Por IVAN DA COSTA MARQUES*
A passagem de atribuições do Estado para o Mercado, que consolidou a aliança deste com a Ciência
Introdução
Este texto é um modesto desenvolvimento da ideia de que testemunhamos um deslocamento em que partes de atuações historicamente associadas ao ente “Estado” vem sendo assumidas por agentes privados associados ao ente “Mercado”, com especial atenção para situar o ente “Ciência” neste deslocamento. Sobretudo desde a segunda metade do século XX e continuando no século XXI, como Yanis Varoufakis não se cansa de denunciar, os Bancos Centrais chamados independentes (de quem?) reduziram o espaço de manobra das políticas econômicas nacionais.[1] Recentemente vimos Elon Musk “admitir ter suspendido serviços de satélites para impedir um ataque ucraniano” (a uma base russa).[2] São exemplos de diferentes calibres associados a um deslocamento naquilo que poderia ser grosseiramente chamado de “governança do global”.
Dividi o texto em três partes. A primeira parte focaliza a emergência de um “objeto novo” no século XXI: os dispositivos de identificação de corpos.[3] A partir do atentado às torres gêmeas em Nova Iorque em 11 de setembro de 2001 houve grande esforço político-tecnológico (científico) visando a pronta identificação de corpos terroristas. Isso abriu caminho para que hoje se possa (mas quem pode?) identificar “online” e em “real time” um corpo classificado, terrorista, estrangeiro, imigrante, criminoso, doente, vacinado, mestiço, “minoritário”, herege, analfabeto, ou indigente, quando ele aparece no espaço e tempo do global.
A segunda parte reconhece um espírito do tempo em que a Ciência, atualmente traduzida nas tecnociências, está escancaradamente presente na formação das opções dos destinos dos Estados.[4] Entram em cena os algoritmos (ciência da computação) das grandes empresas que são capazes de classificar os indivíduos em grupos de cuja formação esses mesmos algoritmos participam interativamente, facilitando ou dificultando aos mesmos indivíduos o reconhecimento de suas possibilidades, com a capacidade de fazer aparecer ou deixar esquecer propostas (sempre políticas) de novas maneiras de viver.
As duas primeiras partes traçam um quadro de consolidação de uma gradual aliança entre a Ciência e as grandes corporações privadas, às quais o senso comum se refere como o Mercado. É verdade que alguns prefeririam se referir a uma captura da Ciência. Mas se as relações entre o Estado e o Mercado receberam atenção desde longa data tanto na economia, na sociologia, na ciência política assim como na história da modernidade euro-americana, já é tempo de “situarmos” a Ciência como o terceiro ente mais sacralizado daquilo a que Eduardo Viveiros de Castro se referiu como a Santíssima Trindade Moderna: o Pai Estado, o Filho Mercado e o Espírito Santo Ciência.[5] Assim é que hoje pode-se argumentar que a aliança Mercado-Ciência está mais bem instrumentalizada do que os Estados, hoje ainda ditos democráticos, para acessar, interferir, construir, obstruir ou destruir, “coletivos de coisas e pessoas”.
Por fim, a terceira parte traz de fora do Ocidente uma crítica aos países que se autoafirmam como “modelos”, com os mais altos índices de desenvolvimento não somente econômico e tecnológico, mas também político, ou seja, enquanto democracias plenas: Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Vozes chinesas apontam o que consideram “defeitos genéticos” das democracias ocidentais.
Para concluir esta introdução cabe elucidar, e isto é crucial, que a direção que o texto destaca – a passagem de atribuições do Estado para o Mercado que consolidou sua aliança com a Ciência – não é algo que estava dado previamente na história. Esta direção não tem nada de natural. Os Science Studies nos ensinam que disputas pelas direções que as histórias tomam, em minúsculas ou longuíssimas durações, não estão garantidas de uma vez por todas e sempre envolvem disputas entre coletivos que imbricam coisas e pessoas numa “rede sem costura”.
A direção aqui destacada não é natural, mas sim resulta de um empenho persistente de coletivos que, em situações de grandes assimetrias e realidades incomensuráveis, mobilizaram vultosos recursos que acabam por torná-la obrigatória mesmo para aqueles que se opõem a ela. A finalidade deste texto é justamente ser um modestíssimo posicionamento contra a naturalização da tendência que testemunhamos, trazendo uma contribuição para que o que aqui será configurado seja problematizado e não se realize como uma “profecia autorrealizada”.[6]
De dedos sujos ao “duplo-clique”
A construção do mundo moderno está associada a um desfile de novos objetos e novos sujeitos. Apreendemos na colonização que a construção de conhecimentos sobre os “objetos” que habitam o “mundo das coisas-em-si”, a Natureza, deve ser separada da construção de conhecimentos sobre a Sociedade, o mundo dos “humanos-entre-si”. Isso é o que aprendemos na escola moderna. Mas uma nova natureza, uma natureza acrescida de objetos novos, não entra em cena sem uma nova sociedade. Trata-se de uma natureza-sociedade, uma “coconstrução”.
Por exemplo, ao emergir na chamada natureza, o objeto novo “micróbio” de Pasteur atuou e criou uma sociedade que lhe corresponde, com novas identidades que baralharam hierarquias antes estabelecidas. Um tipo diferente de solidariedade… emergiu quando o filho de um riquíssimo senhor poderia morrer porque a paupérrima criada era portadora do bacilo da febre tifoide. (Latour, 1989/1996, p. 191).
Doentes contagiosos, pessoas saudáveis, mas perigosas portadoras de micróbios, pessoas imunizadas, pessoas vacinadas etc. afetaram as hierarquias do corpo tais como antes criadas pelas categorias sociais “rico” e “pobre”.
Um objeto novo cria ∕ modifica hierarquias e constrói junto com as pessoas uma nova natureza-sociedade acrescida de sua existência. Influentes historiadores da ciência afirmam em estilo laudatório à marcha da modernidade euro-americana que “[o] único ingrediente da modernização que é praticamente indispensável é a maturidade tecnológica, com a industrialização que a acompanha; caso contrário, o que se tem são os adornos sem a substância. a aparência sem a realidade. … Foi preciso haver a Revolução Industrial para que o chá e o café, a banana da América Central e o abacaxi do Havaí se transformassem em alimentos do cotidiano. O resultado foi um enorme aumento da produção e da variedade dos bens e serviços, e isso, por si só, mais do que qualquer outra coisa desde a descoberta do fogo, modificou o estilo de vida do homem: o cidadão inglês de 1750 estava mais próximo dos legionários de César, em termos de acesso às coisas materiais, do que de seus próprios bisnetos.” (Landes, 1994, p. 10).
