Reino do valor e destruição do mundo

Imagem: Ramy Kabalan
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Por SANDRINE AUMERCIER, BENOÎT BOHY-BUNEL & CLÉMENT HOMS*

O capitalismo pode levar a uma devastação irreversível

O espectro que ronda o mundo moderno é cada vez menos o da possibilidade de um futuro radicalmente diferente, mas o de uma devastação irreversível. O verão de 2021, assim como os anteriores, é prova disso: enchentes devastadoras na Alemanha, na Bélgica, em Londres e no Japão; temperaturas chegando a 49,6ºC no Canadá (em um lugar que normalmente se assemelharia à Bretanha), 48ºC na Sibéria, 50ºC no Iraque; Nova Dehli atravessou sua pior onda de calor em uma década; Madagascar sofre de uma escassez alimentar severa devido à seca; a Califórnia, a Sibéria, a Turquia e o Chipre estão em chamas; o Golfo do México está coberto por um enorme vazamento de gás; a cidade de Jacobabad, no Paquistão, e a cidade de Ras Al Khaimah, no Golfo Pérsico, passaram a ser consideradas inabitáveis devido ao aquecimento climático; mais perto de nós, incêndios transformaram a região de Var, no sul da França, em cinzas. O aquecimento climático começa a se reforçar através do aumento da liberação de gases de efeito estufa com o derretimento do permafrost.

Das fontes de riqueza social abstrata abertas pelo capital, não escorre apenas uma enorme quantidade de mercadorias, mas também seu contraponto: uma quantidade infinita de poluição e de outros malefícios. O reino do valor, que não é nada menos do que a destruição da sociabilidade, ameaça os fundamentos da existência terrestre, em geral, e da humanidade, em particular – esta última sendo confrontada pela necessidade absoluta de abolir a forma social capitalista sob o risco de desaparecer. É, realmente, muito clara a contradição entre, de um lado, os imperativos cada vez mais agressivos do crescimento econômico e, de outro, a finitude dos recursos materiais e a incapacidade do meio natural de absorver os dejetos e poluentes produzidos pela civilização movida pelo movimento do capital.

É verdade, a negação da crise ecológica, felizmente, quase desapareceu do mundo e os alarmes soam ininterruptamente há bastante tempo. Nenhuma pessoa com um mínimo de credibilidade científica ou intelectual ainda duvida do fato de que as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e o esgotamento dos recursos naturais nos conduzem a uma situação catastrófica.

Ninguém mais duvida do fato de que a margem que possuímos para realizar transformações estruturais que possam atenuar o rumo da catástrofe é extremamente estreita. Porém, enquanto as conferências climáticas fracassam uma após a outra, as emissões mundiais de gases de efeito estufa continuam a aumentar alegremente sobre o pano de fundo de um imperativo de crescimento que permanece inalterado.

Diz-se, por exemplo, que com exceção das baixas verificadas durante a recessão de 2009 ou, mais recentemente, durante os meses de isolamento, as emissões mundiais de CO2 continuam aumentando inexoravelmente e, de acordo com as previsões, um novo recorde mundial deve ser alcançado em 2023. Os resultados dos mercados de carbono na luta contra as mudanças climáticas não poderiam ser piores.

Entre 1995 e 2020, da COP3 à COP24 (Conferências das Partes, da ONU), as emissões de CO2 aumentaram em mais de 60%. A aporia sistêmica de uma proteção do clima que não coloca o capitalismo em questão foi, involuntariamente, anunciada pelo ministro-presidente verde do estado alemão de Bade-Wurtemberg, Winfried Kretschmann, em março de 2021, quando, desamparado, confessou à imprensa que “a crítica segundo a qual nós somos lentos demais é verdadeira. E a de que deveríamos mudar isso também. Eu apenas gostaria de saber como fazê-lo”.

