A esquerda e a quarta guerra mundial

Imagem: Margerretta
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Por MÁRIO MAESTRI*

O conflito interimperialista China-EUA e os sucessos atuais na Ucrânia são de importância fulcral para os trabalhadores e para a luta pelo socialismo

A Terceira Guerra Mundial, a Guerra Fria, com início em 1947, foi vencida pelo imperialismo estadunidense e seus aliados-súditos, em 1989-91, com a restauração capitalista nos Estados ditos de socialismo real e a explosão da URSS. A maré neoliberal triunfante destruiu conquistas históricas dos trabalhadores através de um mundo fortemente reorganizado segundo as necessidades patológicas do imperialismo. Diante daquela derrota, as classes trabalhadoras passaram a descrer em seu programa, o único capaz de resolver as contradições que ameaçam a própria humanidade. Em 1989-91, fez-se meia-noite sobre o século, abrindo-se era contra-revolucionária que se mantém e se aprofunda até hoje.

Nos anos seguintes à “Queda do Muro de Berlim”, o clube imperialista liderado pelos EUA viveu tempos triunfais. Sua vitória apoiara-se fortemente na restauração capitalista na China, impulsionada, desde 1979, pelo bloco político-social dominante. Em Pequim, em 1972, Mao abraçara Nixon desembarcado de Washington. A China aliou-se ao imperialismo contra a URSS, no plano político, e tornou-se pátria de indústrias maquiadoras e produtoras de bugigangas, no plano econômico. O grande capital desembarcou no antigo Império do Meio que tornara a ser um “negócio da China”. [MAESTRI, 2022, p. 37 et seq.]

Não bastou que a URSS e, após 1991, a Rússia fossem despedaçadas territorialmente e que Yeltsin dançasse sob a batuta do capital internacional triunfante, apoiado pelos ávidos ex-burocratas do PCUS e oportunistas de todo tipo que canibalizaram as propriedades e riquezas estatais construídas pelos trabalhadores desde 1917. O clube imperialista EUA desejava mais, muito mais. Em verdade, queria tudo.[SACCO, 2022, p. 105.] James W. Carden, ex-consultor do Departamento de Estado, lembra, sobre a formatação da sociedade russa nos anos seguintes a 1991: “Em pouquíssimo tempo […] uma esquadra de funcionários do Departamento de Estado, da Cia, do Tesouro e do Conselho para a Segurança Nacional [dos EUA] embarcaram-se em uma série de viagens por toda a ex-União Soviética.” [CARDEN, 2022, p. 144; CASELLI, 2013, p. 27-40.]

 

Rússia delenda est

Em 1917, a Revolução Bolchevique se levantara como uma muralha diante do programa histórico do imperialismo europeu de conquistar as regiões do leste profundo da Euro-Ásia. Desde 1991, ele retomou o projeto de literal colonização das riquíssimas terras agrícolas e infindáveis matérias-primas e mão de obra daquelas regiões. Com a destruição da URSS, era necessário prosseguir e expandir a hegemonia  econômica,  política e ideológica obtida através da administração Yeltsin  e completar a explosão territorial, acirrando as contradições das nacionalidades minoritárias da Federação da Rússia. Uma operação necessária para o relançamento do núcleo central capitalista em crise estrutural.

Reduzida a potência intermediária, a Rússia seguia sendo a segunda potência nuclear do planeta, o que impedia que fosse atacada frontalmente, como se procedera com a Iugoslávia, desde 1990;  o Iraque, em 1990 e 2003; a Síria, em 2011; a Líbia, em 2011, etc. Havia que fragilizar a Rússia, sem confronto direto. Apesar do compromisso, quando da dissolução da URSS, de não extensão da OTAN em direção às fronteiras russas, já em 1994 iniciou-se o cerco da Federação Russa.