A história e os Science Studies das últimas décadas mostraram robustamente que, assim como o micróbio, os objetos novos, sejam eles a banana ou o caviar russo, o açúcar ou as drogas sintéticas, ou ainda o celular da Apple ou da Motorola, criam e modificam, fazem e desfazem hierarquias.
Na primeira década do século XXI, surgiu um objeto novo dedicado à identificação dos corpos humanos, o dispositivo que hoje estamos acostumados a ver nos guichês de imigração de portos e aeroportos mundo afora. Como todos os dispositivos, ele surge a partir de uma demanda. No caso, a demanda partiu do irresistível interesse pela identificação de um corpo terrorista após o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York.
O que faz esse novo dispositivo? Ele amarra e junta fortemente o que antes marcava os limites tradicionais e “naturais” dos corpos humanos (como a pele, feições faciais, impressões digitais, íris etc.) e os bancos de dados “sociais” das instituições (como nome, endereços, profissões, históricos financeiros, médicos, escolares e policiais, filiações institucionais etc.) a ponto de compor um novo corpo. Essa junção, uma vez disseminada mundo afora, torna obsoleto o venerável corpo humano, a antiga cidadela fortificada de nossas identidades e privacidades.
O novo dispositivo deu uma volta a mais no movimento em direção a um mundo de, digamos, ciborgues propriamente ditos, onde os corpos imediatamente – ou mediatamente – afetam e são afetados pelos bancos de dados das instituições (Latour, 1991/1994). A polícia, os militares e outras instituições, médicas, comerciais ou industriais, passam a fazer parte integrante de nossos corpos, não mais metaforicamente, como dizíamos, mas literalmente. Assim como o micróbio de Pasteur, esse novo objeto desloca e redefine o que se poderia chamar de “zonas de contato” entre o corpo na natureza e o corpo na sociedade no mundo (natureza-sociedade).
A Figura 1 corresponde a um corpo e uma territorialidade onde a passagem dos elementos “naturais” (impressão digital, íris, DNA) para elementos “sociais” (nacionalidade, criminalidade, acesso) era lenta, precária e relativamente cara. Em termos da engenharia de comunicação e da ciência da computação, tratava-se de uma “faixa de passagem” estreita entre a natureza no corpo e a sociedade no corpo.
A Figura 2 ilustra o aumento dessa faixa de passagem com a substituição da tabuinha com tinta por um sensor eletronicamente conectado a um computador que, por sua vez, está integrado ao conjunto de arquivos que armazenam as informações sociais.
A Figura 3 ressalta que o trânsito por essas faixas de passagem alargadas é controlado e regulamentado por grandes instituições, públicas ou privadas, na área policial, militar, médica, educacional, financeira etc. Individualmente transitamos por essas faixas com as nossas senhas a que estamos prosaicamente acostumados pela comodidade que oferecem. Mas quem tem acesso e controla a estrutura onde nossas senhas transitam?
A Figura 4 invoca novas territorialidades em que surgem novos corpos afetados e trazidos pelos novos dispositivos de identificação, sugerindo a diluição da antiga fronteira entre Natureza e Sociedade, tais como eram entendidas na modernidade, substituída por um fluxo interativo ainda sem formas muito estabilizadas.
Os dispositivos que trazem para o mundo (“realizam”) essa transformação dos dedos sujos ao duplo clique resultam de um processo de negociação (pesquisa) entre o que os coletivos com recursos (Estado, Mercado) desejam e o que as coisas se prestam a fazer (Tecnociência) (descobrir isso é justamente o trabalho da engenharia contratada pelas empresas). Resulta que a ciência reside no mercado, na forma das equipes de especialistas empregados das empresas e da propriedade intelectual das empresas desenvolvedoras, que constituem o coletivo de coisas e pessoas fornecedor do dispositivo.
Governança: do Estado para o mercado aliado à ciência
As formas que os objetos novos vão adquirindo, sejam eles cartões holerite, identificadores de corpos humanos, mísseis balísticos, videocassetes ou dispositivos gerenciadores das “redes sociais”, resultam de um processo em que coletivos com diferentes visões de mundo ou, digamos, diferentes opções de dispositivos, disputam as possibilidades do que os engenheiros podem materializar.
Disputas pelas direções da ciência acontecem em escalas muito variadas, de minúsculos laboratórios ou departamentos em universidades, até instituições gigantescas. Elas podem mobilizar vultosos recursos e ser muito assimétricas, envolvendo coletivos muito díspares, tais como correntes intelectuais, movimentos sociais, empresas e países.
Lembramos acima que mísseis balísticos mais precisos ganharam existência no mundo a partir da visão de mundo de poderosos coletivos militares nos EUA e na URSS durante a Guerra Fria, coletivos muito mais poderosos do que aqueles que os movimentos pacifistas puderam mobilizar. Em menor escala, por exemplo, aconteceu a disputa pela padronização da tecnologia de videocassetes na década de 1980. A Sony defendia a superioridade técnica do padrão BETAMAX, mas o popular VHS (“Video Home System”) da JVC (Japan Victor Company) acabou vencendo.
Houve uma fase de encantamento com os novos objetos trazidos por corporações tipificadas pela Google, Amazon, Facebook e Apple. Essas corporações eram vistas como fadas madrinhas, trazendo facilidades e comodidades antes inimagináveis, veículos para novas maneiras de viver o cotidiano. Mesmo no Brasil, onde a disponibilidade e a qualidade das novas comodidades variam enormemente e nem sempre se concretizam tão bem (para quem?), elas gozavam e ainda gozam de grande prestígio.
O fato é que, apesar disso, assim que ficou claro que elas se assumiram institucionalmente como corporações privadas e seus dirigentes revelavam suas ideologias, surgiram algumas dificuldades. De marcas admiradas, de oásis sonhados onde trabalhar, elas passaram a ser vistas também como uma ameaça à neutralidade da internet, à privacidade das pessoas, aos direitos trabalhistas e dos consumidores e à soberania dos Estados. Elas praticam a evasão de impostos; elas submetem os trabalhadores a condições desumanas; elas invadem a privacidade; elas vendem as suas informações; elas têm práticas monopolistas; elas influenciam as eleições etc.