Assim, por mais que o diagnóstico dos cientistas seja cada vez mais consensual, por mais que a consciência da gravidade da ameaça seja cada vez mais forte, o caos é generalizado e os desacordos se multiplicam quando se trata de abordar o significado histórico da crise socioecológica. As ferozes batalhas políticas acerca da forma de responder a isso são testemunhas de uma falsa unanimidade e da incapacidade persistente de identificar o princípio por detrás desta trajetória.

A palavra “antropoceno” tornou-se, nestes últimos anos, o principal conceito ambiental para explicar uma tal situação, sendo particularmente popular nas ciências naturais e sociais. Proposto em 2002 pelo prêmio Nobel de química Paul Crutzen, ele pretende englobar a perturbação globalizada dos ciclos naturais planetários, que surgiu com a invenção da máquina a vapor na primeira revolução industrial, e designa uma nova “era geológica dominada pelo homem” que sucede ao holoceno que, por sua vez, sucedeu à última era glacial (o pleistoceno) há 11.500 anos.

Neste antropoceno, é o “ser humano” – antropos – que tomou o controle dos ciclos biogeoquímicos do planeta e teria se tornado uma força geofísica. Ele teria começado a transformar a biosfera de uma tal maneira que agora ameaça a capacidade do planeta de dar continuidade à história da vida. A perturbação dos ciclos do carbono e do nitrogênio, ou, ainda, a destruição massiva da biodiversidade, conduzem a pontos de ruptura planetários irreversíveis, quantificados por exércitos de cientistas e regularmente anunciados com grande pompa em todas as grandes mídias, hipnotizando uns e catastrofizando outros, enquanto seguimos na mesma rota.

Nutridas pela colapsologia, algumas camadas urbanas e privilegiadas da população passam a sofrer uma “ecoansiedade” ou uma “solastalgia” confundida de maneira indecente com as aflições das populações autóctones cujos territórios estão sendo devastados. A difusão destas noções completa o quadro de impotência e despolitização, no qual a solução para as novas angústias se daria da mesma maneira que para os distúrbios de comportamento. Em suma, “aprender a viver com” e praticar a “resiliência”.

Mas se “a era geológica dominada pelo homem” conduz a uma situação na qual a existência do ser humano poderia ser posta em risco, existe algo muito problemático na visão acerca desta dominação da natureza reduzida a um “substrato dominado”. No fim das contas, deve haver algo de não humano, de “objetificante”, neste tipo de dominação pelo “ser humano” cujo resultado poderia ser, justamente, a extinção dos humanos. O antropoceno se revela, no fim, como uma ruptura não planejada, não intencional, não controlada, como o efeito secundário de um “metabolismo social com a natureza” (Marx) desencadeado pelo capitalismo industrial e que se tornou fora de controle.

Isso pode ser facilmente ilustrado por alguns exemplos. A queima de combustíveis fósseis, utilizados como carburantes pelos sistemas industriais e de transporte, provocaria inevitavelmente a perturbação do ciclo do carbono. A extração massiva de carbono começou na Inglaterra durante a Revolução Industrial de modo que, com esta nova fonte móvel de energia, as indústrias puderam se deslocar das represas em direção às cidades, onde se encontrava mão de obra barata.

Não havia qualquer intenção consciente de manipular o ciclo do carbono ou de provocar o aquecimento climático. Entretanto, o resultado foi que, no século XX, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera já havia ultrapassado o limite seguro de 350 ppm, indispensável para a perenidade da vida humana no longo prazo. O ciclo do nitrogênio também foi perturbado pela industrialização da agricultura e pela produção de fertilizantes, baseada na fixação do nitrogênio atmosférico pelo processo de Haber-Bosch. O limite anual de 62 milhões de toneladas de nitrogênio removido da atmosfera já foi amplamente excedido, com a extração de 150 milhões de toneladas em 2014.

