Por PAULO CAPEL NARVAI*
O debate sobre a Carreira de Estado do SUS é, até agora, o grande ausente da 17ª Conferência Nacional de Saúde que se encerra em julho
1.
Uma importante inovação vem marcando a organização da 17ª Conferência Nacional de Saúde (17ª CNS), cujo encerramento se dará na etapa nacional em Brasília, de 2 a 5 de julho de 2023. Trata-se da inclusão, no processo de discussões que precede a etapa nacional, das “conferências livres de âmbito nacional” que, em número que superou uma centena, aconteceram no período de 5 de agosto de 2022 até 31 de maio de 2023.
Até agora, desde a histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, e que nos legou o Sistema Único de Saúde (SUS), uma das maiores conquistas sociais da Constituição de 1988, as conferências nacionais de saúde se restringiam às três etapas, que se iniciavam pelas conferências municipais e estaduais e culminavam com a etapa nacional, que encerra o processo. Foi assim também nesta 17ª CNS, com as conferências municipais ocorrendo entre os meses de novembro de 2022 e março de 2023 e as estaduais de abril a maio de 2023.
Mas, além dessas mais de 1.500 conferências municipais e as 27 conferências estaduais, que elegem seus respectivos delegados para as etapas seguintes, foram realizadas mais de 100 conferências livres de âmbito nacional. Assim, além dos delegados eleitos nas 27 conferências estaduais para estarem em Brasília, a etapa nacional contará também com delegados eleitos nas conferências livres, além de observadores e convidados, estes com direito à palavra, mas não de voto.
A primeira dessas conferências livres ocorreu em 2022, convocada pela Frente Pela Vida, com o apoio de várias entidades e movimentos sociais. A Conferência Livre, Democrática e Popular da Saúde 2022 foi precedida de dezenas de encontros e reuniões preparatórias e sua plenária final foi realizada em São Paulo, em 5 de agosto de 2022, com a presença do hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O conjunto de mais de 100 conferências livres de âmbito nacional representa uma inestimável contribuição à 17ª CNS, seja pela mobilização implicada em suas realizações, seja pelas diretrizes e propostas que, encaminhadas à comissão organizadora da 17ª CNS estão sendo incorporadas, de modo sistematizado, ao Relatório Consolidado das conferências que precedem a etapa nacional.
Em Brasília, os delegados eleitos pelos três segmentos legalmente representados no Conselho Nacional de Saúde (CNS), ou seja, os usuários do SUS, os gestores do sistema e os trabalhadores, debaterão e decidirão sobre o que fica e o que não fica, como decisão da 17ª CNS, nas diretrizes e propostas aprovadas pela conferência. Farão isso, a partir do que consta desse Relatório Consolidado, cuja origem é a etapa municipal desse complexo processo que mobiliza em todo o Brasil, direta ou indiretamente, alguns milhões de pessoas, para avaliar a situação de saúde da população, o funcionamento das instituições responsáveis e propor os rumos que o país deve tomar no setor.
Não sem razão, dada a história recente da saúde pública brasileira, o tema central da 17ª CNS é “Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia – amanhã vai ser outro dia”.
Dentre as muitas contribuições de uma conferência nacional de saúde, está o fato, segundo o Conselho Nacional de Saúde, de que suas deliberações devem ser contempladas no próximo ciclo de planejamento da União e servir de subsídio para a elaboração do Plano Nacional de Saúde e Plano Plurianual de 2024-2027. E, no nível local, proporcionar subsídios à revisão dos Planos Municipais de Saúde, a serem elaborados até 2025.
2.
Mas se o objetivo das “conferências livres de âmbito nacional” foi “ampliar a mobilização da população e estabelecer diálogos diretos com a sociedade brasileira, acerca da garantia dos direitos, da vida e da democracia, bem como da defesa do SUS”, conforme a comissão organizadora da 17ª CNS, é preciso assinalar que, dentre as dezenas de conferências livres, uma não aconteceu: a que deveria se referir à Carreira de Estado do SUS (Carreira-SUS). Ninguém se interessou por ela a ponto de organizá-la. Sem interessados em sua promoção, não ocorreu.