Os Estados podem e estão reagindo. As condições de trabalho por elas impostas podem e são denunciadas e a partir daí algumas melhorias são alcançadas. Elas vão enfrentar e estão enfrentando processos à luz das leis antitrustes. É claro que a venda de bancos de dados, assim como de serviços de assessoria nas eleições, pode ser mais bem regulamentada. Pode haver e está havendo maior divulgação, explicação inteligível e conscientização do que você está cada vez mais frequentemente permitindo fazer com seus dados quando você, por comodidade, concorda que essas empresas podem fazer “uso legal” de suas informações, que pode ser definido de forma a ser bem diferente de “uso ético”.
Sim, tudo isso é verdade, ou pelo menos parcialmente verdade, havendo variações entre uma corporação e outra devido também aos tipos de produtos que oferecem. Não se trata, no entanto, somente do volume descomunal de recursos financeiros mobilizados por essas empresas. A escala, a abrangência e capacidades inéditas de criar relações e vincular informações armazenadas na maquinaria global de computação e considerar/dirigir/induzir relações e vínculos em redes sociais mostram a vantagem específica que gradativamente a ciência granjeou para quem a detém.[7]
Especialmente desde o final do século XX, a dificuldade do Estado acomodar-se no mundo digitalizado é maior do que a do mercado e a da ciência, que parecem já saberem quais novas posições buscar. A ideologia de Thomas Watson e Valentim Bouças há cem anos é rigorosamente a ideologia de todo um bloco de capital que opera mundo afora em nome do Mercado: “pensar ‘internacionalmente’ não é de maneira alguma diferente de pensar ‘somente’ no negócio ou dinheiro.” (Perold, 2020, p.29)
O mercado não atua sozinho e, como já dito, não é moralmente contra associar-se ao Estado. Se o mercado precisa de ajuda para construir uma internet confiável, ou se o Estado entende o valor de uma maquinaria de computação eficaz para os seus próprios objetivos de controle, como no caso do controle do deslocamento de corpos, então o Estado ajuda a desenvolver e consolidar a ciência que será propriedade do mercado e nele residirá, isto é, estará incorporada nas estruturas administrativas das corporações.
Os engenheiros das corporações definem e detêm os conhecimentos da arquitetura do hardware-software da maquinaria global de informação instalada no planeta e o Estado passa a depender do Mercado para compor os enquadramentos onde situar suas ações, passada a época em que o Mercado precisou do Estado para construir a plataforma de lançamento da maquinaria de informação que lhe é própria.
A arquitetura do hardware-software da maquinaria de informação não determina somente o que se pode e não se pode fazer em termos de coleta e tratamento de informação. A arquitetura do hardware-software determina também quais comportamentos podem ser facilmente monitorados e policiados e quais comportamentos exigem pesquisas difíceis e caras para serem descobertos e identificados. Talvez o exemplo mais conhecido de dificuldade de rastreamento seja a incorporação de preconceitos racistas nos dispositivos de inteligência artificial da Google, uma vez que a preocupação de identificar e rastrear esses comportamentos não fazia parte da arquitetura da maquinaria da Google que operava o produto-aplicativo que organizava os álbuns de fotos (Vincent, 2018; Cafezeiro et al., 2021).
A contemporaneidade do século XXI trouxe outra diferença importante em relação ao que predominou no século XX: muito do que precisa ser regulado diz respeito ao ciberespaço e não ao espaço das leis e regulamentos do Estado moderno do século XX, o que descortinou uma demanda para uma nova regulamentação legal já há mais de duas décadas: “O aparecimento de um meio eletrônico que ignora fronteiras geográficas desarticula a lei ao criar fenômenos inteiramente novos que precisam se tornar o objeto de regras legais claras, mas não podem ser governados, satisfatoriamente, por qualquer soberania atualmente baseada em território”.[8]
Quando lhes interessa, as corporações privadas podem adentrar o sistema jurídico em pé de igualdade com os Estados ou governos, mas elas não estão sujeitas às mesmas limitações. Aliadas à Ciência, elas podem atuar e lucrar mobilizando os mais diversos assim chamados interesses técnicos-políticos, em comunidades e serviços para pessoas em todo o mundo. O mercado e a ciência encontraram maneiras de escapar das restrições de estarem atreladas a um único Estado. A fronteira entre o Estado e as grandes corporações privadas que constroem a ciência perdeu sua nitidez. Decisões tomadas no âmbito privado de grandes corporações e seus códigos de ética influenciam decisivamente destinos políticos.
Ao mesmo tempo, mercado e ciência estão se tornando entes mais qualificados do que os Estados em alguns dos principais componentes da governança moderna. Em sua maioria, vendem seus produtos, sua reputação, e a ideologia (modo de viver) defendem mais eficazmente do que os políticos ou partidos políticos constituintes do Estado. As grandes empresas, onde se fundem mercado e ciência, também conseguem reivindicar lealdade de uma forma que costumava ser a província do Estado nação moderno.
A fidelidade à marca não é inteiramente nova, e as pessoas podem se identificar como um “cidadão IBM” ou um “usuário Apple”. Mercado e ciência estão encontrando, por meio das mídias sociais, novas maneiras de oferecer identidade, comunidade e serviços em grande parte desvinculados da geografia, o que, para os nômades digitais, faz mais sentido do que as burocracias territoriais dos Estados.
Em 2012, surgiu na França o acrônimo GAFA para se referir, usualmente em tom crítico, às corporações multinacionais norte-americanas Google, Amazon, Facebook e Apple (Chibber, 2014). O mercado e a ciência proporcionam a essas corporações uma capacidade de atuar para além da capacidade dos Estados, ao se munirem de uma diferença adicional crucial, ou seja, a capacidade de atuar “de volta” sobre os coletivos que se distribuem em “bolhas” nas redes sociais. Desse modo a atuação dessas corporações vai além da sua capacidade dita “técnica” (científica) que antecede a capacidade dos Estados de conhecer a população através de coleta, classificação e mineração de informações. As corporações se capacitaram “tecnicamente” (cientificamente) para atuar sobre as “bolhas” que se distribuem sociedade afora, o que é uma atuação propriamente “política”.