Ninguém o havia planejado conscientemente, tampouco se havia planejado a eutrofização dos lagos e o colapso dos ecossistemas. A mesma história se passa com a perda da biodiversidade, a perturbação do ciclo do fósforo ou a acidificação dos oceanos. Com relação a isso, “a era geológica dominada pelo homem” se assemelha mais a um produto inconsciente do acaso do que do desenvolvimento de uma capacidade de controlar os ciclos biogeofísicos planetários, a despeito da referência de Crtuzen a Vernadsky e a Tailhard de Chardin, que buscava “ampliar a consciência e o pensamento” e “o mundo do pensamento” (a noosfera). “Eles não o sabem, mas o fazem” – é o que Marx diz a respeito da atividade social fetichizada e mediada pelas mercadorias, atividade que deve ser vista como a chave para uma compreensão crítica do antropoceno.

Apesar disso, falar de acaso e de inconsciência não significa isentar responsabilidades. Quem é este antropos, este ser humano dos discursos sobre o antropoceno? Seria ele uma espécie humana em geral, de forma indiferenciada, a humanidade tomada não apenas como um todo (que não existe), mas também abstraída de todas as determinações históricas concretas? Esta imensa imprecisão conceitual permite, especialmente, que se justifique a geoengenharia climática – proposta por Paul Crutzen – ou, ainda, as ideologias do desenvolvimento durável, da economia circular que pratica a caça ao desperdício particular, ou o neomalthusianismo, que considera a demografia dos países periféricos a causa do problema. Desta forma, o antropos continua a ser aquele que destrói, mas também repara, e conservamos a dupla figura do progresso, ao mesmo tempo prometeica e demoníaca, herdada da primeira época industrial e das Luzes.

Colocando a responsabilidade em uma humanidade que é, na verdade, responsável e impactada de maneira desigual, a noção de antropoceno provoca um mal-estar e suscita numerosas discussões acerca dos “patamares” históricos e negociações terminológicas, com cada um propondo sua própria maneira de nomear o agente e o paciente do desastre. Donna Haraway substitui essa noção pelo termo Plantationocene, para apontar a colonização das Américas como o marcador desta nova era e, mais recentemente, o termo Chthulucene para nos convidar a “habitar o problema”, isto é, investir nas ruinas: “todos nós somos adubo”, afirma Haraway. Não há uma maneira melhor de esteticizar a catástrofe e diluir a responsabilidade desta situação recente na grande história bacteriana do planeta Terra.

Todas estas tentativas conceituais perdem a oportunidade de problematizar a origem desta transformação, assim como o sujeito que a leva adiante. O mesmo valeria para o termo “capitaloceno”, proposto por Andréas Malm ou Jason Moore, para tentar dar conta dos limites da noção de antropoceno? A noção de “capital fóssil”, desenvolvida por Malm a partir de materiais históricos que demonstram a coincidência histórica do desenvolvimento do capitalismo industrial com o das energias fósseis leva à curiosa figura de um antropoceno na qual os agentes seriam as energias fósseis e os responsáveis seriam aqueles que, ainda hoje, continuam defendendo o uso destas energias. A solução evidente seria deixar de utilizá-las.

De forma geral, uma parcela de um marxismo esgotado foi reciclada nos últimos vinte anos em um ecossocialismo que não abandonou o dogma do “desenvolvimento das forças produtivas”: deveríamos no entregar de corpo e alma à produção de painéis solares e de turbinas eólicas e arrancar a propriedade das garras dos capitalistas que se agarram às suas chaminés cheias de carbono e a seus poços e tubulações de petróleo. Isso leva a uma concepção não apenas “leninista”, mas lenitiva, das “energias renováveis”. É, de fato, delas que Malm e os ecossocialistas esperam a salvação ecológica – em perfeita congruência com os discursos oficiais que prometem um futuro verde e sustentável sem dizer nada acerca da intensificação extrativista e do aumento da devastação provocada pela mineração que ela supõe.

