Por SÉRGIO BOTTON BARCELLOS*
Combater a estupidez exige mais que informação; requer uma reorganização política do tempo social, pois um sujeito exausto e hiperconectado não pensa — apenas reage, compartilha e obedece
1.
Sim, vivemos no Brasil, que dias atrás ocorreu a chacina que foi a ação a mais letal da história fluminense promovida pelo governo do estado. Foram cenas de horror: moradores alinhando corpos nas vielas, protestos com camisetas brancas, cartazes pedindo “parem de nos matar”.
Dias desses estava conversando com um amigo, sobre a banalidade do mal e um conceito que estou burilando “Metamorfose neoliberal da sociabilidade” (quando a tecnoburocracia que avançou sobre a carreira docente não toma meu tempo reflexivo). Ele me indicou o texto “Da estupidez” de Dietrich Bonhoeffer. Li e fiquei um bom tempo pensando sobre isso. Depois fui estudar sobre. Em 2024 foi lançado o filme “A redenção: a história real de Bonhoeffer “ que ainda não assisti.
Há algo que me inquietou na constatação de que a estupidez não é o oposto da inteligência, mas o seu desvio mais eficiente. Dietrich Bonhoeffer alegou que a estupidez, não é aquela que se confunde com ignorância, mas a que se apresenta como certeza dogmática e o conformismo cognitivo é atualmente o combustível da vida administrada no capitalismo neoliberal e digital. A estupidez não é a ausência de pensamento, mas o abandono voluntário dele. É a abdicação da autonomia intelectual em nome da sobrevivência simbólica em um sistema que recompensa a obediência e o conformismo como se fossem uma opinião própria.
Quando Dietrich Bonhoeffer, teólogo luterano enforcado em 1945 por conspirar contra Hitler, escreveu da prisão sobre “o poder da estupidez”, ele não falava de tolos(as) isolados(as). Falava de um processo social: a fabricação coletiva do conformismo moral em larga escala. Dietrich Bonhoeffer via, com espanto e desespero, como pessoas cultas, religiosas, eruditas, professores(as) universitários(as) etc. haviam se tornado cúmplices da barbárie, não por maldade, mas por renúncia. Renunciaram ao exercício de pensar, de julgar, de se colocar diante da realidade sem o amparo da autoridade ou da conveniência. Esse era, para ele, o “pecado” maior: a rendição intelectual e da consciência.
Quando li textos de Dietrich Bonhoeffer e sobre sua história fiquei matutando algum tempo e pensei em fazer uma tentativa de aproximação com a problemática das mídias digitais, fake news e o Partido digital bolsonarista. Não porque nelas se encontram uma ferramenta neonazista explícita, mas porque nelas florescem o mesmo mecanismo: a “terceirização da consciência”. Cada curtida, cada compartilhamento indignado, cada slogan reciclado pode ser considerado uma pequena confissão de rendição.
O algoritmo programado pelas Big Techs substituiu a autoridade, a bolha substituiu o partido e a convicção instantânea tomou o lugar da moral? Como na Alemanha dos anos 1930, não é o ódio que triunfa, mas a obediência automatizada e a fadiga cognitiva. Isto é, o medo e o esgotamento diante da complexidade e o desejo de delegar o pensamento a uma autoridade que aparenta estar cheia de certezas e soluções fáceis. Ou seja, a estupidez pode ser considerada um fenômeno social e é um problema sociológico.
2.
O experimento de Stanley Milgram, duas décadas depois da morte de Dietrich Bonhoeffer, trouxe aspectos semelhantes em laboratório. Pessoas comuns, instruídas, intelectuais, simpáticas, eram capazes de aplicar choques elétricos potencialmente letais em outros indivíduos apenas porque uma figura de autoridade lhes pedia. Sessenta e cinco por cento chegaram ao limite. O dado que assusta não é o número, mas a suposta aparência de “normalidade”. Não eram sádicos. Eram gente como nós, obedecendo à “voz neutra” da ciência, à segurança do jaleco e ao conforto da ordem. Stanley Milgram mostrou que a obediência não é algo “anormal”, é a norma.
Atualmente estudando sobre o liberalismo autoritário (Chamayou, 2020), estava lendo sobre a lógica da produtividade e da performance e como transformam obediência em virtude. O(a) trabalhador(a) obediente é considerado(a) eficiente. O cidadão dócil é chamado de pragmático. O(a) assessor(a) que só reage as ordens e as cumpre é considerado(a) técnico(a). O medo de parecer questionador(a) ou conflituoso(a) virou uma espécie de pacto da servidão voluntária.
No governo, nas empresas, nas universidades etc., o medo de parecer “divergente” é o que sustenta uma ideia falaciosa de centro – e o centro é o lugar no qual o exercício do pensamento diante da complexidade da realidade vai erodindo.