A universalidade, neutralidade e objetividade da ciência foram há décadas questionadas pelos Science Studies. O cerne da trindade moderna Estado-Mercado-Ciência está tensionado por ideologias. No Ocidente, o acúmulo residente na maquinaria planetária de informação proporciona capacidades superiores àquelas de pelo menos a maioria dos Estados e está incorporado em um número muito reduzido de gigantes com posturas ideológicas identificáveis: GAFA (Google, Apple, Amazon, Facebook), às quais se pode adicionar a Microsoft e SpaceX. Sergey Brin e Eric Schmidt (Google), Travis Kalanick (UBER), Peter Thief (PayPal), Elon Musk (Tesla/SpaceX) têm posturas ideológicas “libertárias” que ressoam ao “Objetivismo” de Ayn Rand que influenciou diretamente Steve Jobs, Alan Greenspan e Donald Trump (Paraná, 2020, p. 102-121).
O princípio social básico da “ética objetivista” é que, assim como a vida é um fim em si mesma, assim também todo ser humano vivo é um fim em si mesmo, não o meio para os fins ou o bem-estar dos outros — e, portanto, que o homem deve viver para seu próprio proveito, não se sacrificando pelos outros, nem sacrificando os outros para si […] A ética objetivista orgulhosamente advoga e defende o egoísmo racional … os valores exigidos pela vida humana não são os valores produzidos pelos desejos, emoções e “aspirações”. (Rand, 1991, p. 42)
Vozes de fora do Ocidente
Em meio ao projeto político tipificado pela GAFA, situa-se, fora do Ocidente, algo aparentemente ainda por decifrar, o Estado Chinês. A denominação BATX (Baidu, Alibaba, Tencent, Xiaomi), uma lista que pode ser acrescida pela Huawei, já foi indicada como espelhando a GAFA ocidental (Chevré, 2019). Vozes chinesas dissonantes passaram a ser mais audíveis, especialmente quando se trata da maquinaria de informação em escala planetária.
A infraestrutura 5G não é uma simples atualização de geração em relação à 4G. Não só a comunicação na 5G é mais rápida e a latência de cada transação muito menor, o que permite o controle remoto em tempo real (online, real time) de processos que exigem respostas rápidas (como cirurgias à distância). Também as baterias são de duração muito mais longas, e aí está também uma grande transformação, relativa às possibilidades de componentes na maquinaria de informação que permitem intervalos muito mais longos entre as intervenções para manutenção.
A infraestrutura 5G suporta uma descentralização dinâmica da chamada “nuvem”. Ou seja, as transações ao redor de um lugar vão gerar um ponto de suporte de nuvem local. Isto permite uma quantidade praticamente ilimitada de sensores baratos conectados em virtualmente todas as coisas, desde automóveis, equipamentos em fábricas e escritórios, aparelhos médicos e cirúrgicos, eletrodomésticos etc. até bancos de um ônibus. Sem dúvida, a infraestrutura de quinta geração do ciberespaço, a 5G, irá não só dentro de algum tempo mudar radicalmente o cotidiano do relacionamento de muitas pessoas entre si e com as coisas, como será também uma fonte literalmente fantástica de informações sobre a população.[9]
É justamente essa fonte literalmente fantástica de informações sobre a população que tem mobilizado o Ocidente, comandado pelos EUA, contra a China, atualmente mais bem posicionada como fornecedora de equipamentos 5G. Segundo a BBC, por exemplo, a acusação é baseada na seguinte lógica: “se toda a sociedade estiver interconectada usando equipamento de uma empresa chinesa — o que incluiria sistemas de trânsito, de comunicação ou até mesmo de eletrodomésticos “inteligentes” dentro dos nossos lares — todos nós estaríamos vulneráveis à espionagem pelo governo da China. A Huawei é uma empresa privada, mas uma lei de segurança aprovada pela China em 2017 permite, em tese, que o governo de Pequim exija dados de companhias privadas, caso a necessidade seja classificada como importante para a soberania chinesa.[10]
Não resisto a provocar dizendo que não vejo razão para que nós brasileiros nos sintamos mais vulneráveis à espionagem da China do que àquela da GAFA ou do governo americano, embora a colonialidade no Brasil vá fazer com que, eu creio, venham a discordar de mim.
Para finalizar e completar essa provocação, reproduzo uma voz chinesa que questiona o ritual político e a capacidade de reforma do sistema de governo de nossa principal metrópole, os EUA.
Zhang Weiwei é ex-assessor de Deng Xiaopeng, o ex-premier chinês. Ele é professor de relações internacionais na Universidade Fudan, uma universidade pública de alto prestígio em Shanghai e pesquisador sênior do Instituto Chunqiu. É autor do influente bestseller The China Wave: Rise of a Civilizational State publicado inicialmente em mandarin (Zhang, 2012)
Vejamos os pontos que Zhang Weiwei chama de “defeitos genéticos” do modelo Ocidental:
(i) A suposição (ocidental) de que os seres humanos são racionais pressupõe que eles podem exercer a razão para fazer escolhas racionais ao votar. Mas até agora, todos os estudos científicos relevantes provaram que os humanos podem ser racionais e irracionais e até ultrairracionais. “A ascensão das mídias sociais forneceu um terreno fértil para a disseminação da irracionalidade.”
(ii) O conceito exagerado de direitos individuais e o declínio das responsabilidades individuais também são um problema. Existem tantos direitos, cada um dos quais exclusivo e absoluto, muitas vezes levando a um conflito de direitos.
(iii) A crença na importância procedimental nas democracias ocidentais é admirável, mas na prática tem prejudicado a capacidade de funcionamento do governo. A democracia ocidental evoluiu para uma democracia procedimental e, uma vez que o procedimento seja considerado correto, não importa quem chega ao poder. “A democracia ocidental foi atolada pela importância processual.”[11]
O diretor americano John Pilger entrevistou Zhang Weiwei em seu filme documentário, The coming war on China,[12] de 2016: “Se a BBC transmite algo [sobre a China], fica feliz em sempre mencionar essa ditadura comunista, essa autocracia. Na verdade, com esse tipo de rótulo, você não pode entender essa China como ela é. Se você assiste a BBC ou a CNN ou ler a Economist e tentar entender a China, será um fracasso. É impossível”.