A expansão da OTAN para o leste foi a trote-galope. Em 1999, ela incorporou a República Tcheca e a Hungria; em 2004, a Bulgária, a Estônia, a Lituânia, a Letônia, a Romênia, a Eslováquia e a Eslovênia; em 2009, a Albânia e a Croácia; em 2017, Montenegro, e, em 2020, a Macedônia do Norte. A Ucrânia, com quase dois mil quilômetros de fronteira com a Rússia, era a cereja do bolo dessa ofensiva pluridecenal. Mísseis atômicos e tropas nas nações da OTAN com divisas com a Rússia a tornavam indefensável. Em 1991, as tropas do Pacto Atlântico estavam a 1.600 quilômetros de Moscou. Hoje, estão a 450. [PETRONI, 2022, p. 45.]

Os caminhos da história são infinitos, mas, ao contrário dos ditos desígnios de deus, eles são inteligíveis. Foram muitos os sucessos das últimas décadas que enfraqueceram a hegemonia unipolar estadunidense, destacando-se entre eles: a deslocalização industrial; a delapidação pantagruélica de recursos em guerras sem fim, etc. Mas foram sobretudo os movimentos profundos de reorganização da divisão internacional do trabalho, embalados pela crise estrutural do capitalismo em sua idade senil, que motivaram fortes transformações estruturais na economia mundial, em detrimento dos EUA. [MANDEL, 1976.]

 

O Imperialismo assediado

Na virada do milênio, a superação da Era Yeltsin [1991-1999] e o advento da Era Putin, em 2000, por um lado, e, por outro, sobretudo o despertar do Dragão Chinês como nação imperialista, no alvorecer do novo milênio, no contexto de forte deslocamento da acumulação do capital para o Oriente, colocaram em cheque o imperialismo estadunidense, em regressão industrial e tecnológica, mas hegemônico na esfera militar, financeira e diplomática. [MAESTRI, 2022, p. 59 et seq.]

A Era Putin se caracterizou pela constituição de um novo bloco social dominante, em torno de uma burguesia capitalista nacional e do controle-recuperação pelo Estado de importantes esferas da produção, com destaque para a energia – petróleo e gás – e a indústria armamentista. Mutatis mutandis, uma articulação não muito diversa da conhecida em algumas épocas pelo Brasil desenvolvimentista, sobretudo na Era Getulista e nos anos da ditadura militar após 1967. [CASELLI, 2013, p. 53; MAESTRI, 2019, p. 105 et seq.]

Muito logo, ficou claro ao novo bloco político-social russo no poder não haver espaço para ele no núcleo capitalista dominante da Europa Ocidental, como desejava e esperava. Negaram-lhe o direito de se sentar à mesa do banquete capitalista europeu e mundial: ele não era um bem-vindo ao ajantarado. Era, em verdade, parte do cardápio. Essa rejeição determinou profundamente a “consciência política russa”. [LUKJANOV, 2022, p. 36.]

O clube imperialista EUA via a Rússia como neocolônia, militando pelo retorno a algo semelhante aos tempos de Yeltsin, como proposto. De 1999 a 2009, o Estado russo vergou com dificuldade revolta separatista na Chechenia. Em 2008, debelou em poucos dias a agressão da Geórgia à Ossétia do Sul e à Abacássia, territórios separatistas de maioria de fala russa, de população reprimida. A pronta intervenção derrotou a agressão e impediu, com o conflito latente, que a Geórgia ingressasse na OTAN. A Rússia lutava as primeiras batalhas terceirizadas, organizadas pelo bloco imperialista EUA, na Quarta Guerra Mundial, atualmente em processo de aceleração.

 

Não é imperialista, mas gostaria de ser

A reorganização capitalista russa deu-se apoiada na antiga estrutura da economia soviética, fortemente golpeada,  base material de sua economia. A Rússia abriu-se ao capital monopólico sobretudo europeu – alemão, francês, italiano, etc. – e centrou suas exportações em produtos primários: gás, petróleo, adubos, grãos, madeiras, ouro, etc. O elevadíssimo nível de desenvolvimento das indústrias bélica, aeroespacial e nuclear herdadas da URSS permitiu nicho exportador tecnológico de ponta.

