Por JOÃO VITOR MORAES*
Peça de teatro
Fita 01
Luzes suaves, em cena duas cadeiras, uma escrivaninha, algumas fotografias e livros, e uma mesinha com um abajur. Entra uma moça, trazendo uma bolsa lateral. Curiosa, começa a observar tudo com muita atenção, até que chega uma mulher com a cara fechada.
Nathalia: (Em pé na porta) Então você já chegou?
Sara: (Se assusta) Opa! Oi, me desculpe, eu só estava olhando… (O clima fica estranho, e Sara se aproxima e estende a mão para a mulher, que por sua vez aponta para as cadeiras) Tudo bem?
(As duas se sentam, Sara pega um bloco de notas, uma caneta e um gravador de voz.)
Nathalia: (Pega um cigarro do bolso) Você se importa? (Sara diz que não com a cabeça) Você vai gravar ou escrever?
Sara: (Arrumando tudo) Os dois, na verdade… Eu gosto de tomar nota de algumas coisas. Tudo bem pra você?
Nathalia: (Dá uma longa tragada no cigarro) Tudo bem. (Fica inquieta, olhando para a moça)
Sara: Tudo pronto! Podemos?
Nathalia: Sim. (Um curto silêncio) E por onde eu começo?
Sara: Pode ser pelo seu nome. Depois de onde você veio. E pode começar a contar a história.
Nathalia: (Respira fundo) Tá… Meu nome é Natália Amaro, eu vim de uma cidade do interior de São Paulo chamada Botucatu. E tô aqui pra contar o que aconteceu comigo e com meus amigos… (Traga de novo) E como eu fui presa e torturada.
Sara: Sem pressão, tá? Vai no seu ritmo… Muito obrigada pela confiança, é muito importante essa coragem de expor o que aconteceu.
Nathalia: Não acho que seja coragem, eu sinto que é necessário. Desde que vi sua matéria falando dos casos de desaparecimentos nas cidades do interior, não paro de pensar nisso.
Sara: E se nas capitais acontece tudo o que acontece, imagina no interior? E por onde quer começar?
Nathalia: Pelo dia 30/07/72, o dia do “Krig-Há Bandolo”.
Sara: O quê? O disco do Raul?
Cena 01: “Krig-Há Bandolo”
A cena começa com luz alaranjada, remetendo ao sol da manhã que acabou de nascer. Em cena, um rapaz está sentado em um banco de praça lendo um quadrinho do Tarzan. Entra Nathalia, meio insegura.
Nathalia: (Com uma postura mais jovem) E aí, bicho? Faz tempo que você chegou?
Carinha: (Olha rapidamente para Nathalia) Oi, gatinha! Faz meia hora mais ou menos. A Aninha já chegou também, ela foi na catedral. Mas aí? Tá animada?
Nathalia: Tô sim, Carinha! Faz tempo que não tinha um encontro dos estudantes. Vamos ver o que acontece, né?
Carinha: É… A coisa parece que tá feia. Se aqui o delegado Jerônimo tá botando banca, imagina lá em Sampa? O duro é que aqui a gente mal fica sabendo das coisas.
Nathalia: (Se senta ao lado do rapaz) A gente tem que ficar com o olho bem aberto por lá! E o delegado? Tá atazanando vocês e o Zeca?
Carinha: Nem fale. Ontem ele ficou passando na frente do restaurante toda hora. Sorte que a gente foi embora no carro do pai do Zeca. Sem falar que é muito estranho o jeito que ele fica olhando pra Aninha…
(Entra Aninha segurando um terço)
Aninha: Oi, Nati! (Abraça a menina) Eu fui fazer uma oração, tô meio estranha, não sei… (Procura se lembrar de algo) Como é o sinal mesmo? Krig badulu?
Carinha: (Pega a revista e mostra) É Krig-Há Bandolo!
Nathalia: Dudu, o que significa mesmo?
Aninha: Isso eu lembro! “Aí vem o inimigo.”
(Um som de motor começa a se aproximar até estacionar.)
Zeca: (Gritando em off) Rápido! Krig-Há Bandolo! Bora! Krig-Há Bandolo!!!
(Os três se assustam e começam a ouvir uma sirene ao fundo. Então, eles saem correndo)
Nathalia: (Em off, com um tom sério) O Zeca acelerou a Kombi dele com tudo. Não demorou muito pra viatura do delegado aparecer! (Som de motor e sirene aparecem) E começou uma perseguição. A gente foi pela estrada e depois de umas curvas entramos numa estradinha de terra. E numa curva demais… (Barulho de carro capotando. E silêncio)
Fita 02
As duas conversam em off.
