A América Latina no governo de Joe Biden

Imagem: Valéria Possos
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Por RAFAEL R. IORIS*

Análise de cenários e tendências

Após longos dias de antecipação e suspense, o inepto sistema de eleições dos EUA nos fez saber que Joe Biden, ex-vice-presidente e um dos caciques do Partido Democrata, será o novo presidente da maior potência militar do mundo, assim como, historicamente, a maior influência econômica, política e cultural no hemisfério Ocidental. Dado que, especialmente no pós-Guerra Fria, a América Latina quase nunca foi entendida como prioridade da política externa norte-americana – pelo menos não como um parceiro no mesmo nível –, o que esperar do próximo governo democrata para com a nossa região?

País dividido e foco interno do novo governo

Em primeiro lugar, caberia apontar que a realidade que saiu das urnas da eleição de 2020 nos EUA é a de um país profundamente polarizado entre setores que defendem posições em grande parte irreconciliáveis, tantos em temas econômicos, como em questões de cunho cultural e moral – cenário que, obviamente, apresenta dificuldades para qualquer novo presidente. Assim, o governo que se vislumbra para os próximos quatro anos na terra de Washington será provavelmente pautado pelo teor conciliador, liderado por um político de viés tradicional, moderado, ou até mesmo conservador, que tenderá a governar pelo centro, cuja agenda, dadas as enormes dificuldades sanitárias e econômicas que o país enfrenta, deverá se concentrar no contexto doméstico.

Levando-se em consideração os nomes indicados até agora para assumir as posições centrais na burocracia responsável pela formulação de política externa na vindoura gestão nos EUA – todos funcionários de carreira que ocuparam cargos importantes no governo Obama –, teremos uma gestão pautada mais pelo espírito de reconstrução do que de transformação. Continuidades tenderão, pois, a dar o mote do relacionamento, embora possamos esperar eventuais ajustes, na maior parte, derivados de demandas e pressões internas da sociedade norte-americana, em especial na temática migratória.

De fato, se no governo Trump os países ao sul eram vistos essencialmente por meio de lentes domésticas (com um discurso agressivo anti-imigrante com vistas a agradar a base nativista do Partido Republicano), lembremos que Joe Biden participou, como ex-vice-presidente, de um governo que também apresentou uma postura dura com relação aos imigrantes latinos (Obama foi considerado o deportador mor), cuja atuação não foi nada modelar em sua defesa puramente formal das regras democráticas na região. Além disso, os democratas têm um histórico de promoção de um política externa hemisférica de viés neoliberal, centrada na promoção dos interesses econômicos de suas empresas, assim como no eixo da segurança nacional, definido em termos bem estreitos: defesa da fronteira e combate ao narcotráfico e ao terrorismo.

Tendência a um maior interesse na região, mas sem grandes sobressaltos

Embora o patamar de relacionamento de Trump com a América Latina tenha sido mínimo, guinadas históricas rumo a um intenso relacionamento com nossa região seriam surpreendentes. Isso se aplica, inclusive, à histórica promoção da lógica mercantil (formalmente de livre-comércio) da diplomacia norte-americana, uma vez que, hoje, aquele país vive um momento de protecionismo muito mais intenso e que deve continuar com o governo Biden. De maneira concreta, em artigo autoral em que analisa a situação latino-americana quando do final do segundo ano de mandato de Donald Trump, Joe Biden afirmou que os EUA haviam negligenciado de maneira perigosa sua presença junto aos vizinhos ao sul da fronteira e que isso teria dado margem excessiva a uma maior influência de outras potências econômicas e militares globais na região – em especial, uma maior atuação chinesa e, em alguns lugares, da Rússia.

Trump também teria descontinuado programas importantes, como a aproximação estabelecida por Obama junto a Cuba e a ajuda econômica e de segurança que os EUA tinham fortalecido junto a países da América Central, sobretudo, os do chamado Triângulo do Norte (Guatemala, Honduras e El Salvador), focos nodais das últimas ondas migratórias rumo ao território norte-americano, decorrentes de continuadas e crescentes crises econômicas e de segurança locais.

O vácuo criado por Trump na região – lembremos que o atual mandatário dos EUA nunca visitou nenhum país latino-americano, com exceção de sua participação no encontro do G20 na Argentina, em 2018 – teria, pois, de ser revertido, a fim de manter a América Latina sob a égide dos interesses e da agenda norte-americana.

Em sua avaliação, Biden evoca uma racionalidade que nos remete ao postulado da Doutrina Monroe, formulada no início do século XIX, segundo a qual os EUA deveriam assumir um papel central nos destinos da região. Nessa nova expressão da lógica hegemônica histórica, a liderança norte-americana se exerceria também pela promoção de sua visão específica de democracia e pelo combate do que se entende como uma crescente corrupção regional e, de maneira especial, na Venezuela e na Nicarágua.