Em forma geral, na acepção marxista do termo, a Rússia permaneceu um Estado semicolonial industrializado, sem alcançar se transformar em nação imperialista, apoiada em conglomerados monopólicos exportadores de capitais, como é o caso da atual China. A Rússia tem carência de capitais, portanto não os exporta. Multinacionais instalaram-se em seus territórios, sem que ela tenha feito o mesmo através do mundo, à exceção, em forma limitada, nos países limítrofes sob sua influência. [MAESTRI, Contrapoder, 2022.]

Consciente da inevitabilidade de forte ataque frontal – direto ou indireto – por parte do bloco imperialista, o Estado russo empreendeu longo período de apresto minucioso preventivo. Preparou-se para interrupção da internet, para o ataque ao rublo, para a marginalização bancária, para o bloqueio das exportações-importações,  etc. Suas forças armadas foram redimensionaras, em relação aos tempos da União Soviética, privilegiando-se a modernização do armamento e a interconectividade das tropas. Como na era soviética, deu-se grande atenção à artilharia ofensiva e defensiva: canhões, obuseiros, morteiros, mísseis, etc. Em alguns setores, superou tecnologicamente o imperialismo. As exportações de armamento diminuíram o peso do esforço bélico em uma economia com um PIB próximo ao do Brasil e com uma população uns sessenta milhões menor que a do país lantino-americano.

 

Ucrânia a cereja do bolo

Em 2014, a Rússia respondeu ao golpe militar orquestrado pelo imperialismo na Ucrânia com a recuperação da península da Crimeia e o apoio às repúblicas separatistas de Donbass, regiões russófonas. A reação inesperada ensejou que a União Europeia, a cabresto dos EUA e da Inglaterra, empreendesse campanha russofóbica ininterrupta, com sanções, provocações, acEUAções fantasiosas, etc. – “envenenamento” de Alexei Navalny; “ataques cibernéticos” russos contra satélites, contra partidos políticos, contra indústrias ocidentais; “intervenção” nas eleições dos EUA; diplomatas russos travestidos de espiões, etc. Enquanto Putin e a Rússia eram demonizados na Europa e no mundo, a OTAN preparava, política e militarmente, uma retomada do conflito no Donbass que obrigasse uma intervenção direta do Estado russo.

Sobretudo após a União Europeia lhe dar as costas e mostrar os dentes, a Rússia reorientou seus laços econômicos, políticos e diplomáticos para o Oriente, estabelecendo relacionamento estreito com a China, apontada, especialmente desde a segunda administração Obama (2013-2016), como o grande desafio a ser enfrentado e derrotado pelos EUA. Donald Trump propusera aproximação com a Rússia e Putin para afastá-los da China, política vetada pelo Deep State, sob a ameaça de impeachment. A administração Biden, ao contrário, retomando o programa da candidata democrata Hilary Clinton, derrotada em 2016, centrou-se na destruição da Rússia, tida como o “ventre mole” da aliança entre o Urso e o Dragão, com os macro-objetivos assinalados.

Em razão do armamento ininterrupto antirrusso da Ucrânia pelos EUA e OTAN, propõe-se que o momento oportuno para a campanha defensiva russa teria sido em 2014, quando do golpe de Maidan, e não em 24 de fevereiro de 2022. Entretanto, em 2014, talvez a Rússia não estivesse ainda preparada para uma tal operação e, sobretudo, naquele momento impunha-se apoio militar à Síria, sua aliada histórica no Oriente Médio, semiestrangulada, lançado em setembro de 2015. Operação realizada em associação ao Irã que assentou um golpe duríssimo no imperialismo e em Israel.

A intervenção na Ucrânia foi uma ação defensiva inevitável, em defesa da sobrevivência da autonomia do Estado russo, de sua integridade e de sua “própria existência”. [KORTUNOV, 2022, p. 77-83; MAESTRI, Contrapoder, 2022.] A Ucrânia, Estado súcubo do imperialismo, sob a orientação da OTAN, encontrava-se pronta para ofensiva militar contra as repúblicas populares de Donbass, sob ataque militar de abril de 2014 a fevereiro de 2022, no qual morreram 13 mil pessoas, forçando intervenção russa, como proposto. De costas para a parede, sob a crescente ameaça de um estado hostil com vastíssimas fronteiras comuns, o Estado russo teve que dar batalha em terreno cuidadosamente preparado pela OTAN e pelos EUA. A justificativa da intervenção apoiou-se na defesa das Repúblicas Populares e das regiões da Novarússia – território de língua-tradições russas – que sofriam opressão nacional por parte dos governos ucranianos desde o golpe de 2014.

