As três guerras

Imagem: Ahmed Akacha
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Por WALDEN BELLO*

A recente decisão do Tribunal Internacional de Justiça pode não ter um impacto imediato na guerra em curso, mas irá erodir a legitimidade do projeto de colonialismo e apartheid dos colonos no longo prazo

As três grandes guerras ou conflitos atualmente em curso demonstram a volatilidade da intersecção entre o local e o global.

No conflito Hamas-Israel, vemos como a manutenção do Estado colonizador-colonial israelense está entrelaçada com a preservação da hegemonia global dos Estados Unidos.

Na guerra da Ucrânia, uma sangrenta guerra de atrito entre dois países que foi provocada pela pressão de Washington para expandir a OTAN a um país da antiga União Soviética.

No Mar do Sul da China, estamos assistindo à elevação das disputas territoriais e de recursos naturais a um conflito global, devido ao esforço dos EUA para manterem sua hegemonia global contra a China, para a qual estão perdendo a competição geoeconômica, mas sobre a qual continuam desfrutando de absoluta superioridade militar.

Em suma, a principal causa da instabilidade global atual reside na fusão do local e do global, da geopolítica e da geoeconomia, do império e do capitalismo.

Equilíbrio de poder, equilíbrio de terror

O que torna os conflitos atuais especialmente voláteis é o fato de estarem ocorrendo em meio à ausência de qualquer autoridade coercitiva multilateral efetiva para impor uma solução pacífica. Na Ucrânia, é o equilíbrio do poder militar que determinará o resultado da guerra e, neste caso, a Rússia parece estar prevalecendo sobre o eixo Ucrânia-OTAN-EUA.

No Oriente Médio, não existe um poder coercitivo efetivo que se oponha ao behemoth militar israelo-americano – o que torna ainda mais notável o fato de que, apesar de uma campanha genocida que já dura quase quatro meses, Israel não tenha atingido seu principal objetivo de guerra que é a destruição do Hamas.

No Mar do Sul da China, o que determina o curso dos acontecimentos é o equilíbrio de poder entre a China e os Estados Unidos. Não existem “regras do jogo”, portanto há sempre a possibilidade de que navios americanos e chineses brincando de “jogo da galinha” – ou dirigindo-se um ao outro e depois desviando-se no último minuto – colidam acidentalmente, e esta colisão pode escalar para uma forma mais elevada de conflito, como uma guerra convencional.

Sem restrições coercitivas efetivas impostas por uma organização multilateral ao hegemon e seus aliados, estes podem facilmente descambar para o genocídio e o assassinato em massa. Seja no Vietnã, Iraque, Afeganistão ou em Gaza, as Convenções de Genebra e a Convenção contra o Genocídio revelaram-se meros pedaços de papel.

O direito de auto-defesa

Na ausência de um árbitro multilateral capaz de impor sua vontade, só o desenvolvimento de um contrapoder político, diplomático e militar pode conter o hegemon. Esta é a lição que as guerras de libertação nacional na Argélia e no Vietnã ensinaram ao mundo. Esta é a lição que a resistência palestina nos ensina hoje.

É por isso que, ao mesmo tempo em que condenamos as guerras imperiais levadas a cabo pelo hegemon, temos que defender o direito dos povos a recorrerem à autodefesa armada.

Isto não significa que os esforços de pacificação da sociedade civil mundial não tenham um papel a desempenhar. Têm. Ainda me lembro de como, pouco antes da invasão do Iraque, o The New York Times publicou um artigo, em 17 de fevereiro de 2003, em resposta a mobilizações massivas contra a planejada invasão do Iraque, em que dizia que só restavam duas superpotências no mundo, que eram os Estados Unidos e a opinião pública mundial, e que o então presidente George W. Bush ignorava esta efusão de resistência mundial por sua conta e risco.

A sociedade civil global contribuiu, de fato, para o fim das guerras no Afeganistão e no Iraque, ao erodir a legitimidade destas guerras entre o público norte-americano, tornando-as tão impopulares que até Donald Trump as denunciou – isto é, em retrospectiva – tal como o fizeram muitas personalidades que votaram a favor da guerra no Congresso dos EUA.

A recente decisão do Tribunal Internacional de Justiça, que ordenou a Israel que impedisse o genocídio em Gaza, terá provavelmente um impacto semelhante ao da resistência da sociedade civil global à invasão do Iraque por Bush Jr. A decisão do Tribunal Internacional de Justiça pode não ter um impacto imediato na guerra em curso, mas irá erodir a legitimidade do projeto de colonialismo e apartheid dos colonos no longo prazo, aprofundando o isolamento de Israel.

Uma paz justa

Vemos muitas vezes a paz como um estado ideal. Mas a paz de cemitério não é paz. Uma paz comprada ao preço da repressão fascista não só não é desejável como não durará.

Os povos oprimidos, como os palestinos, recusarão a paz a qualquer preço, a paz que é obtida à custa da humilhação. Como demonstraram nos 76 anos desde a Nakba, a expulsão massiva de suas terras e de seus lares, os palestinos não se contentam com nada menos do que uma paz com justiça, que lhes permita recuperar suas terras confiscadas pelos israelenses, estabelecer um Estado soberano “do rio ao mar” e permitir-lhes erguer a cabeça com orgulho.

O resto do mundo deve-lhes seu apoio incondicional para realizar essa paz justa por todos os meios possíveis, ao mesmo tempo em que nos opomos às guerras imperiais conduzidas por hegemons em outras partes do mundo.

*Walden Bello é doutor em sociologia pela University of Princeton e ex-representante na Câmera de Deputados das Filipinas (2009-2015). Autor, entre outros livros, de Counterrevolution: The global rise of the far right (Fernwood Publishing) [https://amzn.to/3TSqPax].

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no portal Counterpunch.


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