Enquanto isso, a Total Energies joga nos dois campos, verde e fóssil, enquanto Joe Biden, com suas célebres afirmações de que reintegraria os Acordos de Paris, assina no período de um ano mais autorizações de perfuração de poços de petróleo do que Donald Trump em quatro. É, também, cada vez mais bem documentado a que ponto as energias renováveis não apenas estão na origem de uma verdadeira devastação, mas apenas se somam à trajetória global sem provocar qualquer inflexão. Sem inocentar as “elites” da parte que elas possuem nesta dupla linguagem, deveríamos nos questionar acerca da natureza desta compulsão cega que não conhece qualquer interrupção e parece nos levar inexoravelmente ao inferno, enquanto a juventude revoltada com a inércia do sistema procura fazer pressão sobre o debate parlamentar, sob o risco de reforçar a gestão tecnicista e a adaptação ao desastre.

Muitos são aqueles – e não apenas os experts – que também estão convencidos de que uma mistura feliz de tecnocracia, descarbonização da economia, geoengenharia, transição energética, pequenos gestos ecológicos, boa vontade e inovação comercial será o suficiente para realizar a “transição” em direção ao um novo capitalismo verde. Na verdade, este último está mais engajado na via de um estado de exceção permanente no qual cada um estará disposto a competir para prolongar a agonia. E as aflições e os compromissos dos sujeitos ordinários são um elemento tão determinante nesta forma social quanto aqueles que tomam as decisões, que estão encarregados da forma política moderna de representar a incumbência fundamental: o crescimento. Todos os portadores de funções estão envolvidos na mesma forma de relação social acerca da qual se esforçam em não querer saber de nada e pela qual se culpam uns aos outros.

É assim que, com o avanço da crise ecológica, a angústia também se apodera daqueles que, há pouco tempo, ainda negavam a realidade das mudanças climáticas: todo o espectro político agora está enfeitiçado pela “urgência climática” diante de um eleitorado sitiado. Até mesmo a extrema direita começou a acomodar a ecologia em seus temas favoritos. Neomalthusianismo, darwinismo social, defesa armada dos territórios e da identidade nacional, sobrevivencialismo, atos de terrorismo de vocação ecológica: essas tendências que se acumulam apontam para a neofascistização de uma camada da sociedade que é a ponta avançada das tendências políticas transversais. A construção de muros e o abandono de populações supérfluas não merecem mais sequer uma justificativa em nível mundial e são banalizados em meio à indiferença.

Enquanto isso, alguns perdem a voz aos berros, pregando valores humanos e militando pelo reconhecimento do crime de ecocídio ou dos “direitos” atribuídos às entidades naturais no quadro da forma política burguesa. O biocentrismo que caracterizava até pouco tempo a ecologia profunda tornou-se, com o passar de alguns anos, o capital empresarial de uma ecologia antiespecista, por vezes associada ao veganismo, apaixonada pela conservação e pela restauração da natureza. Uma natureza transformada em espetáculo na qual os ocupantes indígenas são evacuados ou perseguidos; uma natureza frequentemente desconhecida por seus promotores, como mostram, dentre outros, Charles Stepanoff e Guillaume Blanc em suas obras recentes.

Porque a ontologia naturalista moderna é indissociável do capitalismo e, portanto, também se encontra nas ideologias afirmativas de crise. O conceito moderno de “natureza” é inteiramente modelado pela forma mercadoria e pela forma-sujeito burguesa. As ciências naturais modernas, desde Immanuel Kant, pressupuseram um sujeito puramente formal, idêntico a si mesmo, suscetível a sintetizar o múltiplo da intuição sensível. Este sujeito abstrato se mantinha independente da empiria e assumia a natureza como uma exterioridade radical que se deveria ser posta em questão.

Esta subjetivação moderna institui uma dualidade sujeito-objeto e uma natureza puramente separada que não são independentes do processo de valorização do valor. Ela institui, igualmente, um tempo abstrato e um espaço homogêneo que se deve quantificar tendo em vista sua dominação. A “natureza” moderna foi submetida a uma lógica de matematização que permitia, dentre outras coisas, que se reduzisse o não-humano ao estado de recurso explorável, compondo o capital constante. Da mesma maneira, o tempo de trabalho deve ser mensurado, sua qualidade concreta é negada tendo em vista sua gestão racional e a extração de um mais-valor relativo.