Retomando velhas dinâmicas

De maneira irônica, mas certamente não ingênua, o futuro presidente dos EUA não demonstra a mesma preocupação com a crescente erosão das instituições democráticas nos países do Triângulo do Norte. Não se trata de posição surpreendente, porém. Lembremos que as abordagens dos últimos governos democratas na América Central não foram muito bem-sucedidas, tendo mesmo servido como fator de aprofundamento da desigualdade, da violência e do êxodo regional crescentes. De maneira concreta, reafirmando a lógica de sempre, durante a campanha presidencial, Biden lançou um “Plano para Construção da Prosperidade em Parceria com o Povo da América Central”. Nele, velhas estratégias para conter a violência na região e, sobretudo, a imigração para os EUA são apresentadas.

Promete-se, assim, retomar programas de transferência de recursos para mitigar a pobreza e a violência por meio de ajuda humanitária, acesso a crédito e incentivo a investimentos. Em troca, exige-se, entre outras coisas, o compromisso com reformas econômicas e políticas, como a redução de barreiras para o investimento privado, ampliação do comércio e dos acordos comerciais e a promoção da lei e da ordem.

Biden tampouco faz mea culpa no que se refere ao papel da diplomacia norte-americana na legitimação de processos golpistas em diversos países da América Latina, como Honduras em 2009, Paraguai em 2013 e mesmo no Brasil em 2016. Pelo contrário, em uma das poucas promessas concretas para sua administração, Biden pretende sediar uma Cúpula da Democracia, em que provavelmente se buscará, novamente, a promoção de programas de cooperação entre o FBI e Ministérios Públicos regionais nos moldes das investigações politicamente enviesadas, como a Operação Lava Jato, no Brasil e no Peru.

Na mesma direção, no sumário do programa de governo que foi publicado após a confirmação de sua vitória no dia 7 de novembro, Biden aponta que buscará reestabelecer princípios multilaterais e institucionais à política externa norte-americana, de modo que os EUA buscarão voltar ao Tratado Climático de Paris e à Organização Mundial da Saúde (OMS) e trabalharão para reestabelecer o diálogo e a cooperação junto aos aliados tradicionais, em especial com a União Europeia e com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de modo a conseguir conter a expansão de países que continuam, pois, sendo vistos como rivais principais ao redor do globo, em especial a China e, novamente, a Rússia.

Possíveis linhas de inovação: tímidas, mas importantes

Fica claro, pois, que a América Latina continuará a ser vista de maneira secundária, como foco de disputa entre as grandes potências. E uma das poucas áreas em que talvez nossa região, ou, mais precisamente, parte dela, venha a assumir alguma centralidade seria na temática ambiental. Biden apostou na questão ambiental como um elemento central em sua plataforma de campanha para atrair o eleitorado mais jovem e alas do Partido Democrata comprometidas com o tema.

Parece provável que o discurso ambiental venha a servir como uma política de pressão sobre concorrentes comerciais, especialmente junto a países como o Brasil. De fato, tanto para mostrar ao eleitorado mais jovens e mais progressista seu compromisso com a questão ambiental, quanto para diminuir a competitividade da agroindústria brasileira, Biden pode usar o país como um exemplo negativo e, consequentemente, impor novas dificuldades para oportunidades comerciais e políticas com parceiros regionais.

Na temática fronteiriça e migratória, Biden diz não defender uma política de fronteira aberta, mas entende que o status quo é insustentável e que uma nova política migratória deveria ser buscada, inclusive com um processo de anistia e de legalização de imigrantes indocumentados. Mas não parece certo que algo tão ambicioso consiga ser aprovado no Congresso norte-americano, especialmente sem o controle da Câmara Alta do país. O futuro presidente democrata promete reestabelecer a decisão legal de não deportar imigrantes indocumentados que foram trazidos para os EUA quando crianças pelos seus pais – decisão executiva conhecida como DACA, que foi fruto de amplos ataques legais durante o governo Trump.

Pretende também suspender as alocações orçamentárias de urgências para a expansão do muro fronteiriço com o México feitas por Trump, assim como reverter o tom agressivo e confrontacionista do atual presidente em relação às comunidades latinas no país e na região como um todo. E planeja ainda manter a atual suspensão legal do programa de separação de famílias imigrantes que levou a prender crianças em jaulas, muitas das quais ainda esperando ser reintegradas aos seus familiares.

Mas, embora Biden pareça querer retomar o diálogo com o México, seu vizinho imediato ao sul, lembremos que, contra todas as expectativas, o governo, formalmente de esquerda, de López Obrador, foi muito cooperativo com a administração Trump, tanto no que se refere à revisão das cláusulas comerciais do NAFTA (hoje, USMCA, revisto a pedido de Trump, e com maiores concessões a setores industriais e do agrobusiness norte-americano) quanto à contenção das ondas migratórias da América Central por meio do território mexicano.

