Da confiança pessoal à impessoalidade da moeda

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A história do crédito no Brasil é a da lenta substituição dos sistemas sociais pré-capitalistas — do fiado, da agiotagem e do coronelismo — por um mercado financeiro nacional, um processo completado apenas com a urbanização e a estabilização monetária

1.

A modernização bancária brasileira tem três etapas demarcadas.

A primeira foi a consolidação das casas bancárias (fim do XIX – 1930) quando comerciantes e “coronéis” se formalizaram. Surgiram bancos locais ou estaduais. No Sudeste, a economia cafeeira cria demanda por crédito comercial e cambial. O Banco do Brasil assume o papel de semi autoridade monetária.

A segunda foi a da nacionalização da regulação, no Estado Novo getulista, e do crédito direcionado por bancos públicos a setores prioritários (1930–1964). O crédito agrícola e à infraestrutura foi modernizado. Houve expansão de carteiras hipotecárias.

Subdividiu-se em dois períodos: o da liberalização da criação de bancos (1930-1945) e, depois, o da exigência de concentração bancária (1945-1964). A ideologia nacional-desenvolvimentista (em conjunto com a fuga do capital estrangeiro na Grande Depressão e depois na Segunda Guerra Mundial) impôs a nacionalização do sistema bancário brasileiro.

Posteriormente, regulamentações da SUMOC – Superintendência da Moeda e do Crédito, criada em 1945, uniformizaram práticas bancárias, controlaram a concessão de cartas-patentes e conduziram à concentração bancária. O Banco do Brasil não atrasou a criação do Banco Central do Brasil, mas a sua participação em funções de política monetária impediu todas as funções do Banco Central serem plenamente estabelecidas até 1986, quando a conta-movimento foi eliminada.

O terceiro momento decisivo ocorreu quando a urbanização induziu o processo de bancarização em massa (1964–1994), embora durante a implementação do Plano Real a maioria popular “sem contas bancárias” tenha ainda sofrido todo o impacto de uma hiperinflação. A elite bancarizada se protegeu: antes, com moeda indexada e overnight, durante, com URV, um simulacro indexado ao dólar.

Via bancos já havia a chegada de salários monetários à maioria de famílias urbanas. Houve diminuição do número de bancos e expansão das redes de agências. Consolidou-se o mercado de depósitos e outros ativos financeiros.

Completou-se, assim, a transição da “cordialidade patriarcal” para a impessoalidade da moeda indexada em regime de alta inflação.

O capitalismo financeiro tardio brasileiro emergiu em paralelo à lenta dissolução da sociabilidade rural. Substituiu as relações pessoais de dependência por um sistema de pagamentos, crédito e riqueza financeira, mediado por instituições formais, reguladas e impessoais.

Na realidade, a história bancária nasceu da sociedade, não das finanças propriamente ditas.

2.

A origem dos bancos no Brasil não pode ser compreendida apenas como evolução administrativa ou como casos empresariais isolados. Ela emerge da totalidade social: da estrutura agrária; da hierarquia racial e pós-escravista; da economia desmonetizada; das redes de confiança local; das instituições religiosas; das relações de poder do coronelismo; da urbanização e do assalariamento tardios.

Antes de existir sistema bancário, havia sistemas sociais de crédito. Antes da carta-patente, havia autoridade local. Antes do banco moderno, havia intermediação comunitária ou cooperativa.

A formação do sistema financeiro brasileiro é, portanto, uma história de transformação lenta. Nela, as práticas financeiras pré-capitalistas não foram simplesmente substituídas, mas incorporadas, desarticuladas e ressignificadas ao longo de mais de um século.

Fazer uma correlação empiricamente informada entre urbanização ↔ bancarização ↔ endividamento, ao longo da história brasileira, ajudará a testar a hipótese estruturante. Ela é: a expansão do sistema bancário depende, estruturalmente, da transição demográfica e social (do campo para a cidade), ou seja, da economia agrária desmonetizada para a economia urbana endinheirada.

Apresento, em seguida, algumas ideias de como montar esse projeto de pesquisa sobre a formação bancária do Brasil. Antecipo algumas limitações já aparecidas nos dados existentes.

Sobre urbanização, as séries demográficas do IBGE mostram: o grau de urbanização no Brasil passou de cerca de 31% em 1940 para 56% em 1970. Atingiu 87% em 2022.  A passagem da maioria rural para maioria urbana ocorreu, sobretudo, entre as décadas de 1950 e 1980, com aceleração a partir da década de 1960.