O ponto comum entre as ciências naturais e as ciências econômicas é a sua tendência a quantificar sistematicamente o que é, todavia, heterogêneo à ordem do quantitativo: elas são incapazes de considerar o que resta de não-idêntico às formas homogêneas da racionalidade e da produção modernas, isto é, o sofrimento dos seres vivos conscientes e sensíveis, o conteúdo qualitativo da forma abstrata.

O capital variável e o capital constante, igualmente constituídos por indivíduos vivos e sofredores, são devolvidos ao estatuto de recursos valorizáveis e quantificáveis em um processo de produção que os naturaliza e reifica. São exatamente as tecnologias ecologicamente destrutivas que transformam o trabalho vivo em algo cada vez mais supérfluo. Enquanto o capital faz do tempo de trabalho a fonte e a medida de toda riqueza, ele tende a levar este tempo de trabalho produtivo a um mínimo cada vez mais precário. Essa contradição está no coração de cada sujeito do capital. Todo o horror do capitalismo reside, no fim das contas, no fato de que ninguém está por detrás das cortinas puxando as cordas.

Ninguém controla o movimento de valorização do capital na escala da sociedade mundial: ele se desenrola pelo intermédio do mercado, como um processo através do qual o dinheiro deve se tornar mais-dinheiro através da produção e do consumo de mercadorias. Até mesmo os capitalistas mais poderosos são coagidos a isso – o que Karl Marx resumiu no conceito de fetichismo social.  A responsabilidade pelos danos não pode ser atribuída unicamente a partir da identidade de classe dos indivíduos, mas sim através da análise de uma identificação mais ou menos consentida de cada um à forma de vida capitalista.

O capitalismo mobiliza as ciências naturais para estabelecer um sujeito solipsista e narcísico que deve se apresentar “como senhor e possuidor da natureza” (Descartes). As ciências naturais modernas fabricam tecnicamente seus experimentos constituindo uma natureza homogênea ao cálculo matemático. Não é a “natureza” desordenada e qualitativa que eles tematizam, mas uma natureza tecnicamente elaborada, purificada, determinada por um sujeito abstrato idêntico a si mesmo. Assim como as técnicas implicam, na produção, uma subsunção real do trabalho concreto ao trabalho abstrato, existe uma subsunção ainda mais real da natureza ao valor. É assim que a lógica da concorrência e a lógica da extração do mais-valor relativo impulsionam cada vez mais a automatização da produção, até a recente revolução microeletrônica (1970-80), ao ponto de destruir cada vez mais o planeta, mas também ao ponto de engajar o capitalismo em um processo irreversível de dessubstancialização do valor.

Os limites externos (crise ecológica) e interno (crise econômica) do capitalismo são sutilmente embricados, como mostra o “fragmento sobre as máquinas” dos Grundrisse. Assim também a superação do capitalismo não será realizada pelo intermédio da ciência “positiva” nem da economia. Um pensamento crítico que coloca novamente em questão a hegemonia do cálculo e da quantidade, e que tematiza os sofrimentos e os desejos dos sujeitos em sua dimensão irredutível, também será capaz de criticar a inversão fetichista-mercantil entre abstrato e concreto, meio e fim.

O sujeito solipsista que leva adiante o projeto natural-capitalista é, estruturalmente, o sujeito masculino, ocidental, branco. A ciência natural, que constroi tecnicamente uma natureza quantificável modelada pela forma mercadoria, consolida também a dissociação sexual. A natureza “informe” e “caótica” que se deve enquadrar e disciplinar foi associada (desde Bacon) ao feminino. Conforme explica Roswita Scholz (1992), a dissociação da forma e do conteúdo é uma dissociação específica ao sexo. No seio da dissociação sexual moderna, a forma valor diz respeito ao sujeito da concorrência, competitivo, racional, esclarecido, que é tipicamente um sujeito masculino, enquanto o conteúdo irracional, que pode se referir à sensibilidade, ao cuidado, a esfera reprodutiva e ao erotismo é associado ao (não)sujeito feminino.