Nisso nem Trump, nem Obrador inovaram, já que, em 2014, Obama e Sebastián Peña Nieto criaram o programa Frontera Sur, em que os EUA forneceriam recursos (econômicos e equipamentos de vigilância e repressão policial) para que o governo mexicano impedisse que migrantes centro-americanos pudessem entrar no México a caminho dos EUA. Até o momento, Biden não indicou que pretenda rever essa política.

Fator China e vácuo de interlocutores regionais: dificuldades à vista

A preocupação com a crescente influência regional da China provavelmente será transferida para o novo governo norte-americano, assim como a forte preocupação com os rumos do atual governo venezuelano. Cabe lembrar que Biden, desde sempre um político moderado dentro do Partido Democrata, teve na área de política externa uma atuação forte em defesa dos interesses estratégicos, econômicos e geopolíticos dos EUA, inclusive na defesa do uso da força militar na promoção destes objetivos. De maneira concreta, Biden foi um dos defensores da política antidrogas na região, em especial o Plano Colômbia, assim como da tentativa de expansão de acordos de livre-comércio no hemisfério ocidental.

Assim, para além da tentativa de resgate de um padrão de negociação centrado na diplomacia formal e por meio dos organismos regionais de representação diplomática, em especial a Organização dos Estados Americanos (OEA), não se deve esperar mudanças profundas no relacionamento com a região. Possíveis exceções seriam a tentativa de retomar o processo de aproximação com Cuba, embora hoje o governo da ilha talvez não tenha o mesmo interesse em repetir os termos da negociação da era Obama. Além disso, a derrota de Biden junto à comunidade cubana do sul da Flórida representa hoje mais resistência interna nos EUA a um possível rapprochment mais ambicioso.

Com relação ao governo de Nicolás Maduro, será surpreendente uma grande mudança de tom por parte de Biden, ainda que seja possível antever que novos canais de diplomacia possam vir a ser estabelecidos, com uma eventual acomodação, especialmente caso o novo Congresso do país venha a retirar a Presidência da casa de Juan Guaidó.

O que parece certo é que Biden buscará maior interação com a região, especialmente em vistas à maior presença da China, sobretudo no que se refere ao comércio e aos investimentos. Mas não parece tão claro que, com a exceção do governo de Jair Bolsonaro, haja definição exata na escolha entre os rumos a serem seguidos por parte da maioria dos países da região, cada dia mais integrados (ou mesmo dependentes) do mercado e investimentos chineses. E, mesmo no caso do Brasil, embora até o momento Bolsonaro tenha mantido uma postura de alinhamento (e subserviência) aos EUA (de fato, ao governo Trump!), a pressão do agronegócio e de setores de tecnologia na questão do 5G poderá forçar o governo a fortalecer relações com a China no cenário futuro.

Por fim, é importante frisar que nossa região se encontra hoje em um contexto de maior divisão interna, polarização ideológica, turbulências políticas e dificuldades econômicas e sanitárias do que durante os anos de Obama. Acima de tudo, não há clareza sobre quem seria o interlocutor regional claro, especialmente na América do Sul, uma vez que as organizações regionais de representação (como a Unasul, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos/Celac e mesmo o Mercosul) se encontram hoje em uma situação de grande fragilidade e alternativas propostas por novas lideranças regionais (como o Grupo de Lima) não foram capazes de se estabelecer como vozes regionais legítimas. Por fim, Brasil e México, que, em tese, poderiam aglutinar interesses regionais, parecem desinteressados e/ou incapazes de assumir a tarefa de falar pela região.

Algo novo no front, ou mais uma oportunidade perdida?

Para além da tradicional defesa regional e combate ao narcotráfico, não está claro quais seriam as prioridades específicas da futura administração Biden com relação ao nosso continente. As exceções mais fortes seriam a manutenção da agenda anticorrupção da era Obama, cujos resultados, além de controversos desde então, estão hoje muito menos aceitos na região; e, sobretudo, a temática da proteção ambiental, de maneira central, da região amazônica. Biden chegou mesmo a prometer a criação de um fundo de US$ 20 bilhões para a proteção da floresta amazônica, em especial frente aos incêndios florestais crescentes em território brasileiro, ideia que foi fortemente rechaçada pelo governo brasileiro. O desencontro aponta para possíveis atritos entre os dois maiores países do hemisfério.

Claramente faz diferença se os EUA se relacionam com o resto do mundo de uma forma agressivamente unilateral, como fez Trump, ou sob uma abordagem multilateral, institucional e diplomática, como se espera que seja feito por Biden. De toda forma, não é se de esperar que a América Latina venha a aparecer no centro das atenções do novo governo em Washington. Biden certamente buscará maior engajamento com seus vizinhos, mas isso continuará a ser feito de forma ad hoc e certamente guiado, de forma prioritária, pelos interesses econômicos e de defesa da potência hegemônica regional.

*Rafael R. Ioris é professor de História e Política Latino-Americana na Universidade de Denver.

Publicado originalmente no site do INCT-INEU.

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