Ele desafia a que se aponte um país que tenha feito nas últimas décadas mais reformas do que a China fez com um só partido. Nos EUA, ele provoca, há dois partidos, mas não há reformas de fato porque o econômico sempre se sobrepõe ao político e isso impede as reformas já no nascimento, o que não acontece na China porque o partido prioriza o político sobre o econômico.
A próxima seção resume uma seleção do debate realizado logo após a palestra do autor versando sobre os temas acima expostos, realizada no Instituto Tecnológico de Aeronáutica.[13]
O debate – dessacralizando a santíssima trindade moderna
[audiência] O autor Zhang Weiwei, cujas teses o senhor nos apresentou, contrapõe a China ao Ocidente. Mas ele não estaria em sua crítica ao Ocidente acobertando os problemas do modelo chinês de sociedade? Não estaria ele fazendo uma apologia do modelo Chinês?
[Ivan] Certamente Zhang Weiwei faz apologia do que está acontecendo na China. E certamente a gente não deveria escrever em pedra o que ele está dizendo. Mas o que a nós brasileiros interessa é principalmente o que ele diz sobre o Ocidente, sobre as democracias ocidentais, as metrópoles que nós não cansamos de imitar. O Ocidente não consegue mais se reformar, diz ele. O Ocidente está preso numa visão linearizada de progresso. O Ocidente tem uma maneira de viver e não está disposto a modificar essa maneira de viver, e isso implica numa maneira de organizar o mundo (seu e dos outros). O Ocidente tem certas hipóteses, pode-se dizer são as hipóteses do projeto Iluminista, e o que Zhang Weiwei diz é que essas hipóteses estão furadas.
Basicamente o Ocidente coloca a chamada Razão, que é uma razão histórica, uma razão europeia, uma razão qualificável e não absoluta, como o meio, o dispositivo, chega a ser o mecanismo mesmo que por excelência vai resolver como os humanos vão viver entre si, como vamos nos organizar enquanto sociedade e enquanto mundo. Isso porque, anteriormente era o pensamento religioso, eram as escrituras, era a bíblia que organizava o mundo dos homens-entre-si. Com o projeto Iluminista sai Deus e entra a Razão. Deus deixou de ser o elemento social organizador e passou habitar o foro íntimo de cada um. Eu tenho a minha religião, você tem a sua. Mas a escola dos nossos filhos não vai ensinar nem a minha religião, nem a sua. Veja o laicismo francês de hoje, que não tolera símbolos e vestimentas de identidade religiosa nas escolas.
Então a vida no Ocidente passou gradativamente a ser organizada pela Razão, e essa Razão foi apresentada a nós, colonizados, como uma coisa universal, inerente a todos os humanos, todos os homens e, depois, todas as mulheres. Esse projeto já dura alguns séculos e construiu coisas admiráveis. Levou o homem à Lua. Mas essa Razão não é a única razão nem necessariamente a melhor para organizar exclusivamente a nossa vida. O projeto Iluminista desaguou pelas críticas de Zhang Weiwei. É claro que ele está fazendo também uma apologia do que está acontecendo na China como inspiradora de alternativas.
Ele diz, se você ouve a BBC, ou se você ler The Economist você não entende a China, você não vai entender a China. Pode ler quantas vezes quiser. O Ocidente vê a China como uma ditadura que também pode ser vista como uma caricatura inversa da imagem democrática que ele cultiva de si mesmo. Weiwei provoca afirmando que é muito difícil para os ocidentais dizerem que um modelo dito democrático pode não ser bom, e com isso eles erram. Os ocidentais têm hipóteses que são “defeitos genéticos”. “Nós estamos fazendo”, diz Weiwei, “muito mais reformas do que vocês.” O livro dele vai por essa linha de argumentação.
[audiência] Como você avaliaria o modelo chinês, em discussão, com relação a elementos do materialismo histórico de Marx, da experiência do totalitarismo e da ditadura?
[Ivan] Todas essas visões, tanto o marxismo quanto o liberalismo, e a ideia de totalitarismo, de democracia em oposição à ditadura, são visões do modo de existência euro-americano. Não quer dizer que elas sejam tão somente constructos ardilosos, que não construam uma “realidade”, ou que não possamos aproveitar uma parte de tudo o que foi construído na modernidade euro-americana. Isso é um tema cáustico. Os Science Studies nos ensinam que “todo o conhecimento é situado”, isto é, quando você conhece algo, este algo que você conhece nunca é absoluto, universal, neutro e objetivo, como a colonização europeia nos diz, especialmente em relação aos conhecimentos científicos.
Em contraposição, os Science Studies mostram que todo conhecimento está sempre situado em certos referenciais, certos enquadramentos; é como se o conhecimento tivesse um “território” (aqui significando não só espaço, mas também tempo) de validade. Então o conhecimento depende do seu tempo e de onde você esteja – Paulo Freire também diz isso. Essa abordagem dos Science Studies contradiz as hipóteses teleológicas das teorias de Marx a partir da ideia de um desenvolvimento natural e até necessário na direção de certo comunismo.
Mas por outro lado, no campo dos Science Studies, uma crítica de conotação marxista situada nos espaços e nos tempos de hoje pode ser plenamente válida. Em suma, há no Marxismo partes que, em algumas situações, são robustas e mobilizam um grande potencial transformador, mas em outras não têm o mesmo apelo. E me parece que você poderia analisar a relação China-Marxismo por aí.
[audiência] Sua fala faz as mediações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, e essa temática nos é muito importante. Muitos de nós professores trabalhamos com isso. Quando você fala de capitalismo monopolista, e o poder dos grandes conglomerados, é uma discussão que vem desde o século XIX e se atualiza ao longo do século XX. Ernest Mandel, entre outros, mostra como o capital está imbricado no Estado e tem uma influência muito grande nas decisões políticas. A gente pode pensar a partir da crise de 2008, pode-se pensar a hipótese de estarmos vivendo hoje uma nova reestruturação produtiva da manufatura avançada. Então temos os aspectos de trazer rendas tecnológicas e um aprofundamento de competitividade e quem tem feito isso justamente são os estados mais desenvolvidos, a Alemanha com a indústria 4.0, os EUA, a China.
