O que nega o negacionismo?

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Análise do discurso da “volta ao trabalho”, destacando os mecanismos pré-conscientes do negacionismo científico-sanitário

Por José Szwako*

Mr. Chagall: I am very sensitive to your torment… But unfortunately we are mere mortals. We are restricted by the laws of nature. [Estou muito sensibilizado com seu tormento… Mas infelizmente somos meros mortais. Estamos restringidos pelas leis da natureza.]
Madeline: Well, what more could one expect? [Bem, que mais se poderia esperar?]
Mr. Chagall: Mmm, that depends![Hum, isto depende!]

É segunda ou terça-feira, não sei ao certo. Ainda estamos em março, mais um dia, um longo dia, de uma quarentena que, até onde se pode ver, ainda deve tomar um bocado do nosso tempo. Em meio às acaloradas discussões sobre a necessidade ou o suposto exagero de medidas de distanciamento social, quero me alienar um pouco e assisto a A morte lhe cai bem, uma das poucas comédias dos hoje longínquos anos 1990 que sobreviveram ao tempo.

Na cena acima, a onipotente e agressiva Madeline (Meryl Streep), atormentada pelo envelhecimento, ganha um consolo. Ela pode contornar as leis da natureza e do tempo por meio de uma poção da vida. Só depende de ela beber e pagar o preço: se tomar a cada vez que morrer, ela irá ressuscitar. Uma feiticeira sexy (Isabela Rosselini) vê na bebida uma salvação, oferecendo-lhe “um toque de mágica em um mundo obcecado com a ciência”. Um icônico siempre viva! é o lema da poção sensual, a que Madeline adere.

Após sofrer sua primeira morte, ela se torna não uma morta-viva, mas uma viva-morta, um cadáver que não envelhece. Ela conseguiu enfim o que desejava. E é a partir do assassinato de Helen (Goldie Hawn), rival e vítima da assassina Madeline, que se desenrola essa leve comédia mórbida. Mad e Hell, como se chamam chistosa e carinhosamente, foram seduzidas e eternizadas pela magia da poção do fim da vida. Mortas, ambas fazem as pazes e vivem atormentando o marido e ex-namorado, o prudente Ernest (Bruce Willis), para quem a vida eterna é “um pesadelo”. Elas não ligam. A morte, como diz o nome do filme, lhes cai bem.

A partir das metáforas, imagens e soluções da morte evocadas pelo filme, gostaria neste texto de ler a atual e dramática enxurrada de informação e desinformação ao redor do covid-19, para ampliar a análise da subjetividade fascista já iniciada em outro momento.[1] No entanto, à diferença do tom frankfurtiano daquela crítica do fascismo brasileiro, quero aqui me valer dos insights freudianos sobre os mecanismos de negação.

Tal como antes, me valho do arsenal dos chistes, memes, vídeos e posts produzidos e difundidos por pessoas que afirmam hoje estar “muito preocupadas com tudo isso”, mas consideram “o isolamento exagerado”, uma “histeria”, como disse o presidente Jair Bolsonaro. Elas dizem reconhecer “a gravidade do corona, porém” — a adversativa sempre retorna — “não se pode esquecer da economia”. “Eu li”, diz o negacionista, “estou informado”; ele escolheu saber. E mais: “não foi só no zap da família, li informação técnica de verdade e que a mídia não está mostrando”, repetindo mais uma vez o presidente “eleito”.

Estão e estamos todos, negacionistas ou não, obcecados. “Hoje não fiz nada além de ler sobre o assunto” — uma república fake de especialistas. Os números, aliás, inundam o zap: “mais de 50% curados”; “7.432 salvos na Itália”; “mais de 100 mil curados, vamos espalhar positividade”. Todos recém-tornados experts em números e gráficos, em curas e mortes. Agora sobre novas e múltiplas telas, a salvação (para quem? do quê?) não será questão cômica nem sexy, não virá da magia, talvez de uma poção, a poção do “trabalho”.

Atento aos ditos e interditos racionalizados no negacionismo científico-sanitário atual, quero neste ensaio tentar acessar sua economia libidinal e trazer parte dela à tona. Este esboço de crítica dos investimentos pulsionais em circulação pode ainda contribuir para demonstrar a riqueza dos insights da psicanálise, e, sobretudo, como seus instrumentos e camadas de observação podem e devem ser somados às análises sociopolíticas do anti-intelectualismo corrente, ele próprio parte constitutiva do drama hoje globalmente vivido.