O tema simplesmente não conseguiu entrar na agenda de debates, voltada positivamente à defesa dos direitos sociais, da democracia e da participação popular. Com “caráter deliberativo” para pautar e encaminhar diretrizes e propostas para a etapa nacional da 17ª CNS, as conferências livres contemplaram uma gama imensa de temas, que foram da estratégica telessaúde e saúde digital, à homeopatia no SUS, passando por questões como a recuperação das altas coberturas vacinais, a maconha medicinal, a saúde bucal e a mental, a saúde anticapitalista, dentre outros.
Não obstante a relevância dessas dezenas de temas, tão candentes sobre a saúde no Brasil, a questão da Carreira-SUS restou esquecida. Logo ela, igualmente urgente para desprecarizar as relações de trabalho no sistema e promover sua necessária profissionalização, incluindo a proteção previdenciária, cuja ausência ou deficiências no plano municipal assombra quem trabalha, direta ou indiretamente para o SUS, por meio de empresas terceirizadas, em que prosperam denúncias de má gestão, incluindo fraudes e calotes trabalhistas.
O Documento Orientador apresentado no início do processo da 17ª CNS, em 2022, registrou a flexibilização e ataques aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, denunciou a extinção da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, pelo Decreto nº 9.759/2019, mas não contemplou, de modo específico, a Carreira-SUS, embora haja uma menção genérica à “carreira do SUS”, no bloco que avalia a situação do subfinanciamento crônico do sistema. A Carreira-SUS é, porém, uma reivindicação que vem sendo reiterada pelos delegados de conferências de saúde desde 1986.
Ainda na 16ª CNS, realizada em 2019, foram aprovadas várias propostas com esse objetivo, que podem ser sumarizadas na seguinte proposição: “Garantir um Plano de Carreira, Cargos e Salários do SUS para os servidores das três esferas de governo, com isonomia de vencimentos, no regime estatutário (RJU) que contemple: (a) ascensão funcional e critérios objetivos para o preenchimento dos cargos de chefia; (b) jornada máxima de 30 horas semanais; (c) dedicação exclusiva; (d) política de valorização dos servidores e reajustes salariais dignos; (e) estratégias de fixação de profissionais de saúde no interior do país e em áreas de difícil acesso e provimento, que incluam política de formação profissional com incentivos salariais e de carreira; (f) regulamentação da aposentadoria especial decorrente de atividades de insalubridade e periculosidade; (g) isonomia de vencimentos aos servidores de todos os níveis de complexidade e esferas de governo; (h) abolir todas as formas de precarização e terceirização dos serviços públicos pelo setor privado; (i) incluindo agentes comunitários de saúde e agentes de endemia.”
Apesar da clareza dessa orientação geral de uma Carreira-SUS, a proposta não tem prosperado, nem no Congresso Nacional, nem nas iniciativas do Ministério da Saúde. E, vale reiterar, nem coube na referida agenda de conferência livres. É improvável, contudo, que o tema não esteja contemplado no Relatório Consolidado a ser debatido pelos delegados em julho, pois pelo menos duas conferências livres se ocuparam dos temas da força de trabalho e sua qualificação no SUS. As duas conferências se intitularam “Valorizar o SUS é valorizar a força de trabalho do SUS” e “Educação na qualificação do trabalho em saúde e desenvolvimento do SUS”. Ainda que não se refiram de modo específico à Carreira-SUS, as conexões com o tema contribuem para, de algum modo, dar algum destaque a ele.
3.
Em setores ligados à defesa do SUS há muitos propositores de uma Carreira-SUS que seja interfederativa, multiprofissional, única e nacional. Isto significa que a Carreira-SUS que se almeja deve ter a participação de todos os entes federativos, União, estados e municípios; ser composta por tantos quadros de cargos quantos sejam necessários ao SUS, para contemplar a multiplicidade de funções exercidas pela grande diversidade profissional que caracteriza o trabalho contemporâneo em saúde.