Você falou da Inteligência Artificial e esse grupo de tecnologias que hoje nós temos como avançadas e sobre o poder de desenvolvê-las. E aqui no Brasil a gente percebe o movimento nacional de mimetizar esses desenvolvimentos, algo que a gente sempre fez. Mas por outro lado, a gente ouve uma voz aqui ou acolá dizendo que nós temos singularidades e que nós podemos nos aproveitar delas para o nosso desenvolvimento. Como construir uma via alternativa, tanto tecnológica, quanto científica e epistemológica, olhando para as nossas singularidades? É possível fazer, dar esse salto, sem mimetizar como a gente tem feito cotidianamente?
[Ivan] É claro que eu sou incapaz de responder a essa pergunta de maneira minimamente satisfatória para quem tenha a expectativa de uma resposta que seja diferente de uma aposta. E aí eu começaria dizendo que essa aposta-resposta não pode vir de uma pessoa. Ela poderá vir sim, e aí minha aposta-resposta é otimista, da inclusão da diversidade brasileira em múltiplas situações, desde pequenas e pessoais até na escala de políticas públicas. Para dar um exemplo que diz respeito diretamente à academia, a instituição de cotas. Nós temos que colocar a população brasileira, a maioria pobre, na educação, na escola, na universidade. Acesso é certamente parte da aposta-resposta. Mas por que digo que é uma aposta? Qual é o perigo disso?
Quanto mais escolarizados nós somos, mais vítimas potenciais do projeto colonizador podemos nos tornar. A escola, tal como ela é hoje, é o grande instrumento de reprodução da colonialidade. Então, acesso à escola, sim, mas qual escola? Qual universidade? Não é uma pessoa que vai dizer. A aposta é que as chances de transformação aumentarão se a direção tomada for a da inclusão de modo a ter toda a diversidade brasileira com voz na construção de conhecimento. Por aí é que nós vamos, quem sabe, nos aproximar de uma resposta ao desenvolvimento que não seja a mimetização acrítica do Ocidente, mas que leve em conta o que o que nós temos aqui.
Neste ponto, outra questão cáustica, mas certamente necessária, relaciona-se a fazer a crítica (autocrítica) da intelectualidade brasileira, que ainda não foi capaz de dignificar os saberes locais populares que poderiam propor, mesmo sem garantias de sucesso, alternativas parciais ao projeto iluminista. Desenvolvimento não é necessariamente sinônimo de crescimento econômico. A ciência e a tecnologia não precisam ser estudadas e entendidas na camisa de força do “modelo de difusão” que nos coloca na posição de “seguidores”.
Existem intelectuais brasileiros rebeldes que não se submetem a esse modelo de entendimento do que é ou pode vir a ser desenvolvimento. Eles procuram e propõem alternativas, mas infelizmente não são normalmente os que falam mais alto para mais gente. Para citar um exemplo, Paulo Freire. Ele é uma pessoa que diz que o conhecimento é situado, que se pensa a partir do lugar onde se está.
Faz parte do otimismo da aposta-resposta a expectativa de que prosperem as contribuições de intelectuais indígenas e negros, que podemos ver aumentando – esperemos que já como um resultado do espírito do tempo que também trouxe as cotas. Eles estão talvez mais bem situados para trazer os elementos para quebrar o mimetismo imbuído em nossa colonialidade.
[audiência] Está claro que nós, no Brasil, precisamos focar em nossas próprias singularidades. Ao mesmo tempo, mimetizações e engenharias reversas sempre foram meios estratégicos de desenvolvimento para todos os países. Assim a Suíça o fez com a indústria farmacêutica, imitando Alemanha e França, a Coréia o fez, o Japão o fez, importando coisas da China e mais tarde do Ocidente, e depois reproduzindo as mesmas coisas modificadas e melhoradas com a sua própria marca e identidade nacional. Como você vê esse potencial no Brasil hoje, de reinventar as imitações, para além da dicotomia estrangeiro versus genuinamente brasileiro?
[audiência] Projetos de poder, como atualmente na China, não passam apenas pela tecnologia ou pelo capital como formas de poder. Eles envolvem a questão da cultura o quanto a cultura importa e o quanto é uma forma de poder. Devido às questões do cotidiano. E a história das mentalidades. E a China tem uma mentalidade, uma forma de pensar e de agir muito diferente da nossa. Isso, muitas vezes, a gente não consegue entender. A China está abrindo escolas de mandarim no mundo inteiro, a exemplo de como o fizeram as potências coloniais, a França, a Alemanha.
A China está fazendo acordos bilaterais com universidades brasileiras, mandando professores universitários qualificados para aprender e ensinar o Mandarim dentro das Universidades. Quando se trabalha com Cultura, a gente sabe que a colheita vem num prazo maior, essa colheita não é imediatista. E há uma série de outros projetos aí, para a disseminação da cultura. Eu entendo a China hoje como uma potência, e ela vem se direcionando através dessa política cultural. Qual a sua leitura a respeito dessa questão?
[Ivan] A minha metáfora preferida a respeito da primeira pergunta, e que tem tudo a ver com engenharia reversa, é a antropofagia. É deglutir o estrangeiro para absorver dele o que ele tem de bom. Não se trata, de jeito nenhum, e seria mesmo impossível, jogar fora todos os saberes que são estrangeiros, especialmente aqueles que compõem o gigantesco edifício dos saberes euro-americanos que decorreram do projeto iluminista, e ainda mais especificamente as ciências e tecnologias euro-americanas.
Acredito que as contribuições das tradições dos povos indígenas e dos negros sejam imprescindíveis para a superação da colonialidade no Brasil, mas reconheço que na construção de novos brasis não seria possível viver somente a partir de conhecimentos decorrentes dessas tradições. Eu acho que Ailton Krenak, por exemplo, se posiciona sobre essa questão ao dizer “eu não quero viver num apartamento trancado num edifício vertical … eu não quero ter um horário exato”. Ele diz tudo o que ele não quer do Ocidente. E ele tem muita sabedoria, ele tem muita coisa a dizer para novos brasis, mas eu acho que a gente tem que comer o ocidente, extrair dele o que ele tem de bom e a engenharia reversa provê alguns talheres para esse banquete antropofágico.