Sara: (Na ponta da cadeira) E o que aconteceu?!
Nathalia: (Acende outro cigarro) Depois que a Kombi capotou, Zeca me pegou pelo braço e me mandou correr o mais rápido possível. E foi o que eu fiz… Corri!
Sara: E a Aninha e o Dudu? O que aconteceu com eles?
Nathalia: (Solta fumaça) Essa foi a última vez que vi os dois.
Sara: Sinto muito…
Nathalia: Vamos continuar?
Sara: Só um momento, vou trocar a fita. (Vai pegar outra fita na bolsa) Eu adorei sua última exposição, suas fotos são barulhentas!
Nathalia: (Desmonta a postura séria) Barulhentas? Obrigada, eu acho. Eu me amarro em fotografia e de repente virou minha profissão.
Sara: (Coloca outra fita) Nathalia, o que aconteceu depois que você saiu correndo?
Nathalia: Você saiu do Brasil quando?
Sara: (Se surpreende com a pergunta) O quê? Foi em 77. Vim para Londres assim que me formei. Meu professor estava trabalhando numa revista e me convidou para tentar denunciar as coisas que estavam acontecendo no Brasil. Acabei ficando e desenvolvendo esse trabalho de denunciar e contar histórias como a sua.
Nathalia: Eu não gostei muito de Londres. Chove o mundo…
Sara: (Ri) Por isso Paris?
(Nathalia sorri para a moça)
Sara: (Para o gravador) Quer dar um tempinho?
Nathalia: (Fica em silêncio três segundos) Vamos seguir.
Sara: (Da play no gravador) E o que aconteceu depois que você saiu correndo?
Nathalia: A Kombi foi perseguida por um bom tempo na estrada. Estávamos perto de outra cidade quando capotou. Então eu corri e acabei chegando na área rural dessa outra cidade.
Sara: O que aconteceu depois?
Nathalia: Eu encontrei um açude e lá estava um rapaz pescando…
Cena 02 – o açude
Nathalia entra em cena desesperada, com roupas rasgadas e machucada. Um rapaz está sentado na boca de cena pescando e tirando um cochilo. Nathalia vê o rapaz, pensa por um momento no que fazer e vai desesperada até ele. Ele acorda assustado com os gritos da moça.
Nathalia: (Desesperada) Por favor, moço, você precisa me ajudar! (Segura o braço do rapaz)
Rapaz: (Meio perdido e com um sotaque carregado) Calma, moça, o que aconteceu? Você está toda machucada!
Nathalia: Me ajude! Por favor!
Rapaz: Eu ajudo sim, mas calma, tá? Me fala o que está acontecendo. Se acalma, respira, tá bom? (Ela segura na mão dele e os dois vão respirando juntos para acalmá-la)
Nathalia: (Respirando rápido) Estão querendo me matar! (Respira fundo) Um delegado da minha cidade quer me pegar e acho que ele pegou meus amigos! (Fica preocupada novamente) Por favor, moço, eu preciso me esconder!
Ele fica olhando fixamente para ela por alguns segundos, pega suas coisas e estende a mão para a moça. Ela desconfia, mas, não tendo outra opção, vai embora com o rapaz, e juntos saem de cena. A luz apaga e depois acende novamente. O rapaz está sentado numa cadeira, meio impaciente, e fica ali por alguns segundos. Depois desse tempinho, Nathalia aparece com uma toalha secando o cabelo.
Rapaz: Está melhor?
Nathalia: (Estranha a fala dele) Estou sim… Você salvou a minha vida e eu nem perguntei o seu nome ainda, né?
Rapaz: Benedito. Mas pode me chamar de Dito.
Nathalia: Dito… Eu sou Nathalia! Obrigada de verdade. Eu sei que é estranho uma maluca aparecer assim, do nada, fugindo da polícia.
Dito: Não tem nada não… Eu moro aqui com a minha mãe. Ela deve ter ido à casa da dona Cida. (Pensando) Mas o que aconteceu?
Nathalia: Eu moro em Botucatu, conhece? Meus amigos e eu íamos para São Paulo, ia ter um encontro de estudantes, mas lá em Botucatu tem um delegado que fica perseguindo as pessoas e ele se aborreceu com a gente. Ele pegou raiva da gente depois que nosso professor foi espancado por ele. O delegado nos perseguiu na estrada. Nosso carro capotou e ele, com alguns policiais, vieram para cima da gente. Eu saí correndo… E aí encontrei você.