 

Silenciando Dostoiévsky

São risíveis as explicações de que a intervenção russa teria sido movida por vontade de abocanhar parte ou a totalidade do território ucraniano. Correram rios de tinta sobre as ambições de Putin em refundar e expandir o antigo império dos tzares. É imenso o custo material, humano, diplomático que tal iniciativa causou e caEUArá à Rússia, país com o maior território do mundo, que possui um enorme subcontinente à espera das condições, sobretudo materiais, para ser plenamente valorizado. Pertence ao passado a era das conquistas territoriais – hoje, as nações são dominadas e exploradas sem perderem sua aparente autonomia política, como no atual caso do Brasil. [MAESTRI, 2019, p. 331 et seq.]

Com a intervenção, os EUA de Joe Biden, a Inglaterra de Boris Johnson e a Polônia de Mateusz Morawiecki conformaram o pelotão de frente que arrastou a Europa a uma ofensiva histérica, diplomática, econômica, ideológica, comunicacional e, sobretudo, militar contra a Rússia. Proibiram-se jornais, sítios, rádios, etc. russos; atacaram-se jornalistas e intelectuais europeus que questionavam a mistificação dos governos e da grande mídia; marginalizaram-se, de competições, encontros, espetáculos, etc.,  atletas, cientistas, artistas russos. O strogonoff e a salada russa foram banidos dos restaurantes europeus patrióticos. Até Dostoiévski, ex-preso político do tzarismo, recebeu o cartão vermelho.

A retórica inicial imperialista era apoiar a defesa de um frágil estado democrático europeu contra a prepotência da poderosa Rússia imperialista. Muito logo, os Estados Unidos e a OTAN assumiram o real objetivo perseguido no conflito: deixar a Rússia exangue e, se possível, destruir seu atual Estado, em favor de um governo flexível ao imperialismo. Para tal, as sanções gerais deviam esgotar os recursos russos, no campo da batalha econômica, e seus exércitos seriam vergastados até à exaustão, lutando-se até o último ucraniano, mesmo se  os russos vencessem a guerra. O objetivo estratégico é a destruição da Federação Russa, mesmo à custa de uma futura guerra frontal, lutada, é claro, na Europa. [KARAGANOV, 2022, p. 143-148.]

Com a operação, o imperialismo estadunidense conquistou objetivos há muito perseguidos: substituir o fornecimento do gás russo pelo gás estadunidense de xisto; pôr fim às ilusões de autonomia política e militar europeia e à aproximação, sobretudo da Alemanha e da Itália, com a Rússia; obrigar a Europa a maiores gastos militares e, portanto, à compra de armamento estadunidense. O que impõe à Russia e à China gastos militares crescentes. Para a “operação Ucrânia” foi imprescindível a substituição de Angela Merkel, em Berlin, e de Giuseppe Conte, em Roma, pelos americanófilos Olaf Scholz e Mario Draghi, operações políticas complexas que precederam de muito o início do conflito.

 

Blitzkrieg midiática

Faltam elementos para uma avaliação mais precisa das razões de a intervenção russa ter iniciado pelo cerco de Kiev, na procura de deposição de Volodymyr Zelensky e de entronização de governo autônomo em relação aos EUA e à OTAN. O que seria a melhor solução para as populações e os Estados de ambas as nações. A neutralidade da Ucrânia e o reconhecimento da Crimeia e das repúblicas de Donbass permitiriam a manutenção do status quo, sem perdas de vidas e bens. A Ucrânia poderia voltar a se ocupar de seus interesses e de seus problemas de extrema complexidade. Seria, porém, uma enorme derrota para os planos e investimentos do imperialismo e da OTAN naquele país.