A tudo e a todos

A crise sanitária mundial disparada pela força de contágio do coronavírus reforçou e atualizou alguns dos leitmotive do reacionarismo atual no Brasil: família, pátria e trabalho. Não por acaso as carreatas pelo “fim do isolamento” tiveram a mesma tonalidade verde e amarela dos protestos pró-golpe de 2016 e da vitória eleitoral de 2018. A justificativa mais recorrente é salvar “o mercado”, “o andar da economia”, “a produção”, que “não pode parar”. Um post reforça as afirmações do presidente e ironiza: “Calma, gente, Bolsonaro não tá obrigando ninguém a trabalhar, não… Isso é só pra quem gosta e tem costume”. “O que vai acontecer se o Brasil parar de trabalhar?” — se pergunta outro post, cuja imagética lembra a da seleção brasileira de futebol, e segue: “Queremos trabalhar. Buzinaço. 27/03. Isolamento vertical”. Labuta e um tipo vertical de afastamento são assim suas medidas sanitárias alternativas. Sintomaticamente um dos posts fica sem responder: se o Brasil parasse, o que aconteceria?

Os opositores reais e inimigos imaginários dos partidários do “isolamento vertical” são aqueles que defendem “ficar em casa” como melhor alternativa na situação atual. Eles são percebidos como “simplistas” e “reducionistas”. Segundo o zap negacionista, faria bem ao debate “bom senso, honestidade e apartidarismo”. “Temos que evitar o velho fla x flu” é o apelo que chega no mesmo dia em que circula uma foto de camisa de futebol do — assim nomeado — “Covid Sport”, com o patrocínio estilizado e estampado em símbolos do psol, da China, da Globo e do pt. Imagem não menos mobilizadora, porém igualmente verberada pelos eixos da antimídia e da antipolítica, foi a foto de palafitas amontoadas defronte ao esgoto a céu aberto. Abaixo da foto, inimigos são listados: “Fiquem em casa. Falaram os artistas, os políticos, os prefeitos, os governadores, os jornalistas, outros tantos cheios de bondade. (…) Economia a gente recupera dizem eles”.

No emaranhado dessa primeira camada de racionalização negacionista distinguida pelo ideal de mercado e pelas contrariedades externas que tem de encarar, veremos que se repete uma preocupação com “as famílias”, “os pobres” e, mesmo, “as vidas”. Diante dessas figuras, algum economista ou cientista social já denunciou no Facebook que falta aí o social, a vida em sociedade. Ledo engano. O negacionismo não apenas tem um modelo de sociedade, como sabe e repete que “uma coisa depende da outra”, “não há vida sem economia, nem economia sem vida”. Às alternativas propostas pela esquerda a negação recoloca, com sentido invertido, o mesmo ponto — “é falsa a oposição entre salvar a economia e salvar vidas”, retruca, “eu não precisava dizer o óbvio”.

No discurso “pró-economia”, figuras da desigualdade e das relações de gênero se cruzam para empreender uma “defesa” da “vida”. No post do “autor desconhecido”, lê-se que “é difícil defender quarentena quando o armário já está vazio e que, se não trabalhar, não tem salário, trabalha de manhã pra comer de noite e o filho tá pedindo iogurte”. Neste âmbito das metáforas familistas, uma fala antipolítica pede que “não se alimente a divisão, o momento é de união”, pois “discutir política durante uma pandemia é como discutir divórcio durante um incêndio”. Também negando a disputa política, o post do apresentador de televisão adverte que “a fome está chegando antes da doença. Não é hora de guerra política”. Em resposta, a base negacionista reafirmou sua convicção: “Soletra: Bolsonaro tem razão”. Não só o negacionista se acha “razoável”, como também lhe é mentalmente impossível não ter “a razão”.

Rentes àquele imaginário de gênero que tem aversão à separação conjugal e social, parte do público negacionista e o presidente da República aproveitaram a crise atual para se atualizar e improvisar um antifeminismo, por ora, feminista: “E as mulheres que estão sendo violentadas em casa?” Melhor que se volte ao trabalho, dizem. Eles não foram os únicos familistas que viram na pandemia uma oportunidade político-libidinal para lucrar. “Vivi”, afirma o natalista, “para ver um monte de gente a favor do aborto dizendo que o mais importante é a vida”. Metáforas análogas dão também o recado contra a mídia hegemônica: “Isso se chama corona fome”, lê-se na foto com duas crianças abandonadas ao chão, “como não é negócio a mídia não mostra”.