Dito: Ué, por que bateram no professor? Essa sua história parece a de uns caras que apareceram na fazenda que meu tio toma conta lá em Taguaí uns anos atrás.
Nathalia: Como assim?
Dito: Apareceram uns sujeitos que também estavam fugindo de uns homens com um carro preto. Um deles era professor e o outro era um pintor… Meu tio desconfiou e chamou a polícia. Eles foram embora antes, mas não pareciam gente ruim.
Nathalia: Deve ser uma situação parecida… (Ficha cai) Você não vai chamar a polícia, não vai? (Sutilmente procura uma saída)
Dito: Nada! Eu nem gosto muito dos policiais. Eles vieram aqui na vila uma vez e fizeram muita bagunça! Pode ficar tranquila, eles não aparecem aqui tem um tempão. E ninguém precisa saber que você está fugindo. Se alguém perguntar, fala que é minha prima. Tá bom?
Nathalia: Poxa, Dito… Eu nem sei como agradecer a sua ajuda…
Dito: Não esquenta a cabeça, tá? Minha mãe vai gostar de te conhecer. Vamos à pracinha, estão organizando a festa da igreja. Vamos lá dar uma forcinha?
Nathalia: É… Será que é seguro?
Dito: Lógico! Só não mexa com ninguém que dá certo. No máximo vão fazer fofoca.
Nathalia: Tá bom… Eu acho…
Dito: Você fica por aqui um tempinho e depois eu te levo pra casa. Em dez dias vou levar umas encomendas aqui do sítio e vou passar por Botucatu. É isso, né?
Nathalia: (Dá um sorriso tímido) Olha lá, Dito! Vou confiar em você, viu? (Os dois se olham e, no silêncio, encontram uma cumplicidade) Vamos lá?
Blackout.
Fita 03
Gravador para de gravar.
Sara: (Batendo a caneta no bloquinho) Benedito… (Muda rapidamente de assunto) E quanto tempo você ficou nesse lugar?
Nathalia: (Percebendo algo) O que foi isso? Você ficou tensa do nada. O que aconteceu?
Sara: (Respira fundo) Acho que você estava numa zona rural entre Botucatu e Itatinga.
Luzes se acendem e as duas estão no escritório novamente.
Nathalia: Como você sabe disso? Nem eu sabia!
Sara: (Tensa) Então… Acho que você escapou de algo terrível. Benedito Silva. Conhecido como o “Diabo do Açude”.
Nathalia: (Sem entender nada) O que você está falando? Me explica direito esse papo estranho!
Sara: Eu estava pesquisando sobre você, a situação da cidade, os desaparecidos, etc. E achei uma matéria que fala desse caso. Benedito estuprou e matou uma jovem de dezoito anos e um menino de vinte e um anos. Os corpos foram encontrados no dia 09.08.72, dez dias depois, no açude da família.
Nathalia fica em choque.
Sara: Os corpos estavam bem machucados. Os pais só conseguiram reconhecer os filhos porque a menina usava um terço que eles tinham dado para ela naquele ano. E aí dois mais dois, né? O amigo que tinha sumido no mesmo período era claramente a mesma pessoa.
Nathalia: (Ainda impactada) Terço? Um vestido diferente com as contas maiores?
Sara: Sim…
Nathalia: Vo… Você se lembra do nome das vítimas?
Sara: Mariana Oliveira. E o menino é… Eduardo… Eduardo…
Nathalia: Eduardo Braga. (Olha para a repórter que confirma que sim)
Nathalia se levanta indignada e revoltada. Xinga e derruba coisas. Depois olha para Sara que não entende a reação. Nathalia respira fundo e volta a sentar.
Nathalia: Liga. Liga agora esse negócio! (Sara rapidamente liga o gravador e blackout)
Cena 03 – cativos
Foco se acende. Nathalia está sentada de frente para o público.
