quando o golpe empresarial-militar já tinha acontecido.
Naquela época, o Brasil vivia uma crise cíclica do seu capitalismo industrial dependente, e os debates nas universidades, de intelectuais, partidos, governo e sociedade eram sobre a necessidade de um novo projeto de Brasil. No nível político, esse debate foi condensado nas propostas de “Reformas de base”, que incluíam a necessidade da reforma agrária.
Nesse contexto, o governo preparou um projeto de reforma agrária que teve as tintas de Celso Furtado, como uma proposta de reforma agrária clássica, que visava o verdadeiro desenvolvimento da indústria nacional, a distribuição de terras e o emprego e renda para toda a população. O projeto foi apresentado ao povo no famoso comício de 13 de março de 1964, com mais de 100 mil trabalhadores da cidade do Rio de Janeiro em frente à Central do Brasil – registrado no documentário Jango de Silvio Tendler. Enviado ao congresso em 18 de março de 1964, nem chegou a ser apreciado, pois, em 1º. de abril, o golpe militar foi consolidado.
A burguesia brasileira se revelou mais uma vez antinacionalista, antidemocrática e antipovo brasileiro, como resumiu Florestan Fernandes, e preferiu seguir subordinada ao capital dos Estados Unidos a encontrar uma saída da crise com seu povo. Escrevo sobre isso para nossos leitores entenderem o clima político da luta de classes da época, e assim percebam a reflexão do Celso Furtado condensada neste livro.
Hoje estamos vivendo uma nova crise do modelo capitalista brasileiro, ainda mais dependente do capital internacional, agora sob a hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais.
2.
Infelizmente, o Brasil virou o paraíso do capital financeiro especulativo, mantendo taxas de juros escorchantes que se transformaram na principal forma de exploração de todo o povo brasileiro, que paga impostos, e os impostos vão para o Tesouro nacional, que devolve aos bancos na forma de pagamento de juros dos títulos da dívida pública – que ninguém sabe como se formou! – e com isso abocanham mais de 40% de todo o orçamento público nacional, ou seja, da mais-valia social que deveria ir para serviços públicos e investimentos produtivos do Estado.
Do outro lado, as empresas transnacionais transformaram nosso setor produtivo em um grande “lavourão de soja”! O modelo adotado pelo agronegócio controlado por elas, que espolia nossa natureza e tem a burguesia agrária como aliada, impôs de novo o modelo de agro-mineral-exportador. A agricultura está organizada para produzir apenas o que o mercado mundial e suas bolsas querem: soja, milho, cana-de-açúcar (para açúcar e etanol) algodão e pecuária bovina.
Nos minérios, viramos exportadores de matérias-primas de ferro, alumínio, lítio e até de petróleo cru – 40% da produção da Petrobras e das concessionárias do pré-sal exportam o petróleo cru. E com a Lei Kandir, todas as exportações de commodities agrícolas e minerais estão isentas de impostos de exportação! Um acinte ao povo que foi doado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso às empresas exportadoras!
As estatísticas internacionais revelaram nos últimos meses que o Brasil se transformou no país mais desigual do mundo. E também o país que tem o maior número de bilionários, em termos de contingente.
É também o país que, tendo uma riqueza enorme de biodiversidade e território, padece dos piores crimes ambientais, praticados pelo modelo de mineração predatória e pelo agronegócio, que resultam na emissão de gases, em agressões ao meio ambiente, na contaminação das águas, do solo e dos alimentos pelo uso abusivo de agrotóxicos produzidos pelas empresas transnacionais.
As consequências dessas agressões aparecem todos os dias: nas mudanças climáticas, no calor intenso e secas, nas enchentes, nos fortes ventos e até com chuvas com agrotóxicos.
Mais do que nunca o debate proposto por Celso Furtado está na ordem do dia. Claro, agora com novas matizes e necessariamente como um projeto popular para o Brasil, com mudanças estruturais muito mais profundas e necessárias, se quisermos reconstruir uma sociedade mais justa, combatendo a desigualdade.
3.
Finalmente, eu gostaria de comentar minhas impressões pessoais, pelo privilégio que tive de cultivar uma amizade com Celso Furtado nos seus últimos anos de vida. Sempre que possível, eu o visitava no Rio de Janeiro. Ele era o nosso mestre, admirado por ser o maior estudioso de nossa história econômica e um lutador por um projeto de país. Era um ícone para toda minha geração, que estudou economia e lutou contra a ditadura e o capital estrangeiro. Conversar com o mestre era, de fato, uma realização pessoal.
Fiz muitas perguntas a ele, sobre muitos temas, desde o projeto de reforma agrária que ele defendia até os dilemas de nosso país. E ele, sempre muito atencioso, atendia com deferência e paciência.
Passei a admirá-lo ainda mais quando me disse que havia lutado na Itália com a Força Expedicionária Brasileira (FEB), e que isso o ajudara a ver o mundo com outro olhar, que foi o que o motivou a depois ir fazer mestrado na França, no pós-guerra. Mostrou-me um capacete de um nazista derrotado, que trouxe como recordação daqueles anos tão trágicos!
Sempre muito preocupado com a nossa situação, uma vez deu uma entrevista à “direitosa” revista Veja em que defendeu a necessidade da reforma agrária. Disse que o Brasil era o único país do planeta que convivia com imensas áreas de terras disponíveis para produção e milhões de trabalhadores que não tinham terra para trabalhar, pois a burguesia brasileira e seu controle sobre o Estado impediam que esses dois fatores se encontrassem para desenvolver o Brasil.
Quando fundamos o jornal Brasil de Fato, em 2003, dialogamos no conselho editorial qual seria a entrevista de peso que marcaria a linha editorial do nascente jornal: entrevistar Celso Furtado foi aprovado de forma unânime. E lá fomos. Eu, o José Arbex (editor geral) e Plínio de Arruda Júnior passamos algumas horas de um sábado conversando e apreendendo com o mestre. E a primeira edição praticamente saiu apenas com sua histórica entrevista e algumas notícias.
Na volta, seguimos discutindo qual seria a chamada de capa e da entrevista. A decisão foi unânime pela resposta que ele deu à última pergunta, quando indagamos o que Lula deveria priorizar, já que acabava de ser eleito em novembro de 2002. Lula precisa é ter coragem, só isso! Essa sua sabedoria profética pode ser aplicada também agora, no governo Lula.
Celso Furtado foi um dos grandes filhos do povo brasileiro: pesquisador, escritor, professor, historiador de nossa sociedade, homem público, ocupando, durante sua vida, diversos ministérios e cargos na Sudene. Mesmo assim, mantinha uma humildade e coerência impressionantes. Valores de um verdadeiro sábio!
*João Pedro Stédile é membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Autor, entre outros livros, de Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, (com Bernardo Mançano) (Expressão Popular).
Referência

Celso Furtado. Dialética do desenvolvimento. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo e Editora Expressão Popular, 2025, 216 págs. [https://shre.ink/qliS]
Para baixar gratuitamente o pdf do livro clique aqui.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A





