O parlamentar da extrema direita excita as redes se perguntando “por que a mídia não divulga que o general Heleno, 73 anos, curou do coronavírus (…). Que imprensa é essa? Só noticia o que leva a pânico?”. As fontes vão além do zap da família, circulando também pelo Twitter e Facebook. Porém, mesmo quando se vale das fontes tradicionais da imprensa brasileira, o negacionista é seu “crítico” (“não acredito em nada”) e lê até onde lhe apraz, isto é, até que a defesa idealizada do mercado siga satisfeita com seu ideal de família. Se, como a mancheteafirma, a “oms diz que contágio do novo coronavírus está passando ‘das ruas’ para ‘dentro das famílias’”, ele performa um protopânico “para voltar ao trabalho” e nele se detém, se recusando a levar em conta a realidade de que a oms, na mesma frase do jornal, “reforça necessidade de isolamento social”.[2]

Não é só como ideal que a família emerge no negacionismo. A família herdada pelo parentesco é também seu bode expiatório imaginário, seu cúmplice ideal. O eu da negação, contudo, não se afirma. O negacionista não é para si negacionista, pois “quem não sabe” é a tia e o tiozão; a “desinformação” é projetada nos seus pais e avós… Ele não: o negacionista é ilustrado, ilustrado convicto — needless to say —, diz “já” saber porque, ao contrário dos “simplistas”, ele “prefere se informar”. Escolhe ativamente suas fontes lado B e com elas se nutre e sonha. “Cansado da sem-vergonhice”, prefere sbt a Globo; nos casos mais escolarizados, disfruta de Fox Newsou de “Os pingos nos is”, no YouTube; e, quando passa pela mídia hegemônica brasileira, ele a edita.

A proposta a tudo isto seria, então, sairmos de casa e bebermos da poção do mercado de trabalho. O apelo dado em vídeo por um dono de rede de supermercados é uma representação sui generis da fantasia negacionista.[3] Não por acaso sua fala começa por aquela adversativa distintiva: “Eu também sou a favor de ficar em casa, mas…”. Mas não é. Ele diz: “Vamos fazer o menos pior nesse momento. Vamos nos preocupar em passar essa fase lutando, não se acomodando (…). Eu conto com vocês. Segunda-feira voltem ao normal. (…) Não escutem aqueles que querem a destruição do país”. Esse tipo de apelo pode ser visto em inúmeros chistes e posts que via de regra envolvem pares como vagabundo-trabalhador e responsável-irresponsável. Tais piadas em versões textuais e imagéticas devem provavelmente ter sido difundidas, consumidas e celebradas por centenas de milhares de mídias e famílias Brasil afora.

Interessante notar que a solução proposta, “mãos à obra”, reproduz sintomaticamente lógica análoga à do negacionismo climático. Como mostrou Danowski,[4] além de acusar os ambientalistas de “catastrofistas”, o negacionismo climático vê a solução para o aquecimento global na liberação, e não na restrição, da atividade humana sobre o mundo.

À primeira vista, poderia parecer que o negacionista “pró-economia” é pautado por uma relação erótica construtiva com o mundo. Seu discurso diz querer “salvar vidas”, proteger “as crianças”, “as mulheres”, “os pobres”, “a família”, evitar “a destruição do país”. Tudo muito bonito e edificante, não fossem as metáforas e referências à morte que interpelam e dão sentido a esse imaginário. O mundo tal como representado nesse discurso é o mundo do “menos pior”, é o esgoto, o incêndio, o armário vazio, as crianças ao relento… Essa é “a verdade destruidora” que os não-negacionistas “não veem”.

A contiguidade ambivalente entre pulsões de vida e de morte, à raiz dessa imaginação, pode ser notada na guerra declarada pelo negacionista. “Vamos em frente, nós temos garra, somos guerreiros. Nós temos uma Pátria para lutar por ela, nós temos a nossa missão para cumprir”. E arremata: “Eu com vocês, vamos à luta”. O negacionista, que não está sozinho, se oferece à posição de mártir, se dispõe a morrer dizendo que pode “até não estar aqui” mais tarde, embora queira arrastar consigo os demais, seus “colaboradores” e consumidores do mercado, “à luta”, para “o normal de segunda”.

Se vendo altruísta, o negacionista mais gravemente perverso diz só querer ajudar; seus “inimigos” não são “cheios de bondade”, como supostamente alegam. Já ele, trabalhando, quer salvar “vidas” e “os pobres”, quer conter e salvar a tudo e a todos. Mais que isso, porém, ele tem um interesse na própria morte. “Eu não vou me acovardar, vou lutar até o fim enquanto eu tenho força para ajudar”. Não satisfeito com as representações de um mundo decrépito, sua libido extrai prazer do flerte com a catástrofe e a morte. Assim, o suposto altruístaquer sobreviver “pelos outros” e morrer também, na labuta “até o fim”.

Isto, contudo, não exaure o exame daquilo que essa economia libidinal pode ainda nos dizer. Se em uma camada mais profunda observarmos, como faremos em seguida, o estatuto do delírio desejado pelos negacionistas, veremos que sua pulsão de morte lhes demanda, ao contrário, que eles não morram — não agora.

Sobre tudo e sobre todos

E se o Brasil parasse? A sintomática não resposta a essa questão reprime algo que fala muito do negacionismo científico-sanitário. A descrição de como seria essa paralisia nos permite atravessar o pré-consciente negacionista e chegar a alguns de seus desejos mais primevos. Segundo o post do “autor desconhecido”, a defesa de “ficar em casa” vai levar o país a um cenário “pós-quarentena”, no qual “vai morrer gente por falta de dinheiro pra saúde em geral, aumento da criminalidade, de fome, de depressão e suicídio”.

Os vários horizontes de futuro que são descritos por posts e vídeos deixam qualquer distopia, de Mad Max a Bacurau, no chinelo. Em depoimento, um negacionista expõe uma longa e detalhada história do que “vai acontecer”, a cada “dia” e “grupos” se “tudo parar”. Na sua imaginação, “os mortos que estão na rua, porque não têm ninguém para recolher os corpos, já entram em decomposição. No hospital, aqueles que já faleceram, há dois dias, também estão em estado bastante complicado”.

Esse, no entanto, não é um futuro apenas imaginado, mas também desejado pelo discurso negacionista. Através dessas descrições mórbidas, o negacionista encena simbolicamente aquilo que espera inconscientemente que ocorra. Trata-se, neste sentido, não tanto de uma distopia, mas, mais propriamente, de um sonho tornado real, um cenário utópico que daria finalmente vazão às pulsões e alucinações negacionistas mais íntimas.

O futuro projetado é como um filme tétrico. “Uns poucos”, vislumbra aquela longa história, “vão conseguir chegar até em casa, contaminados pelo vírus e vão estar junto com a família. Outros, a grande maioria não vai conseguir chegar até em casa, vão cair nas calçadas e por lá vão ficar”. No canal ultraconservador do YouTube, o elogio a um vídeo negacionista diz que “a arma de destruição em massa mais potente é a psicológica”. Já para o grupo do zap, “é triste imaginar que tais verdades” do negacionismo “só serão (ou seriam, se Deus quiser) compreendidas caso tivéssemos uma crise de desabastecimento”. Não é necessariamente o que vai acontecer se o Brasil parar, mas é o que negacionismo não tão inconscientemente deseja que aconteça caso o país “pare”. O negacionismo nega, então, a fantasia de ver seus sonhos de anomia e extermínio realizados. Fantasia que ele preferiria, retomando Freud, reprimir.

Numa postura agressiva e de ameaça, o negacionista diz que o mundo só terá futuro (não-negacionista) se tomarmos a poção mercadológica. “It’s the right choice! The only choice!”, grita a feiticeira sensual no filme macabro, “drink it!”. Longe da comédia, mas não tão distante, o negacionismo também se percebe como “a escolha certa” e “realista”. É quase como um estelionato simbólico.

A frase que encerra uma mensagem negativista sobre o coronavírus soa ameaçadora: “Ou chegamos ao consenso ou vamos igualmente sucumbir”. O ato falho não falha: vamos, de qualquer modo, sucumbir? E mesmo quando posta a manchete “86% dos moradores de favela passarão fome”, já se sabe que a solução é “ir trabalhar”. Nem sequer ocorre em algumas discussões de zap que o Estado, com ou sem formas alternativas e civis de solidariedade, possa ou deva se responsabilizar e agir na crise. Qualquer ação coordenada nesse sentido é, para o negacionista, chacota.

A utopia oral do negacionismo é duplamente escatológica. Seu desejo de fim do mundo é um desejo cadavérico, repleto de moribundos, putrefação e lixo. Na fantasia encenada ao longo daquela história na qual “tudo parou”, os alimentos estragados “fedem” e o sujeito narrador e sua família querem jogar o “lixo para fora”, mas ele diz: “Está lotado o lixo. E nós não temos empresas fazendo a coleta do lixo. Isso já no segundo dia”.

Essa fala dá acesso àquilo que o negacionismo rejeita (isto é, quer expelir “para fora”): a contrariedade interna de seu próprio desejo mórbido e de um mundo mórbido. Se uma vez realizado esse sonho, mais adiante, o negacionista pode vir a ter naquele (fim de) mundo desejado uma promessa de prazer. Ele vai poder entoar um lapidar “eu avisei” (que não se confunde com o discreto e imobilizador “eu avisei” das esquerdas de hoje, pois, melancólicas, elas são críticas antecipatórias da realidade). O gozo negacionista, ao contrário, está postergado; ele poderá depois, talvez, reinar sobre todos seus adversários reais e imaginários. Sobre escombros, cadáveres e moribundos, sobre tudo e sobre todos, ele delira que poderá mostrar ao mundo que a única saída “racional” e “realista” para isto era “voltar ao trabalho”.

Toda essa libido investida em descrições tensas do fim desejado do mundo, para afirmar “o mercado” e no mesmo passo reprimir o lixo interno, tem condições e efeitos políticos. O negacionismo presidencial nutre a base e dela se nutre. Mais do que um cálculo, essa é uma aposta política. Bolsonaro vislumbra que, ao final do processo (?), seja qual for a relação entre o número de mortos, de sobreviventes contagiados e de pessoas que poderiam ser salvas por ação coordenada, ele poderá culpabilizar outros, o vírus ou os governadores, tanto pelo “desastre na economia” como pela “catástrofe” “de vidas perdidas”. Seja qual for o cenário, se vê ganhando. Assim, ele aposta em 2022 projetando-se à dianteira do coro escatológico do “eu avisei”.

O presidente, no entanto, tem hoje que lidar com uma série de contrariedades externas, seja a China, Donald Trump ou a oms, seja os números e militares ao seu redor. Tais contrariedades colocam entre ele e sua base certo descompasso: enquanto a base permanece contrariada e arredia com o crescimento exponencial dos casos, o presidente mostrou alguma submissão a Ananké, esboçando aceitar as condições impostas ao dizer que incorpora as recomendações da oms, ao mesmo tempo, porém, que as torcia.[5]

A base e o presidente parecem, na verdade, disputar quem é mais “realista”, quem é mais capaz de ignorar os desmentidos diários de suas opiniões. Se a fake news editou a fala do representante da oms e foi por ele em seguida desdita,[6] o negacionista se recusa a reconhecer. Mesmo quando os magos do fmi o contradizem,[7] ele recalca repetindo que “não há dilema entre vidas e empregos”. O seu eu faz mais que editar a realidade (o que poderia ser dito de qualquer paixão ou neurótico saudável): de modo perverso, escolheu “se informar”, e falsifica a própria falsificação sem desconhecer a sua dupla falsidade.

Traço análogo se evidencia em suas leituras de revistas científicas e de divulgação. Numa lógica perversa de fixação nas retificações normais à construção da ciência, tanto mais compreensíveis em contexto de crise aguda, o negacionismo não recusa o discurso científico, mas a sua natureza controversa. Para o negacionista, tais retificações são horrorosas — “os cientistas já mudaram o papo”, “agora ninguém sabe de mais nada”, “eu li”. “Descrente, porque sempre tem politicagem”, ele falsifica a controvérsia tanto falsa como verdadeira e retorna, impelido, a fontes mais infantis e “seguras”: um pediatra “que mostrou toda a verdade que a mídia esconde” no YouTube, o áudio de um “médico do Rio de Janeiro que assegura que ninguém com menos de 40 anos vai morrer disso” e tantas outras a-versões de um “autor desconhecido” no zap.

Sobre o limite da crítica

“Não se acomodar” e “mãos à obra” são versões daquilo que é oferecido como alternativa pelo discurso negacionista científico-sanitário. Isto não é novidade. O negacionista se vende como altruísta e, assim como qualquer um, tem um auto-interesse cuja veia pulsante foi, no delirante zap do condomínio, explicitada por uma adversária do negacionismo: “Você quer se matar?”. Mais a fundo, e antes de termos chegado ao descompasso íntimo entre política presidencial e a recusa perversa da realidade essencialmente controversa da ciência, a análise da poção/pulsão mercadológica permitiu desreprimir momentos de uma macabra catástrofe encenada simbolicamente e largamente compartilhada.