Nathalia: Continuando… No mesmo dia, mais tarde, eu conheci a mãe do Dito. (Com carinho) A dona Elô, uma gracinha de pessoa! Ela era linda, acho que tinha uns 40 no máximo! Era simpática e muito paciente. (Com saudade na voz) Ela me recebeu com tanto carinho e afeto… E depois que eu contei a minha história, ela compreendeu e me disse que era professora em Bauru, mas depois de 64 ela e o marido vieram morar no sítio para criar o filho deles. E tudo ia bem até o dia em que Dito falou que os policiais fizeram uma bagunça e no meio da confusão sobrou para ele. Ele levou cinco tiros, dois na cara e os outros três foram só pela diversão. (Acende um cigarro) É… Foda! (Tragando o cigarro)
Sara: (Em off) E depois o que aconteceu?
Nathalia: (Animada) Passaram então dois dias e veio a tal festa que o Dito não parava de falar. Era tipo uma quermesse, sabe? Tinha bastante comida boa, um churrasco maravilhoso! Muita dança e música também… A mãe do Dito soube que eu gostava de fotografia, então ela pegou uma máquina fotográfica Kodak Instamatic S-10 que era do marido para eu tirar fotos. Depois me deu de presente. Os vizinhos todos juntos se divertiram muito! Eu e o Dito ficamos muito próximos e a gente dançou e se divertiu. (Fica introspectiva e fuma o cigarro) Lembra que ele me disse para eu não mexer com ninguém? Pois então, tinha uma moça que era filha da dona Cida que ficou com ciúmes de mim com o Dito. Ela era apaixonada por ele e reclamou com o irmão mais velho dela. Para animar a irmã, ele resolveu levá-la até a cidade. Deve ser Itatinga, pelo que você disse…
Sara: Sim… Espera. Quanto tempo tinha passado até aí?
Nathalia: Uns sete dias. Eu e o Dito não nos desgrudávamos. E a real? Eu estava gostando de ficar ali, sabe? Eu tinha muito medo de voltar para casa e estava indo tudo muito bem! Infelizmente, bem até demais… (Seu rosto fica inexpressivo como pedra) E os filhos da Cida estavam almoçando no estabelecimento que fica bem na entrada da cidade. Enquanto eles comiam, três homens entraram no lugar e começaram a perguntar se alguém tinha visto uma mulher com as minhas características… Dito e eu fomos presos naquela tarde…
Sara: (O foco de Sara se acende) Espera aí… (Vai caindo a ficha) Como o Benedito matou aquelas pessoas se ele estava com você todos esses dias e vocês foram presos juntos? (Confusa) Isso é possível? E como eu não percebi isso antes? Nathalia, por favor, continua a história!
O foco de Sara também se apaga. E só se ouve o barulho do gravador.
Cena 04 – o porão
Foco vermelho acende. Nathalia está presa a uma cadeira estranha, com partes do corpo expostas, suja, com roupas rasgadas e machucadas. Desfalecida, ela vai acordando lentamente e reage como se sentisse muita dor. De repente, uma figura sinistra, vestida de preto e com o rosto coberto, entra em cena.
Nathalia: (Sentindo um alívio estranho) Então, finalmente você chegou.
Vulto: Então você já sabe quem eu sou? Isso é ótimo, me poupa tempo! (Ele se aproxima e dá uma boa olhada) Você está um lixo. (Depois começa a caminhar no escuro do palco)
Nathalia: Depois de tanta porrada e tanto choque, imagino que minha aparência não seja das melhores… (Tenta se mexer)
Vulto: (Tom de deboche) Que lástima. Mas não se importe com isso, somos amigos! Isso não tem relevância nesta altura do campeonato. (Coloca as mãos na cadeira)
Nathalia: É isso que somos? Amigos? Se é assim, me leve embora daqui de uma vez.
Vulto: É só o que te resta, não é? Você tinha tudo… Agora está aí, com a carne dilacerada, os ossos moídos, cheia de feridas, e toda suja de sangue e pus. Era tão linda, tão promissora…
Escutam-se gritos de dor e agonia.
Vulto: (Começa a acariciar o cabelo da moça) Olha lá outro pobre coitado que foi tirado da sua casa, espancado, eletrocutado, violado e humilhado pela sua grandiosa pátria amada… E sabe o que é pior? Ninguém nunca vai saber nem o nome do infeliz… (Segura o rosto da moça) E você? Também vai ser outra esquecida nessa história?
Nathalia: Eu já nem sei mais o motivo de estar aqui. Por mais que eu sinta que dentro de mim existe uma boa razão, não consigo me lembrar… Só sinto dor e meus ossos tremem. (Ela coloca a mão no rosto encapuzado) Faz parar? Me dê seu beijo e me tire logo deste mal! (Desfalece novamente)
Vulto: (Se desvencilha dela e volta para o escuro) Nathalia… Eu sinto informar que não é você que eu vim buscar. Você não vai cair no esquecimento… Só se quiser… (Vulto some)
Policial: (Em off) Acorda, vagabunda! Vai! Anda logo, sua desgraçada. Tem costa quente, né? Bora que estão te esperando!