A engenharia reversa desagua nas relações entre tecnociência e direito. Se você quiser fazer engenharia sem recorrer a uma certa “engenharia jurídica” você está fadado ao fracasso. Nas universidades, por exemplo, as escolas de engenharia e as de direito deveriam estabelecer áreas comuns. Não adianta você juntar aqui no ITA trinta engenheiros e fazer um projeto de um celular brasileiro. Não vai conseguir fabricar, porque seu projeto será judicializado sob acusação de infringir essa lei aqui, infringir aquela lei ali com componentes que não poderia usar etc. Você tem que ter essa capacidade tecno-jurídica-política, do contrário você vai dar com os burros na água!
Na questão da cultura, o que eu ouço dizer é que os chineses têm uma abordagem bastante diferente do Ocidente, porque o Ocidente historicamente sempre teve um ímpeto colonizador, tanto na parte econômica quanto na parte religiosa e cultural. O Ocidente fez a catequese. Ao chegar na América, os Europeus discutiram se os índios tinham alma ou não, se eram humanos ou não. Se eles tinham alma, então eles tinham que ser catequizados, tinham que ser “salvos”.
Já os chineses não têm um histórico de exportação de uma pretensão civilizatória como o Ocidente. O que ouço é que eles não fazem isso. Eles não têm nenhuma pretensão de interferir no modo de vida, exceto pela intenção comercial. Eles querem fazer comércio. Mas eles não querem te convencer para você ser católica ou protestante, ou budista, não há têm nenhuma política chinesa nesse sentido. Inclusive na África onde eles estão construindo muita coisa de infraestrutura, não há interferência no modo de vida, no modo de pensar. Agora, ensinar mandarim, você pode fazer isso com diversas finalidades.
Eu também acho o seguinte. A China, por mais que Weiwei faça a apologia da China, eu acho que lá as coisas não estão definidas. Parece que tem uma quantidade grande de milionários chineses que estão no Partido Comunista. Não se sabe para onde que a China vai. Mas do lado cultural parece haver uma diferença muito grande entre esse ímpeto civilizatório ocidental e a maneira com que os chineses se aproximam de outras culturas.
[audiência] Você que estudou aqui nessa alma mater, o ITA. O sistema de organização da humanidade parece que está se esgotando. E se um sistema se esgota, a gente aprendeu isso aqui, e muito bem, ele vai ser substituído por outro. E pensando o Brasil não como Estado, mas como a nação brasileira, ou seja, nós que habitamos aqui e produzimos e geramos aqui nesse contexto global. Os iteanos já mostraram isso há décadas, eles vão lá e fazem, um exemplo de entrega impressionante. Mas também um desafio. Há espaço para o Brasil ser protagonista no mundo?
[audiência] Eu gostaria de fazer uma provocação, no sentido maroto da palavra. A gente tem vivido no Brasil um processo de reversão. No final dos anos 1980 o parque industrial brasileiro era maior que o da China, e maior que o da Coreia. Hoje a China está lançando estações espaciais. E nós estamos transportando soja para a ração de porcos chineses. Como é possível sustentar um projeto desenvolvimento, e de engenharia reversa, num país em que as classes dominantes brasileiras preferem jogar dinheiro na roda da fortuna dos juros, e perfurar petróleo na bacia da Amazônia para transformar o rio Amazonas num igarapé. E não investir em ciência, educação e tecnologia.
Ou precisa acontecer aqui uma Revolução Francesa? Porque não teve uma revolução no Brasil. Enquanto as repúblicas espanholas na América Latina estavam declarando independência por meios revolucionários, e o modelo mais moderno naquela época era os Estados Unidos, o antigo regime de Portugal veio da Europa para o Brasil e se instalou aqui. A coroa portuguesa é o antigo regime. A gente tem que lembrar isso. A gente nunca teve uma revolução nem democrática e muito menos social.
[Ivan] Começando pela sua provocação eu acho que muita gente ia dizer que a gente precisa não de uma Revolução Francesa, mas uma revolução brasileira. Porque a Revolução Francesa é a que está morrendo. Nós estamos vivendo os escombros da Revolução Francesa. Foi ela que direcionou a ideia de ciência e tecnologia ocidentais, a filosofia ocidental, a separação entre o mundo dos homens-entre-si (sociedade) e o mundo das coisas-em-si (natureza). É a Revolução Francesa que criou esse modo ocidental de ser, de viver, de existir. Tem também as pessoas que vão dizer, olha, a revolução brasileira como uma revolução é impossível.
Nós temos uma elite com poderes enormes. Ela é muito habilidosa em interromper qualquer processo mais inclusivo. Mais ou menos, de 30 em 30 anos, quando entra em marcha um movimento mais libertador, vem uma interrupção violenta neste processo, mesmo que não se saiba muito bem para onde que ele vai, ou talvez por causa disso. Ou, pelo menos, uma tentativa de interrupção. Até agora, historicamente, as interrupções não deixaram de acontecer.
Então existe uma possibilidade, eu acho, de outra resposta à revolução, de uma maneira muito brasileira, e marota, de “comer o mingau pela beirada”. Mas isso vai exigir algo da intelectualidade brasileira que eu acho que ela ainda não fez suficientemente. Esse algo é encarar de frente a questão cognitiva, propriamente ontológica, de questionar, de “antrofagizar” os conceitos, as teorias, os fatos, os objetos e os sujeitos que recebemos das metrópoles. É colocar todo mundo na escola, sim, mas não para aprender a ser europeu. Se isso não for feito, você não vai fazer uma grande transformação, e muito menos uma revolução. Tem que botar todo mundo na escola sim, mas tem que discutir que escola.
Nesse sentido eu acho que o Brasil tem uma contribuição para um novo mundo comum. É interessante como agora, por exemplo, com a guerra da Ucrânia, se você abre o jornal, um jornal no Brasil, ou se você abre um jornal americano, um jornal inglês, até mesmo um jornal francês, eles vão dizer que o mundo está contra a Rússia. Eu não vou entrar aqui na questão do mérito da questão, a Rússia invadiu outro país. Mas que mundo está contra se a maior parte dos países, e a maior parte da população mundial, não está contra a Rússia, não se manifestou, não tem uma posição? Mas eles vão dizer que a humanidade está contra. Então tem muita manipulação no uso deste grande atrator – a humanidade.
Sobre a pergunta se há espaço para o Brasil ser protagonista no mundo, eu acho que certamente há! Somos 200 milhões! Tudo começa por deixarmos de querer ser americanos, alemães ou japoneses. O ideal de um japonês não é ser americano. Ele quer ser um japonês capaz de se reinventar com hibridizações, sem perder sua identidade e seus projetos de futuro situados em seu contexto.