Houve superavaliação dos órgãos de informação russos sobre a autonomia da população ucraniana, como um todo, em relação ao imperialismo e à OTAN, após oito anos de governos nacionalistas, russofóbicos, filofascistas, por um lado, e de dura repressão às populações russófonas da Ucrânia, com destaque para o sul e o leste do país, por outro. Foram subestimados a capacidade de oposição do exército ucraniano treinado e armado pela OTAN e o peso das tropas paramilitares fascistas no enquadramento da população civil. [DOTTORI, 2022, p. 127.] O fracasso da marcha sobre Kiev, com as imagens das imensas filas de blindados imóveis nas proximidades dessa capital, causou desprestígio às forças armadas russas, acompanhado de propostas de sua fragilidade estrutural. Ele facilitou o convencimento da população ucraniana e europeia do caráter heróico da resistência e de uma próxima vitória sobre a Rússia. “O primeiro passo para vencer é acreditar que se pode vencer”, lembrou  Lloyd Austin, Secretário da Defesa estadunidense. [PETRONI, 2022, p. 37.] E, segundo parece, com o abandono do cerco de Kiev, ao menos facções do governo estadunidense passaram a acreditar em real possibilidade de vitória.

O impacto da campanha inicial foi ainda maior com a proposta de que Moscou tivera como objetivo a ocupação de Kiev e da totalidade da  Ucrânia, e não a deposição do governo títere de Zelensky. Afirmações sem sentido, como logo compreendeu a própria OTAN e os EUA. [MITCHELL, 2022, p. 64.] A ocupação de Kiev teria altíssimo custo e escassos resultados – o governo ucraniano seria transferido para junto à fronteira polonesa. O mesmo ocorreria com a ocupação de territórios ucranianos pobres e hostis, próximos à Polônia. As limitadas tropas russas envolvidas no início da operação – em torno de 120 mil soldados – já descartavam qualquer operação de domínio territorial da Ucrânia. [DOTTORI, 2022, p. 127.] Em fevereiro de 2022, a Ucrânia tinha 250 mil soldados na ativa e 250 mil na reserva. Entrementes, o recuo das tropas russas que sediavam Kiev ensejou uma blitzkrieg midiática imperialista mundial, tendo como estrela o presidente Zelensky, comunicador hábil, histriônico, obediente ao Pacto Atlântico e irresponsável para com os destinos de seu país.

Impossibilitadas de obter a neutralidade da Ucrânia e o reconhecimento do atual status das repúblicas de Donbass e da Crimeia, as tropas russas iniciaram a ocupação de larguíssima faixa fronteiriça com a Rússia; da totalidade da província de Lugansk e grande parte das províncias de Donetsk e de Mylokaiv, da totalidade do litoral do mar de Azov e de parte do litoral do mar Negro. O controle dos atuais 20% do território da Ucrânia, em expansão, permitirá a proteção das comunidades étnico-linguísticas russas e afastará dessas regiões da fronteira da Rússia a possibilidade de posicionamento de armas estratégicas da OTAN. Ele desorganizará a Ucrânia como um aríete imperialista contra a Rússia e impedirá seu ingresso na OTAN, pois é nação em conflito latente.

 

A guerra na mídia e como ela é na realidade

Foi lento o avanço inicial das tropas russas no sul da Ucrânia, não ocorrendo o esperado assalto de milhares de tanques sobre as poderosas defesas ucranianas no Donbass – em torno de 50 mil soldados entrincheirados –, como quando das contraofensivas soviéticas na Segunda Guerra. O que permitiu que prosseguisse a campanha midiática sobre a fragilidade dos exércitos moscovitas e a intrepidez das tropas ucranianas, destinadas à vitória inevitável prometida por Joe Biden,  Boris Johnson e os infindáveis papagaios do imperialismo.

Zelensky e a OTAN empreenderam uma guerra visando vitórias midiáticas, difundidas pela mídia internacional em um coro monocórdio. Divulgavam-se os milhares de tanques destruídos, a multidão de soldados mortos, o esgotamento das munições, os massacres da população e os intencionais bombardeios de civis pelos russos. Silenciou-se sobre o limitado número de vítimas civis, em relação a operações imperialistas no Iraque, Síria, Líbia, etc., para não falar dos terríveis bombardeios de ingleses e estadunidenses na II Guerra Mundial, despreocupados com a população civil, quando ela não foi o objetivo dos ataques — Dresden, Colônia, Hamburgo, Berlim, Hiroshima, Nagasaki, etc. Os batalhões de neofascistas ucranianos servindo-se de civis como escudos humanos foram festejados como heróis legendários.