Ela vai acordando e a luz se apaga lentamente.
Fita 05
Nathalia: (Em off) Quando estava sendo tirada pelo policial do buraco onde estava, lembro de andar por um corredor meio escuro onde havia algumas cenas e galpões como aquele em que eu estava. Quando passamos na frente de um desses galpões, o policial me empurrou e segurou minha cara contra a porta. Abriu a grade para que eu pudesse olhar. (Respira fundo) Quando eu olhei, a luz era pouca, forcei os olhos e vi um homem nu amarrado a uma cadeira, todo arrebentado. O cheiro era horrível. Tinha cheiro de várias coisas, mas o que me marcou foi o cheiro de carne queimada… O policial disse que da próxima vez seria eu e me levou para fora.
Sara: E você conseguiu ver quem era esse homem?
Nathalia: Era o Dito.
Sara: Então, quer dizer que…
Nathalia: Ele não matou ninguém, foi incriminado… Mariana Oliveira é o nome da Aninha. O delegado ficou de olho nela. Eduardo Braga é o Carinha.
Sara: (Taca a caneta longe) Filhos da puta! Malditos! (Respira fundo) E como você saiu? Que papo é esse de costas quentes?
As luzes se acendem e voltamos ao escritório, com as duas moças conversando.
Nathalia: Lembra do Zeca? Então. Ele é sobrinho do capitão do quartel de Botucatu. Assim que o pegaram, já o soltaram e ele foi atrás da gente. Disseram a ele que só tinham me pegado e que os outros dois não tinham aparecido.
Sara: A essa altura, eles já estavam mortos.
Nathalia: Eu e Zeca desistimos de ir embora do Brasil. Viemos para Londres e comecei a estudar fotografia. Quando me prenderam, levaram meus pertences. A dona Elô tinha me dado uma mochila com algumas roupas, onde eu tinha deixado a câmera que tenho até hoje. Tentamos levar uma vida juntos, mas eu não conseguia conviver com ele… Sempre me lembrava de tudo o que aconteceu e então vim para Paris. E aqui estamos.
Sara: E vocês ainda mantêm contato?
Nathalia: Não mais. Fiquei sabendo por conhecidos que ele voltou para o Brasil quando aconteceu a lei da anistia.
Sara: Sei… E você não pretende voltar?
Nathalia: (Fica em silêncio) Não pensei sobre isso.
Sara: Está rolando o movimento das Diretas Já. É um bom momento para pensar nisso. Eu só não volto porque agora porque histórias como a sua estão aparecendo. Eu não posso deixar esses desgraçados impunes pelos crimes que cometeram.
Nathalia: Acho que a denúncia já é um começo, né?
Sara: Sim. Hoje é uma matéria na Europa, amanhã a gente volta a votar e assim vai… Até o dia em que pegamos eles de jeito! (Se olham e sorriem) Tem mais alguma coisa que você queira dizer?
Nathalia: Queria falar sobre a verdade. Não deixar a memória do Dito, do Carinha e da Aninha serem esquecidas como a de tantos outros.
Sara desliga o gravador e começa a arrumar as coisas.
Sara: (Convicta) Nathalia, eu te garanto que a verdade sobre seus amigos será conhecida, principalmente sobre o Dito! Seu depoimento vai chegar até a mãe dele e às famílias da Mariana e do Eduardo.
As duas se levantam.
Nathalia: Obrigada, Sara.
Sara: Olha! Ia me esquecendo. Posso tirar uma foto sua para a matéria?
Nathalia: Só um momento. (Ela sai e retorna com uma foto) Aqui! É uma foto que tirei na festa da vila do Dito! Não é das melhores, mas acho que dá para o gasto, né?
Sara: (Se emociona com a foto) Perfeito!
Sara dá um abraço em Nathalia, que corresponde.
Sara: Quando a matéria ficar pronta, eu aviso. Tá?
Nathalia, reflexiva, se senta na cadeira, acende um cigarro e a luz vai lentamente apagando…
*João Vitor Moraes é diretor artístico do GARAGE Ponto de Cultura. Compõe a Companhia Teatral SN.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA