Por JOSÉ EDUARDO FERNANDES GIRAUDO*
O uso paradoxal dos símbolos de Israel pela direita brasileira
Viu-se com bastante frequência nos últimos tempos, em manifestações com a presença de grandes contingentes de gado vacum, que pediam o “fechamento do STF” ou a “intervenção militar”, agitarem-se as bandeiras dos Estados Unidos, da Ucrânia e de Israel.
O comparecimento da bandeira estrelada e listrada não carece de explicação, haja vista a “educação sentimental” de toda uma geração imbecilizada na infância e na adolescência mediante doses maciças de rambos, bruce willis, chuck norris e outros van dammes que acompanhavam o ˝Toddy˝ da ˝Sessão da Tarde˝ e que hoje, ˝adulta˝, faz compras à sombra da estátua da liberdade da Havan, anda de jet ski e brinca de carrinho no Beto Carrero Show.
A presença da bandeira ucraniana seria em outros tempos uma incógnita. Hoje, não é difícil imaginar que se deve mais ao nazi-fascismo de “heróis” como Stepan Bandera, responsável pela morte de um milhão de judeus na Ucrânia, na Polônia e na Bielorrússia, durante o chamado “Holocausto por balas”, do que à orgulhosa liberdade dos cossacos do Kuban e da Crimeia, ou do anarquismo revolucionário do bat´ko Nestor Ivanovich Makhno.
Já a bandeira de Israel cumpre duas funções. Uma, ligada a certas doutrinas evangélicas de matriz estadunidense, conhecidas como ˝sionismo cristão˝, para as quais a restauração da Tribo de Judá em Eretz Israel seria parte do cumprimento das profecias bíblicas e uma das condições (como a queda do Papado e a construção do Terceiro Templo) do segundo Advento.
Quanto aos judeus, ao contrário do antissemitismo clássico, para o qual estes eram os pérfidos assassinos de Cristo, o “restauracionismo” os trata com condescendência, reconhecendo-os como o povo eleito do Antigo Testamento e receptáculo da primeira aliança, ˝quase-cristãos˝ que no devido momento aceitarão o batismo e abraçarão a verdade revelada, abrindo assim caminho para o Milênio.
Ainda mais evidente ressalta a função simbólica de delimitar, desde um ponto de vista suprematista branco e daquilo que Edward Said chamava de “perspectiva orientalista”, uma fronteira imaginaria entre civilização e barbárie, ocidente e oriente, nós e os outros, onde os outros são os “feios, sujos e malvados”: árabes, africanos, asiáticos, muçulmanos, negros, amarelos, refugiados, terroristas e narcotraficantes.
O poder ideológico desta simbologia é tal que, ao emprestar tantos significados à bandeira israelense, despe-a de seu significado primordial como símbolo de uma pátria. Que é o que Israel significa para um israelense. Não um baluarte, uma fortaleza nos confins do deserto dos tártaros, a defender o mundo civilizado contra a invasão alienígena, mas apenas uma pátria, onde nasceram e onde nasceram seus pais.
Como para um brasileiro o Brasil, mesmo que não esteja “acima de tudo”, é uma pátria: “uma pobre pátria mãe, tão distraída, subtraída, em tenebrosas transações, por aqueles mesmos que lhe sequestraram as cores para com elas cobrir a sua ignomínia, a comprovar o acerto da tão citada frase de George Bernard Shaw: “O patriotismo é o último refúgio dos canalhas.”
Pois esta gente inculta e autorreferente, incapaz de identificar Israel corretamente num mapa, que nunca leu um livro de um escritor israelense, nunca assistiu a um filme israelense, se utiliza do nome e dos símbolos do estado de Israel como insígnia de sua própria ignorância, para fins escusos, que nada têm a ver com a resiliência e a sabedoria milenares do povo israelita, chegando ao cumulo de ladear, em suas marchas zebuínas, a estrela de Davi e símbolos que remetem ao nazismo. O horror! O horror!
A manada não sabe que a criação do Israel moderno se deveu, em grande medida, ao sionismo de esquerda, de filiação socialista, que teve grande participação nos movimentos de retorno à Palestina no início do século passado (segunda e terceira aliyah), com o estabelecimento dos primeiros kibbutzim e meshavim. Esta componente socialista esteve presente durante toda a história de Israel, informando um forte sindicalismo, uma forte agricultura cooperativa e um igualmente forte sistema de proteção social, pilares da sociedade israelense independentemente de estarem à direita ou à esquerda no governo.
Tampouco sabe que Israel nasceu de uma guerra de libertação nacional empreendida, não contra os árabes, mas contra o Império Britânico, e com a ajuda da União Soviética, primeiro país a reconhecer o novo Estado. E que, embora Israel se tenha de certa forma transformado, no contexto da guerra fria, num cliente dos Estados Unidos (como a Turquia revolucionária kemalista após a morte de Ataturk), muito continuou a nele haver de socialista.
Tanto é assim que boa parte dos judeus (refuseniks) que deixaram a União Soviética nos anos sessenta e setenta preferiram não permanecer em Israel e seguiram para os Estados Unidos. Acharam Israel “parecido demais” com o mundo comunista.