Como os ideais da Revolução Francesa sucumbiram, uma contribuição que o Brasil tem seria justamente chegar com novas utopias. E essas utopias vão vir principalmente dos indígenas e dos negros. Sim, eles é que são diferentes. Eles não são como nós, que estamos aqui nessa sala. Eles têm desejos diferentes, eles têm ideias diferentes, e que soam às vezes muito estranhas.
E aí eu vou usar a palavra desgastada, que pode ser criticada, mas acredito que as contribuições do Brasil para o mundo têm mais chances de florescer em um processo democrático. Não é só um país de 200 milhões de pessoas. É um território riquíssimo. Mas colonizado. Nós temos que deixar de ser colonizados. Temos que deixar de ter o ideal de ser um americano, ser um alemão, um francês. Sejamos antropófagos, comamos o estrangeiro para absorvermos o ele tem de bom ali e rejeitemos o que não nos serve. E daí que pode surgir a contribuição do Brasil para o mundo.[14]
*Ivan da Costa Marques, é professor do Programa de pós-graduação de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da UFRJ. Autor do livro Brasil: abertura dos mercados (Contraponto). [https://amzn.to/3TFJnL5]
Referências
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Notas
[1] “Uma eleição não pode mudar a política econômica de um país”! – para denúncias e críticas eloquentes das intervenções dos bancos centrais ver as conferências de Yanis Varoufakis disponíveis no YouTube.
[2] The New York Times, 8 de setembro de 2023.
[3] Uma história da modernidade euro-americana pode ser contata a partir de um “Prometeu desacorrentado” que colocou no mundo as ferrovias, a lâmpada elétrica, a fotografia, o telefone, o automóvel, o cinema, o radar, o avião, a televisão, os mísseis, a bomba atômica, os semicondutores etc. Landes, D. S. (1994). Prometeu desacorrentado – transformação tecnológica e desenvolvimento industrial na Europa ocidental, desde 1750 até a nossa época. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira.
[4] Embora possa às vezes soar estranho, aqui utilizo a palavra “Ciência” para abarcar os fazeres múltiplos e inseparáveis tanto das “ciências” (no minúsculo e com “s”) disciplinadas quanto das “tecnologias”.
[5] Como estamos no Brasil é imprescindível lembrar que, embora este texto esteja voltado para os processos do global, os Science Studies, sem dúvida originários das metrópoles como campo de estudo, logo destacaram e problematizaram as atuações das ciências na colonização: “Se um país pequeno quiser duvidar de uma teoria, rejeitar uma patente, interromper a propagação de um argumento, desenvolver seus próprios laboratórios, escolher suas próprias prioridades, decidir que controvérsia deve ser iniciada, formar seu próprio pessoal, publicar suas próprios revistas, criar seu próprio banco de dados, falar sua própria língua, achará que é impossível … o país que tenha um sistema científico pequeno pode acreditar nos fatos, comprar as patentes, importar conhecimentos, exportar pessoal e recursos, mas não poderá questionar, discordar ou discutir e ser levado a sério. No que se refere a construção de fatos [científicos], um país desses não tem autonomia.” (Latour, 1987/1997:274-275).
[6] Por exemplo, durante a Guerra Fria os mísseis balísticos ganharam precisão a partir da visão de mundo de poderosos coletivos industriais-militares nos EUA e na URSS, coletivos muito mais poderosos do que aqueles que os movimentos pacifistas puderam mobilizar. Se predomina a visão de que a construção de mísseis cada vez mais precisos é um processo natural, as pessoas se mobilizam menos contra a construção dessas armas. “Embora o obstáculo para atingir maiores precisões [com uma determinada tecnologia] não possa ser ultrapassado, ele pode ser contornado pela adoção de novas formas de direcionamento. Aqueles que desejam estancar o aumento da precisão dos mísseis poderiam focalizar seus esforços em impedir que estas novas formas se tornassem realidade. Mas eles não farão isto se acreditarem que as precisões dos mísseis continuarão naturalmente a aumentar.” (Mackensie, 1990, p. 169) Neste caso, ao final, a existência dessas armas aparece como resultado natural do que Donald MacKensie denominou “uma profecia autorealizada”. MacKensie, D. (1990). Inventing Accuracy – A Historical Sociology of Nuclear Missile Guidance. Cambridge, MA, MIT Press.
[7] “Trump nas mãos de Zuckerberg”, “Comitê do Facebook mantém veto a Trump, mas pede padrão a punições”, Folha de São Paulo, quinta-feira, 6 de maio de 2021, p. A12.
[8] Johnson, David; Post, David. Law and Borders – The Rise of Law in Cyberspace. Stanford Law Review, v. 48, p. 1367-1375, 1996 apud Lessig, 1999, p. 24.
[9] Na área industrial já se pesquisa e se fala na geração 6G!
[10] BBC News 21/10/2020 – Huawei, Trump, Bolsonaro e China: o que o Brasil tem a ganhar e perder se ceder aos EUA no 5G?
[11] CGTN, The three “genetic defects” of the Western model, 13 mar. 2018.
[12] The Coming War on China – Official trailer – https://www.youtube.com/watch?v=G3hbtM_NJ0s
[13] A palestra de Ivan da Costa Marques fez parte do I Ciclo de Debates Engenharia e Sociedade do Departamento de Humanidades, IEFH/ITA, com o título Dessacralizando a Santíssima Trindade Moderna: O Pai Estado, o Filho Mercado e o Espírito Santo Ciência. Ela foi realizada em 4 de outubro de 2023 no ITA, São José dos Campos.
[14] Agradeço a colaboração dos amigos Marcelo Sávio, Edemilson Paraná e John Kleba na elaboração deste capítulo. Com Marcelo pude enxergar melhor o panorama que a maquinaria de informação poderá construir com a arquitetura de comunicações 5G. Edemilson trouxe novos elementos e confirmações às minhas percepções do mundo idealizado nas nuvens GAFA, especialmente sua conexão direta com a filosofia de Ayn Rand. A John Kleba agradeço os numerosos comentários e a oportunidade de apresentar e debater estas ideias no ITA. É claro que o que escrevi é da minha exclusiva responsabilidade.
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