Vale lembrar de fatores como o início da produção da pílula anticoncepcional, a diminuição do número de filhos por mulher, a queda da necessidade de criação de força de trabalho rural (braços), o ingresso das mulheres no mercado de trabalho de prestação de serviços doméstico e de cuidados urbanos, antes de predominarem nas Universidades.

Quanto à bancarização, para acesso a sistemas de pagamentos, gestão do dinheiro recebido na conta salário, crédito ou endividamento, uma métrica de “crédito às famílias” mostra expansão significativa a partir da década de 1990. Os dados disponíveis da série do crédito a famílias no Brasil vão de 1994 a 2025.

Segundo relatórios recentes, o endividamento das famílias brasileiras atingiu níveis recordes em 2025, com cerca de 79,5% das famílias endividadas no último trimestre. A inadimplência também avançou, atingindo 30,5% em outubro, enquanto a proporção de famílias sem conseguirem pagar suas dívidas atrasadas chegou a 12,8% em agosto, o maior índice desde o início da série histórica em 2010. Esse cenário é agravado pela alta taxa de juros e pela inflação.

O uso de meios de pagamento modernos (como o Pix) e a difusão da “cultura bancária” facilitam a atração do sistema financeiro inclusive sobre as camadas populares. Contribui para a expansão do crédito e da dívida, boa se for o financiamento habitacional, e a gestão do dinheiro em longo prazo.

3.

Diante da correlação histórica, apontada pelos dados, a urbanização precede a explosão de crédito bancário a famílias, porque a população das cidades se torna maioria já a partir da década de 1970. O acesso formal a crédito e endividamento de famílias aparece com força a partir dos anos 1990 com a diminuição da corrosão do poder aquisitivo pelo regime de alta inflação.

Logo, a soma da estrutura urbana com a demanda por monetização da vida – fruto da urbanização – prepara o terreno para a bancarização de massa. O crédito imobiliário como forma de acumulação da maior riqueza familiar e a dívida para consumo popular só deslancham em um governo social-desenvolvimentista. Ocorrem quando o sistema financeiro já está consolidado, ou seja, há um atraso entre urbanização e financeirização plena das famílias.

As limitações e lacunas empíricas, para uma pesquisa sobre a formação bancária do Brasil, entre outras, registra a falta de dados padronizados historicamente para “contas bancárias por domicílio”. As instituições do sistema bancário nunca divulgaram, publicamente, séries auditáveis com números de clientes ativos.

Dados nominais comparáveis de crédito a famílias só existem, a partir de meados da década de 1990, quando se adotou a moeda nacional “real”. Isso limita o controle empírico da transição entre 1960 e 1980.

O endividamento de famílias via sistema financeiro recentemente passou a ser medido de forma sistemática. A “informalização” do crédito (fiado, empréstimos privados, agiotagem), evidentemente, não era possível de aparecer nas estatísticas oficiais. Mas era plausivelmente dominante nas décadas iniciais de urbanização.

A estratégia para superar lacunas é a reconstrução histórica indireta. Para contornar a ausência de dados diretos, a pesquisa pode adotar uma estratégia multimétodos: utilizar fontes qualitativas e históricas como relatórios, jornais, anúncios de bancos, denúncias de agiotagem, registros de cooperativas e associações comunitárias – para mapear a expansão do crédito informal e eventual incline à bancarização. Para perfil de banqueiros, usei muitos obituários publicados em jornais após seus falecimentos.

Fazer estudos de caso regionais ou localizados (unidades federativas, capitais, periferias, áreas rurais), para estimar quando e como emergiu a demanda por serviços bancários, é um desafio problemático – e não tanto recompensador diante o já conhecido.

Pelo contrário, compensa fazer o cruzamento com variáveis de infraestrutura (telecomunicações, transporte, migração interna, densidade urbana) para indicar o “momento estrutural” no qual a bancarização torna-se viável e necessária. É interessante comparar com dados macroeconômicos (crédito nacional, expansão das agências bancárias, consolidação do sistema financeiro) para relacionar a institucionalização do crédito com a urbanização.

Correlacionar urbanização, bancarização e endividamento, em séries históricas, é viável para períodos recentes, mas apresenta lacunas para completar um recorte histórico mais amplo. Ainda assim, essa correlação – complementada por métodos historiográficos e qualitativos – pode fornecer evidência suficiente para testar a hipótese de a financeirização tardia no Brasil se deu por causa do baixo grau de urbanização, antes de meados do século passado.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]


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