A estupidez, nesse sentido, pode ser funcional. Ela serve às estruturas de poder porque simplifica o mundo até o ponto em que ele se torna governável para um determinado grupo restrito que ocupa espaços de poder social. É um mecanismo semelhante do que o descrito pôr Leon Festinger em sua teoria da dissonância cognitiva: quando confrontados com fatos que contradizem suas crenças, os indivíduos tendem a rejeitar a realidade para preservar a sua crença. É mais fácil negar o real do que suportar o desconforto do exercício do pensamento complexo. E o capitalismo contemporâneo e os seus mecanismos de acumulação e reprodução financeira exploraram esse impulso com precisão cirúrgica.
Nas redes sociais, a dissonância é amortecida por doses diárias de dopamina. O like funciona como “anestésico moral”. A indignação performática substitui o pensamento necessário diante de uma realidade complexa. A “opinião” se torna mercadoria e a inteligência vira um ativo de visibilidade. Não se trata mais de parar e pensar, mas de parecer que se pensa. A semântica do capitalismo digital é estética: o conteúdo é julgado não por sua coerência, mas por sua viralidade. O lacre é o que da visibilidade, o like é o que engaja e o lucro vai para as big techs.
Posso descrever que durante os meses em que trabalhei em Brasília, assisti muita coisa parecida com isso que se denomina como estupidez funcional que estão relatadas no livro “570 dias no governo Lula 3: histórias, bastidores e contradições”. Nos corredores da presidência e dos ministérios, bem como nos gabinetes parlamentares, vi técnicos(as) que haviam se transformado em burocratas do consenso. Incompetentes ocupando altos cargos do executivo por serem indicações político-pessoais e bajuladores (as).
Pessoas que ocupam cargos de confiança há muito tempo em governos de matizes ideológicas distintas. Convivi com algumas pessoas capazes de cumprir exemplarmente seu trabalho, muitas outras nem conseguiam redigir um ofício, mas em grande parte ambas tinham uma característica em comum: não formulavam e nem expressavam uma questão crítica. O pensamento crítico era visto como obstáculo; a reflexão e o trabalho voltados ao público, como ingenuidade.
A palavra “governabilidade” funcionava como mantra, uma espécie de autorização simbólica para o conformismo cognitivo. E percebi o quanto o Estado, nesse momento de governo de “frente ampla (neo)liberal” sob o comando de Lula, depende da manutenção dessa anestesia coletiva: pensar diante de uma realidade complexa dá trabalho e o trabalho de pensar é incompatível com o ritmo da “máquina política” e da reeleição.
3.
Dietrich Bonhoeffer, Stanley Milgram e Leon Festinger (cada um a seu modo) entenderam no século XX algo que foi aperfeiçoado no capitalismo atualmente: o poder não precisa mais impor o silêncio; basta produzir ruído. O excesso de informação e a hiperconexão cumprem a mesma função que a censura clássica. Saturados(as), ansiosos(as), sobrecarregados(as), estressados(as) e endividados(as) nos tornamos cada vez menos capazes de distinguir o essencial do irrelevante.
A estupidez se infiltra como defesa psíquica: pensar sobre a realidade e o quanto somos também responsáveis por ela desacomoda, e ninguém quer doer o tempo todo. É por isso que as redes não são apenas ferramentas; são sistemas de captura cognitiva prometendo satisfação e respostas fáceis. Transformam a atenção em mercadoria e a alienação em estilo de vida.
Há, no fundo, uma economia política da estupidez. O neoliberalismo, ao precarizar a vida e ao privatizar o tempo, cria as condições perfeitas para o colapso do pensamento complexo. O sujeito exausto exposto a uma escala de trabalho 6×1, hiperconectado e endividado não tem energia e nem tempo para uma reflexão demorada diante de uma realidade complexa. O raciocínio lento, aquele que exige pausa, leitura, dúvida e questão se torna um luxo. E como todo luxo, ele é restringido a poucos. A estupidez, não é um desvio moral individual, mas uma estrutura social de reprodução. E foi isso que Dietrich Bonhoeffer conseguiu refletir e perceber.
Nas redes sociais, o indivíduo tende a se transformar em vetor de desinformação sem saber. E quando o faz, é com convicção moral. É aqui que entendo que Dietrich Bonhoeffer possa ser urgente. Ele advertia que o perigo da estupidez é que ela se julga virtuosa. O estúpido funcional não é o cínico, mas o crente. Ele acredita estar do lado “certo” da história, da “ciência”, da “democracia”, da “verdade”, sem perceber que o seu próprio ato de acreditar já foi capturado pela estupidez. A convicção virou uma forma de obediência. E a dúvida, um risco social.
A estupidez parece ser satisfatória porque é coletiva. Como mostrou Leon Festinger, a dissonância diminui quando estamos cercados por quem pensa igual. É por isso que os algoritmos são programados para premiar o consenso e punem o dissenso. Não só eles, mas estruturas como governos, universidades, cultos, comunidades temáticas etc. Cada bolha é uma comunidade de uma ignorância tola, não de uma ignorância curiosa. E quando alguém tenta questionar, quem reproduz o sistema posto reage com escárnio, linchamento simbólico, cancelamento e demais mecanismos sutis de coerção moral. Muitas vezes a consciência insurgente manifesta tende a se tornar insuportável diante de um grupo que movimenta essa correia de reprodução.