Além disso, Israel, ao contrário da Turquia, jamais cogitou de integrar à OTAN, apesar das guerras que se sucederam desde a independência. E embora tenha contado com o apoio material e financeiro dos EUA e da Europa, sempre lutou suas guerras sozinho (excetuando-se os episódios de Suez em 1956, quando aliou-se à Franca e à Inglaterra), nunca permitindo a instalação de bases militares americanas em seu território, como nunca aceitou coadjuvar guerras e expedições punitivas como o ataque norte-americano ao Iraque em 1991, a invasão do mesmo país em 2003 ou a invasão da Líbia em 2011.
Israel é um modelo de estado de bem-estar social. O seu sistema de saúde, universal, público e gratuito, é um dos mais eficazes do mundo. A educação, também pública e gratuita, é uma das melhores do mundo. O pais é o terceiro, após o Canadá e o Japão, com a maior porcentagem de egressos do ensino superior: 51% da população entre 25 e 64 anos, contra 21% no Brasil. Em 2014, 62% dos alunos que concluíram o ensino médio ingressaram na universidade (48% em Cuba e 18% no Brasil em 2022). A frequência à escola é obrigatória desde o jardim de infância, dos três aos dezoito anos, e a expectativa média de duração da vida escolar é de dezesseis anos. A taxa de alfabetização é de 97,8%, e o Índice de Educação do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) é de 883 (o do Brasil é de 694, havendo aumentado 100 pontos entre 2002 e 2016; o de Cuba é de 790).
Em Israel não há latifúndios. 93% da terra é de propriedade do Estado. O sistema de agricultura cooperativa, análogo aos kolkhozy soviéticos, é ainda hoje responsável por cerca de 40% da produção agrícola e 10% da produção industrial do pais.
O índice de desigualdade de renda (Gini) de Israel é de 38,9, o que, se não faz do país um dos mais iguais do mundo (a Suécia tem índice de 23), o faz incomparavelmente menos desigual que o Brasil, oitavo no ranking dos campeões da desigualdade, com índice de 53,3 (inferior apenas ao da África do Sul, do Lesoto, de Moçambique, da Namíbia, da República Centro-Africana, do Suriname e da Zâmbia).
O índice de segurança da mulher (WPS) é de 844 (27º. mais alto no mundo), enquanto o do Brasil é de 734 (80º. no mundo). O índice de desigualdade sexual é o 26º. mais baixo, enquanto o do Brasil é o 95º. As mulheres ocupam 23,5% dos assentos no parlamento (Knesseth), contra 15% no Brasil. Israel foi o terceiro pais a ter uma mulher chefe de governo (após o Sri Lanka e a Índia). O aborto é legal desde 1977, e praticado gratuitamente nos hospitais públicos.
No que respeita aos costumes, área tão valorizada pelos tiozões hoje no governo, zelosos defensores dos valores da “família tradicional brasileira” (como o abuso de álcool e de outras drogas legais, a frequentação do sexo pago, a violência contra mulheres e crianças e a exploração de empregadas domésticas), Israel tampouco faz feio.
Os direitos das minorias sexuais são respeitados. Embora não haja casamento entre pessoas do mesmo sexo (em Israel não existe o casamento civil), a lei reconhece às uniões civis os mesmos direitos do casamento, inclusive para efeitos de sucessão e de pensão civil. Parceiros do mesmo sexo podem adotar crianças, inclusive mediante contratos de gestação de substituição.
Por fim, mas não menos digno de nota, Israel legalizou em 2019 o uso recreativo da maconha em espaços privados, com o apoio do direitista Likud, partido de Benjamin Netanyahu, amigão do Estadista. Já em 2017 o uso e a posse de pequenas quantidades deixaram de ser um crime, passando a constituir apenas contravenção, passível de multa. Estudo feito naquele mesmo ano dava conta de que 27% dos israelenses entre 18 e 65 anos de idade haviam consumido pelo menos uma vez nos últimos doze meses, porcentagem superior à de qualquer outro país (a Islândia tinha 18%, e os EUA 16%). No Brasil, apenas 3% dos adultos são consumidores habituais de cannabis.
Como se pode ver, Israel é tudo os que os seus “defensores” não querem que o Brasil seja. Para estes “sionistas cristãos” e paladinos do “ocidente”, o que vale é símbolo, o delírio paranoico que enxerga apenas o pequeno e guerreiro Israel/Esparta e seu rei Davi/Leonidas batendo-se com as hostes do Golias/Xerxes, “bárbaro”, “oriental” e “terrorista”. Nada sabem, nem querem saber de como vive no dia-a-dia o povo de Israel, organizado numa sociedade próspera, democrática, igualitária e tolerante.
Não, senhores “bispos”. Israel não precisa de vosso apoio, que só o constrange. E não precisa de vossas igrejas caça-níqueis. Os israelenses não precisam de “pastores” que lhes vendam ampolas com “água consagrada do Jordão”, unguentos contra a COVID ou sementes de feijão milagrosas. Não precisam da cafonice de vossos “templos de Salomão”, construídos com o dízimo do sangue e do suor do vosso pobre “rebanho”. Nem carecem de vossas redes de televisão, a disseminar o ódio e a ignorância em nome de um Deus que nunca vos habitou.
Porque, embora produza e exporte grande quantidade de frutas tropicais, Israel, ao contrário do Brasil, não é uma república bananeira.
*José Eduardo Fernandes Giraudo é diplomata.