Essa estrutura da dissociação é inseparável de uma economia moderna desatrelada, que separa funcionalmente as esferas da produção de valor (masculina) e da reprodução privada (feminina). A dominação da natureza exterior é indissociável da dominação de uma natureza inferior, feminizada, declarada como sensível, informe e irracional. De forma semelhante, os indígenas não são considerados como dispondo da racionalidade crítica que triunfa com Kant e com as Luzes. O naturalismo então se impõe como uma verdadeira unidade excludente e como uma totalidade cindida. Não seriamos, portanto, capazes de distinguir de forma rígida a história da superexploração colonial dos problemas associados à dominação da natureza “exterior”, uma vez que é um mesmo sujeito abstrato que desenvolve, na modernidade, este naturalismo capitalista multidimensional.

Portanto, a crítica da destruição da vida hoje supõe uma crítica radical das ciências positivas e das técnicas modernas, mas também a compreensão de uma conexão íntima entre as crises ecológica, social e econômica. Ela supõe, igualmente, a crítica do patriarcado produtor de mercadorias e de um racismo estrutural, naturalizante. Hoje, as especializações e as compartimentações impedem que fenômenos multidimensionais sejam percebidos. Estas especializações teóricas são reflexo da divisão capitalista do trabalho, e são, em si mesmas, alienadas.

Como Kurz anuncia no primeiro capítulo do livro La Substance du capital, não é o fato de se criticar a totalidade que é totalitário. Isso porque o valor destrutivo é precisamente esta totalidade (cindida), e é ela que precisa ser absolutamente criticada. A crítica da totalidade capitalista não busca impor esta totalidade em detrimento do não-idêntico – como lhe censura o pensamento pós-moderno – mas ela pretende elevar a crítica à altura do totalitarismo da forma. Uma “crítica” dispersa ou fragmentária reproduz as separações e os isolamentos das ciências positivas que se mantém, elas mesmas, no interior das fronteiras impostas pela divisão do trabalho moderna.

A crítica do capitalismo não pode adotar a perspectiva naturalista e vitalista que é o fundamento da modernidade. Ela não busca salvar uma “natureza” idealizada, nem uma “humanidade” idealizada como espécie, e ainda menos um capitalismo que se concebe como uma força da natureza. Ela não deve se aliar com as diferentes variações políticas deste naturalismo cujas contradições tendem a ser superadas através de uma gestão cada vez mais totalitária da vida, da saúde e da população. Esta crítica se apoia, pelo contrário, em uma epistemologia da natureza que leva em conta o fato de que apenas podemos falar dela em uma posição secundária e que a forma de defender a natureza é defendendo uma sociedade verdadeiramente humana.

Estabelecer, de maneira crítica, as condições da emancipação da sociedade é o único caminho possível para uma ecologia radical, mesmo se diante da urgência e do avanço das catástrofes muitos queiram se refugiar nas ideologias de crise das quais acabamos de tratar. A crítica epistemológica do conceito de natureza representa um desvio teórico que não é um mero refinamento nem “tempo perdido para a urgência da ação”, mas que, pelo contrário, considera o estatuto da “segunda natureza”. Ela busca articular, igualmente, a crítica marxiana da economia política a uma crítica das tecnologias, das ciências e das forças produtivas.

*Sandrine Aumercier é psicanalista. Autora, entre outros livros, de Capitalismo em quarentena: notas sobre a crise global em 2020 (Elefante).

*Benoît Bohy-Bunel é filósofo. Autor, entre outros livros, de Symptômes contemporains du capitalisme spectaculaire (Paperback).

*Clément Homs é editor do site Palim Psao e da revista Jaggernaut

Tradução: Daniel Pavan.

Editorial da 4ª edição da revista francesa Jaggernaut.

Publicado originalmente no site Palim Psao.

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