Preocupadas em minorar as perdas de tropas e de civis que libertavam, em grande maioria russófonos, inevitáveis a uma progressão rápida e a duros combates urbanos, as tropas russas avançaram precedidas de intensivos ataques de artilharia, através de regiões e de cidades cujas populações civis haviam sido evacuadas preventivamente. A neutralização, concomitante ao início das operações, de entroncamentos ferroviários, pontes, quartéis, depósitos de armamentos, centros de comando, artilharia, aviões, etc. ucranianos prosseguiu ininterruptamente, com ataques missilísticos cirúrgicos que não pouparam centros militares encostados à fronteira polonesa. As armas balísticas de precisão são a revelação da arte bélica neste conflito.

O lento mas inexorável avanço e o martelar incessante da artilharia russa levaram ao esgotamento estrutural das tropas profissionais ucranianas, substituídas por civis, mercenários e aventureiros despreparados para o atual combate tecnológico. A guerra midiática de Zelensky impediu o recuo de tropas ucranianas vencidas para posições mais facilmente defensáveis, permitindo que fossem arrasadas comumente pela artilharia russa, sem que tivessem visto o rosto dos inimigos. A desmoralização avança nas filas ucranianas, contando-se já com mais de seis mil soldados rendidos e aprisionados. Segundo parece, o alto comando ucraniano teria começado a desobedecer o presidente e a OTAN, permitindo o recuo das tropas sem condições de resistência ou semicercadas, sob a pressão das deserções e negativas de combate por parte das mesmas.

 

A vitória está na esquina

Zelensky, Biden, Johnson e a OTAN seguiram vendendo ao exército ucraniano maltratado e estropiado a certeza de vitória a ser conquistada com a chegada de artilharia pesada, de carros de assalto, de modernas baterias antiaéreas, de mísseis táticos, da munição mesmo comum que falta enormemente. Os EUA disponibilizam quarenta bilhões de dólares em ajuda militar para a Ucrânia e para fortalecer a OTAN – o dobro do orçamento do exército brasileiro em 2021. Na frente do Donbass, a proporção dos disparos de artilharia seria de cinco para cinquenta, em favor dos russos. Essa fabulação da vitória à espera na esquina tem sido martelada e ampliada pela mídia ocidental, em um processo despudorado de infantilização e fanatização de seu público consumidor.

No mundo dos fatos reais, o imperialismo se nega a fornecer seu armamento mais moderno, certo de que cairá nas mãos ou será vendido aos russos, como teria acontecido com o top da artilharia autopropulsada francesa, o obuseiro Ceasar, de 155 mm e 40 quilômetros de alcance. As armas entregues através da Polônia, não raro vetustas, devem vencer mil quilômetros para chegar à linha de combate, transportadas por ferrovias atingidas pelo conflito, quando não são destruídas nos depósitos ou em marcha. Elas são entregues em quantidades ínfimas, em relação às necessidades do exército ucraniano, comumente sem o treinamento para um uso complexo. São operações midiáticas que pouco ajudam o exército ucraniano. A necessidade de fornecimento ininterrupto das toneladas de munição exigidas pela artilharia tem sido um problema quase insolúvel.

O que falta dolorosamente ao exército ucraniano são soldados e suboficiais de carreira pertinentemente instruídos. A formação e treinamento de um exército novo exigiriam recursos fabulosos e, no mínimo, em torno de um ano, no que se refere à suboficialidade e operadores de armas complexas. Nações europeias, entre elas a Alemanha, pressionadas pelos EUA, apoiam cada vez mais a Ucrânia, sobretudo com declarações que não encontram correspondência substancial nos atos, preocupadas com as sequelas caEUAdas pela guerra em suas economias.

