O perigo da loucura

Imagem: Jon Tyson
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Por PAULO GHIRALDELLI*

Quando o pensamento se torna dogma pelo aplauso dos seguidores, a maior loucura é acreditar que ainda se está filosofando

1.

Há uma estranha passagem no livro recente de Marilena Chauí. Baseada em Alexandre Kojève, ela diz que a garantia do filósofo “contra o perigo da loucura” é o fato de ter discípulos. O filósofo isolado tem de “admitir como critério necessário e suficiente da verdade o sentimento interior da evidência”. Se esta evidência é “exclusivamente subjetiva”, algo obtido “rigorosamente na solidão”, nada garantirá ao filósofo que não está louco.[1]

 Desse modo, a confraria, o mestre junto de seus discípulos, mesmo que não faça muito pela filosofia, ao menos deixa para o próprio filósofo uma opção alvissareira, a de não ter que necessariamente se internar em uma clínica. Quem disse que isso é pouco?

Não tenho objeções ao propósito geral da passagem. Afinal, filosofar na solidão, não é mesmo aconselhável. Todavia, o que me intriga é a confiança depositada nos discípulos. Mutatis mutandis é o argumento de Pascal sobre a veracidade dos feitos de Jesus. Havia doze discípulos, e todos eles contaram igual história, seria difícil crer na possibilidade deles terem combinado uma igual mentira, em detalhes, para enganar a todos durante tanto tempo.

Assim, um filósofo sempre tem que esperar que, entre seus discípulos, exista aquele que não seja verdadeiramente um discípulo, e sim um opositor. Se todos forem discípulos, como requer o figurino, o filósofo e todo o grupo podem estar loucos. Irão passar uma vida acreditando em algo que, aos olhos de outros, é uma imensa bobagem. E convenhamos: um louco solitário é menos perigoso que um louco com doze loucos juntos, todos unidos pela mesma loucura.

Ter discípulo não garante nada ao filósofo. Ao contrário, pode ser efetivamente a chave para uma vida de pesquisas tolas. A passagem de Marilena Chauí poderia valer se, no seu conceito de discípulo, vingar a ideia de não-discípulo. É isso? Não, ela não deixa isso claro. Tudo indica que realmente ela vê o discípulo como um seguidor. Tudo indica que a confraria é o porto seguro para que o filósofo não adentre a clínica com ficha preenchida.

2.

No desdobramento dessa passagem sobre discípulos, Marilena Chauí deixa Alexandre Kojève para recorrer a Maurice Merleau-Ponty. Seguindo essa trilha, ela diz que o bom professor não seria aquele que diz ‘faça como eu’ e sim o que diz ‘faça comigo’. Bem, seria essa forma, então, a melhor maneira de educar o discípulo? Seria assim a formação do discípulo?

Ora, sabemos bem que isso não melhora às coisas, talvez até piore tudo. Alguém que começa a participar junto com seu mestre de atividades práticas, de engajamento em situações de vida, talvez esteja mais propenso à uma loucura conjunta, compartilhada, do que qualquer outro que apenas possa ouvir o mestre. A loucura espreita mais o praticante que o mero ouvinte.

Mestres militantes que transformaram seus alunos em militantes, ora, há algo mais propenso à loucura de grupos do que isso? Isso sem contar os que criam o grupo que se acha um não-grupo por conta de todos serem avessos ao coletivo, por todos serem anarquistas! O grupo de anarcocapitalistas-pessimistas é o maior grupo propenso a maluquices que conheço.

Talvez a melhor forma do filósofo não ficar louco, ou, se estiver caminhando para tal, ter alguma percepção de sua desgraça, não é ter discípulos, mas efetivamente não tê-los. Filósofos com claque podem ser confundidos com intelectuais pouco sérios, mas com claque. Aliás, não é raro vermos a deterioração do bons intelectuais por causa de suas claques. Bons pensadores, com o tempo, adquirem discípulos e, então, já não conseguem mais exercer um pensamento livre, começam a agir segundo o desejo inicial dele próprio, que se tornou o desejo perene e oficial do grupo, policiado pelos discípulos.

Vi professores inteligentes eliminarem de seus guarda-roupas as camisas de cor azul, pois haviam notado que seus discípulos o preferiam de camisa rosa e não de camisa azul. Não conseguiam mais sequer elogiar uma camisa azul, mesmo que vestindo outra pessoa. Até que um dia, já estavam avessos ao azul, com ódio mortal ao azul.

Na minha observação, os bons filósofos mudam de posição. Pensam diferente e podem pensar contra si mesmos. Eles não possuem discípulos. Eles derrotam seus discípulos ao mudarem de rota. Bons filósofos são aqueles que se seguram em montanha russa, deixando os discípulos sem o cinto de segurança, para que saiam pela tangente na primeira curva. Mesmo assim, acabam formando confrarias dogmáticas.

Os seus discípulos resolvem fatiar o pensamento do mestre e, dividindo-o em fases, aderem às sacrossantas verdades de uma fase. Não conseguem passar de discípulos a filósofos, a iguais, e se encalacram no desejo de serem eternos discípulos. Querem uma fase do ídolo que lhes convém, para acreditar, até venerar. O filósofo autêntico ri deles, e logo começa a preparar outra virada.

Como cachorro após banho, o filósofo vai se chacoalhando para lançar longe as pulgas mais renitentes, a pulgas que querem de toda maneira serem discípulas. Pulga discípula que gruda é justamente a que irá transformar o mestre em alguém parado no tempo e soterrado pelo espaço. Há cachorro com pulga de estimação.

3.

Marilena Chauí cita Sócrates, na sua sequência a respeito dos discípulos. Mas o que ela fala de Sócrates desconsidera que ele, a Mosca de Atenas, foi um excelente driblador de discípulos. Tanto é que tendências diferentes, até mesmo opostas, vieram a se declarar “socráticas”. Os estoicos se diziam socráticos e os céticos da Academia de Platão também se diziam socráticos. Tentaram ser pulgas renitentes.

Por sua vez, Sócrates se manteve singular (considerando-o aqui um personagem de Platão), com comportamentos tão díspares que obrigou os historiadores a discutirem quem seria o “Sócrates histórico” de Platão. Ora, talvez Platão jamais tenha pensado em escrever senão considerando um só Sócrates, mas com perfis diferentes, exatamente para não gerar discípulos.

Escrevi dois livros sobre o filósofo irriquieto de Atenas.[2] Infelizmente, quando estava envolvido nesses trabalhos, não havia ainda me caído nas mãos o incrível livro do professor Hector Benoit, já falecido. Seu livro se chama A Odisseia de Platão.[3] A ideia básica do texto é a de apresentar toda a obra de Platão não como um produto de textos capazes de se encaixarem nas clássicas fases da escrita do fundador da Academia, e sim como uma história da vida intelectual de Sócrates.

Assim, Hector Benoit se livra de questões que incomodaram filósofos como Donald Davidson e historiadores da filosofia como Gregory Vlastos. Não há que se perguntar se Platão, em determinado momento, se tornou pouco platônico, se ele teria ou não abandonado a célebre Teoria da Formas. O fundamental é seguir em reconstrução do percurso inteiro de Sócrates, na obra de Platão. Lembro aqui desse livro exatamente porque ele é, pelo que sei até o momento, o maior antídoto que se pode ter contra a visão de um Sócrates cultivador de discípulos.

Aliás, é um tanto enigmático que Marilena Chauí tenha desconsiderado, ao falar da necessidade de discípulos e ao mesmo tempo da figura de Sócrates, o quanto que este, em A apologia de Sócrates, aparece como aquele que desautoriza pretensos discípulos. No tribunal, Sócrates diz que sua forma de filosofar às vezes ficava ao sabor da imitação de jovens. Ou seja, Sócrates jamais autorizou alguém a se intitular filósofo ou discípulo seu. Tentavam segui-lo, mas apenas imitavam, sem brilho.

O certo é que a ideia de ter discípulos, seguidores, aparece como um chiste contra Sócrates. É na peça de teatro de Aristófanes que Sócrates se apresenta cheio de discípulos, como se fosse um simples sofista, e defensor de doutrinas idiossincráticas, até mesmo loucas. Aristófanes nunca quis outra coisa senão tratar os filósofos como engraçados, como loucos. Em uma coisa ele estava certo: quanto mais discípulos, mais o mestre podia ser tido como maluco.

*Paulo Ghiraldelli, filósofo, youtuber e escritor, é pós-doutor em Medicina Social pela UERJ. Autor, entre outros livros, de Capitalismo 4.0: sociedades e subjetividades (CEFA Editorial) [https://amzn.to/3HppANH].

Notas


[1] Filosofia, um modo de vida. São Paulo: Editora Planeta, 2025, p. 20.

[2] Dez lições sobre Sócrates (Petrópolis: Vozes, 2019) e Sócrates, pensador e educador (São Paulo: Cortez, 2015).

[3] Hector Benoit, A Odisseia de Platão. São Paulo: Anablume, 2017.

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