4.
A questão de Dietrich Bonhoeffer parece permanecer viva: como pensar diante da realidade por si mesmo quando pensar não é rápido e nem fácil? Ele chamou de “graça custosa” o esforço de manter a consciência desperta em tempos de massificação. A “graça barata” é a das opiniões prontas; a custosa é a da solidão crítica. E talvez essa seja a maior forma de resistência possível atualmente: reivindicar tempo e recuperar o direito de pensar lentamente.
Mas pensar lentamente exige criar tempo, e tempo, no capitalismo, passou a ser privilégio. Por isso, a luta contra a estupidez é também uma luta política. Não se trata apenas de ensinar pensamento crítico nas instituições de ensino, mas de reorganizar o tempo social. Reduzir a jornada de trabalho, redistribuir renda, garantir estabilidade social e perspectiva de futuro. Todas essas políticas, que aparentemente impactam a economia capitalista, são também políticas cognitivas. Criam as condições de tempo para que o exercício de pensar diante de uma realidade complexa e cada vez mais desafiadora volte a ser possível. Um povo exausto não para e pensa, apenas reage.
O que aprendi observando a tecnoburocracia na universidade, inclusive a que trabalho atualmente, e meses atrás na Presidência da República em Brasília é que o consenso (neo)liberal não teme a ignorância, teme a consciência insurgente. A ignorância obediente é previsível, a reflexão e o questionamento são perigosos. Talvez seja por isso que o sistema posto e seus líderes recompensam quem obedece e marginaliza quem questiona.
E quando grupos que se dizem de esquerda se adaptam a esse modelo, eles se tornam uma caricatura de si mesmos: governando para a ordem que a doméstica (estou preparando um texto sobre isso usando como fonte o discurso recente de Lula na ONU). Isto é, muitos governos e em muitas instituições geralmente se prefere a estupidez funcional à consciência insurgente.
Bonhoeffer acreditava que a estupidez é mais perigosa que a maldade porque ela se reproduz de forma veloz. Além disso, eu diria que, no capitalismo neoliberal e digital, ela é também lucrativa. O estúpido funcional também é o consumidor ideal de fake news e de conteúdos que prometem soluções rápidas e fáceis: previsível, ansioso, cheio de certezas imediatas e emocionalmente disponível. As plataformas o conhecem melhor do que ele e a si mesmo. Cada deslize de dedo é um ato de rendição cognitiva. Cada indignação instantânea é um pequeno sacrifício no altar do algoritmo.
Talvez o desafio contemporâneo seja reconquistar o direito a ter tempo para pensar e a alteridade diante de opiniões diversas. Ler devagar, ouvir o outro, suportar a dúvida, aceitar a divergência, não se conformar facilmente etc. O que Bonhoeffer chamou de “graça custosa” é, atualmente, o que eu chamaria de “consciência insurgente”: a coragem de não engajar, de não compartilhar, de não ceder à compulsão de opinar e aderir em relação a qualquer coisa que aparece de forma instantânea, fácil e “milagrosa”. Resistir à estupidez é também resistir ao espetáculo. Ou seja, é sobre não aderir, mas reivindicar tempo e uma participação efetiva.
O aprendizado sobre a estupidez parece ser amargo e por mais que não se queira, ele é necessário. Ninguém está imune, pois a estupidez funcional é ampla e irrestrita. Ela habita grupos que se dizem de esquerda (progressistas), à direita, a extrema direita, o governo e a oposição. Habita nossas casas, os gabinetes, as reuniões de colegiado nas universidades, a sala de aula, o feed etc. Talvez o primeiro passo para resistir seja admitir a nossa própria vulnerabilidade e ignorância, mas com curiosidade. Parar e pensar diante de uma realidade complexa é vigiar a si mesmo, não no sentido moralista, mas como ato de cuidado e preservação do que é sermos humanos.
A estupidez, então, pode ser considerada um modo de governar e tomar decisões, entre tantos outros disponíveis que não são escolhidos. Ela não se impõe apenas pela força, mas também pelo cansaço. Não se combate a estupidez com slogans e frases fáceis, mas com luta, tempo, silêncio, pausa e estudo. O pensamento complexo torna-se também um dos atos radicais necessários na medida em que está associado a desacelerar. E desacelerar é também um ato de cuidado consigo mesmo(a) e de negar a lógica do lucro. Isto é, estamos precisando quem sabe é de uma práxis insurgente, pois os pensamentos só são exercitados e criados na realidade do dia a dia.
Como escreveu Dietrich Bonhoeffer, “a estupidez é um inimigo mais perigoso que o mal”. E acrescentaria: no capitalismo neoliberal e digital, a estupidez faz parte do modo como à autodestruição é movida pelo desejo de reagir, pertencer, participar e gozar diante da sociedade do espetáculo neoliberal.
*Sérgio Botton Barcellos é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Autor, entre outros livros, de 570 dias no governo Lula 3: histórias, bastidores e contradições (Pimenta Cultural). [https://amzn.to/47bvbQx]






