Única, mas flexível e plural, de modo a ser compatível com diferentes necessidades dos serviços e modalidades administrativas públicas; e nacional, pois é preciso assegurar mobilidade em âmbito nacional para os que a integram e definir regras para ingresso e ascenso, jornadas de trabalho, garantias de direitos e fixação de deveres, bem como as condições para o efetivo controle público por conselhos gestores obrigatórios em todas as unidades de saúde do SUS, com regras para exoneração/demissão e administrada em regime de cogestão por colegiados de gestão regional da Carreira-SUS, compostos por representantes dos municípios de cada Região de Saúde do SUS, dos trabalhadores, por meio de sindicatos, e de usuários dos serviços públicos de saúde do SUS, por meio dos conselhos municipais de saúde da respectiva região.
Não faltam, porém, alertas de que isso não seria possível por ser “ilegal”, “violar o pacto federativo”, não ter “viabilidade política no federalismo brasileiro”, não ser “factível, dadas as características da administração pública”, dentre outras ponderações sensatas. Argumenta-se que não é que não tenhamos, ainda hoje, uma Carreira-SUS apenas porque não se quer tê-la ou por falta de “vontade política”. O pleito é justo, mas não é exequível – argumentam autores desses alertas.
O problema, dizem, é muito mais complexo, em decorrência de sermos uma república federativa, de grande extensão territorial, com entes federativos autônomos, marcantes contrastes culturais e de organização da administração pública. Além disso, pelo fato de o SUS ser um sistema de saúde e não um “serviço nacional”, ou seja, uma megaorganização de âmbito nacional e administrado apenas pelo governo federal. A governança do SUS, ponderam, é incompatível com essa concepção de megaorganização centralizada em Brasília.
São todos argumentos consistentes, que devem ser levados em conta em qualquer debate sobre uma Carreira de Estado do SUS. O problema, no entanto, é que essas constatações são vistas como uma espécie de “ponto de chegada”. É assim e não haveria o que fazer, salvo tentar melhorar o que se tem hoje.
Mas os defensores da Carreira-SUS dizem que o cenário atual deve ser visto como um “ponto de partida” e não o fim da estrada. Propõem que, tendo em vista esse cenário, então o que fazer? Por onde ir?
Faço essas considerações, pois o ambiente de uma conferência nacional de saúde, por sua inerente democracia e, portanto, abertura a proposições de qualquer natureza, inclusive as ilegais, é o espaço adequado para produzir respostas a essas indagações sobre o que fazer e por onde ir para conquistar uma Carreira de Estado do SUS. O pressuposto é de que tudo pode ser mudado, incluindo as leis, e obstáculos superados, se houver criatividade, empenho e determinação na superação das dificuldades do caminho. Basta criar alternativas e agir para buscar que o inviável hoje seja viável amanhã.
A esse respeito, recupero uma afirmação de que gosto muito, que Sérgio Arouca valorizou no processo de organização da 12ª CNS, liderada por ele preliminarmente, e que foi realizada de 7 a 11 de dezembro de 2003: “aqui é permitido sonhar”. Sérgio Arouca concebeu o processo e o ambiente daquela conferência de saúde como esse espaço: o de sonhar e tentar viabilizar os sonhos. A conferência não era, para ele, ex-deputado federal e ex-secretário de Gestão Participativa do ministério da Saúde, um espaço burocrático e formal, engessado e amarrado à institucionalidade vigente. Tendo falecido pouco antes do evento, o Conselho Nacional de Saúde lhe fez justa homenagem dando à 12ª CNS o nome de “Conferência Sérgio Arouca”.
Essa perspectiva, criativa e propositiva, negadora do pragmatismo dos gestores de planilhas, de que “aqui é permitido sonhar”, deveria ser a referência do debate sobre uma Carreira de Estado do SUS, pois não há razões para interditar esse tema, de importância estratégica e dos mais urgentes para o SUS – sobretudo, para o futuro do SUS, porque sem trabalhadores da saúde não há SUS. E sem uma carreira que os valorize, não há, propriamente, trabalhadores, mas um conjunto amorfo, difuso e confuso de semiprofissionais, amadores, biqueiros, horistas, uberistas, empreendedores, precários.
O SUS precisa, portanto, de profissionais, vale dizer, de trabalhadores da saúde na melhor acepção do termo. O Estado brasileiro não deveria lhes negar o exercício desse direito, pois conforme a consigna defendida pelo FENTAS, o Fórum das Entidades Nacionais de Trabalhadoras/es da Área de Saúde, “valorizar o SUS é valorizar a força de trabalho do SUS”.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica).
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