Assim, para responder a pergunta do título, a hoje fervorosa defesa “pró-mercado” não nega a “gravidade” da conjuntura; não se trata tampouco de negar o discurso científico tout court. Não é todo e qualquer discurso científico que é negado, pois o discurso negacionista também se ilustra na ciência. O que o negacionismo preferiria ter recalcado é, antes, sua utopia escatológica; nega, portanto, seu sonho de destruição em larga escala tornado, por ação e inação humanas e não-humanas, quiçá em algum momento realidade, quando o negacionista vai, enfim, poder gozar.

Este esboço de crítica da negação à ciência é, todavia, incompleto. Refazendo a pergunta inicial com outra tônica, reconheço que a tarefa não chegou a termo. Não foi possível responder o que ou quais discursos seriam capazes de negar o discurso negacionista. Espero ter respondido parcialmente à questão “o negacionismo nega o quê?”, mas não tratei das forças e reformulações, dentro e fora das ciências, que poderiam dar conta de contradizê-lo no seu próprio terreno e em seus fundamentos. Este é um limite nada desprezível.

A despeito dessa limitação, no entanto, o trajeto percorrido deixou provas e pistas úteis a outros diagnósticos, principalmente aquelas pistas de que o negacionista não é irracional nem desinformado. Ele bebe das suas próprias fontes. Não se trata, então, de um problema de raiz cognitivo-psicológica nem, muito menos, comunicativa. Não lhe falta informação mais qualificada ou mais verdadeira; verdades, com efeito, sobram. O negacionista é refém da sua verdade e da verdade da sua perversão. Não lhe falta razão ou razoabilidade; ele mesmo pede “bom senso” e, com onipotência característica, se recusa a outro caminho que não seja um imaginário “meio-termo”, “o mais sustentável”.

Aos diagnósticos mais atuais, nossas pistas trazem desfecho desanimador. Aqueles que, por exemplo, apostam numa “cultura comum”[8] notarão aqui que os caminhos para um projeto comum de mundo estão largamente bloqueados pela com-pulsão que quer e parece levar negacionistas de todos os naipes, e por todo o planeta, a desejarem não o fim deste mundo, mas o fim de todo e qualquer mundo.

De outro lado, não há melhor notícia para aqueles preocupados com os impactos fatais da avalanche de dados e informações sobre os modelos de democracia. Os vários críticos das polarizações encarnadas e encarniçadas nas redes sociais tendem a ignorar que o negacionista não critica, ao contrário, compartilha com eles da mesma defesa do “fim dessa polarização”, “que acabou com o Brasil”. Tal como a maior parte dos públicos virtuais, o negacionismo se nutre de redes altamente hemofílicas que são, mais à direita que à esquerda, nutridas pela falsificação incessante de grupos e bots.

Se há um limite, porém, que esta crítica transpassou e por onde possa talvez contribuir a outros diagnósticos, é somar camadas pré-conscientes e inconscientes de análise à observação. Elas estão repletas de implicações sociais e políticas, a começar pelo reconhecimento de que o negacionista não desconhece a realidade; ele, tal qual o infante e o perverso, apenas picota os indícios do real quando a realidade não o satisfaz — quase sempre, portanto. Seja como for, por detrás desse não-desconhecimento, desse “eu já sei” negacionista, está a simples e triste verdade de que aos sujeitos do negacionismo científico, assim como àqueles que hoje investem na negação da ditadura, a morte em suas imagens e monstruosidades lhes cai muito bem.

*José Szwako é professor do Iesp-Uerj e agradece a Joaquim Toledo Jr. e a Cristina Buarque de Hollanda pelas críticas e apoio


[1] https://revistaescuta.wordpress.com/2016/05/18/escuta-especial-conjuntura-o-fascismo-contemporaneo-brasileiro-ou-o-mundo-segundo-o-conservadorismo/

[2] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/30/oms-reforca-necessidade-de-isolamento-social-e-testes-para-conter-velocidade-das-transmissoes-de-coronavirus.ghtml

[3] https://www.facebook.com/valdir.cruz/videos/3669791936427898/

[4] http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/hiperrealismo.html#.XoY5KYhKjIU

[5] https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-distorce-fala-da-oms-volta-pregar-retorno-ao-trabalho-24340661

[6] https://veja.abril.com.br/mundo/em-resposta-a-bolsonaro-diretor-geral-da-oms-insiste-no-isolamento-social/

[7] https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/04/03/oms-e-fmi-afirmam-que-ha-falso-dilema-entre-vidas-e-empregos.ghtml

[8] https://www.nytimes.com/2018/10/25/magazine/bruno-latour-post-truth-philosopher-science.html

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