Nos Estados membros da OTAN, consolida-se a consciência de uma próxima derrota da Ucrânia. A mídia ocidental começa a abandonar as notícias hiperbólicas sobre as vitórias ucranianas e noticiar o lento mas inexorável avanço russo. Fala-se tangencialmente na necessidade de concessão de regiões da Novarrúsia e da neutralidade da Ucrânia, ao menos no papel, para obter a paz. Uma negociação complexa, até agora impossibilitada pela política dos EUA, da Inglaterra, da Polônia e da OTAN de seguir a guerra, desgastando a Rússia, até o “último ucraniano” [KORTUNOV, 2022, p. 92.]  A negociação de um armistício ou de paz dificilmente será feita sob a direção de Zelensky, que, com o fracasso estrondoso e as sequelas  pesadíssimas de sua direção para a população e para a nação, será possivelmente descartado como bufão grandiloquente e irresponsável. Eventualmente, será mantido pelo imperialismo em um exílio dourado, à espera de uma eventual futura serventia.

 

A Quarta Guerra Mundial em marcha

É difícil avaliar as consequências da vitória quase inevitável da Rússia no sul da Ucrânia, caso não intervenham sucessos imprevisíveis, com destaque para o alargamento do conflito – na Líbia, na Síria, etc. Alguns objetivos centrais do imperialismo estadunidense foram alcançados, como proposto: a exacerbação da ofensiva contra a Rússia; a imposição da venda de seu gás de xisto; o aumento de suas tropas na Europa; a consolidação de seu mando despótico sobre a OTAN, ampliada pelos ingressos da Finlândia e da Suécia, etc. Esses dois países somam mais de 1.300 quilômetros de fronteiras com a Rússia. Entretanto, eles já eram inamistosos em relação a Moscou e não se propõem permitir estacionar em seus territórios armas estratégicas.

Com uma vitória da Rússia, seu novo posicionamento sobretudo ao longo dos mares de Azov e Negro coloca questões militares e econômicas graves aos Estados Unidos, à União Europeia e à OTAN. A derrota militar da ofensiva imperialista influenciará as relações internacionais, fortalecendo os movimentos de autonomia em relação aos EUA que, em 14 de maio, reafirmaram, através de Antony Blinken, Secretário de Estado, apoio à Ucrânia até a “vitória final”. É também grave o fracasso das sanções econômicas, que deveriam ter  desorganizado profunda e rapidamente a economia e a sociedade russa, e estrangulado o financiamento de suas forças armadas.

A razão maior do fracasso do bloqueio econômico à Rússia foi a negativa de uma enorme parte do mundo de abraçá-lo, com destaque para nações da América Latina, da África e da Ásia. Em novembro, Putin participará de corpo presente ou virtualmente do G-20 na Indonésia. Os EUA ameaçaram a China com os males do inferno caso apoiasse o esforço de guerra da Rússia, entregando-lhe as armas que se esperava que lhe faltassem muito logo. Pequim manteve perfil baixo sobre o conflito. Reconheceu as preocupações de Moscou com sua segurança e reafirmou o apoio à integridade territorial da Ucrânia. Analistas de aluguel de alto e baixo coturno apontaram o crescente e inexorável afastamento de Pequim de Moscou. Uma monumental vitória para a ofensiva imperialista!

A China – associada à Índia – simplesmente comprou o petróleo e o gás que a Europa refugava, neutralizando o coração das sanções antirrussas. E, assim, o disparar do preço da energia manteve altos os ingressos russos e caEUA enormes perdas econômicas para a União Europeia. Hoje, a Rússia defronta-se com excessiva valorização do rubro, enquanto se esperava que ele degelasse como sorvete ao sol. O corte total do gás russo lançará a Alemanha e a Europa na recessão, algo que não preocupa muito os EUA. As sequelas das decisões econômicas irresponsáveis já estão tendo reflexos na política europeia e estadunidense, com destaque para os resultados eleitorais franceses, para a precipitação do apoio interno a Biden e, agora, a estrondosa queda de Boris Johnson, que previra uma próxima queda de Putin. Em Portugal, na Espanha, na França, a população já foi às ruas reivindicando a paz e atacando a OTAN.

 

Ofensiva geral

A ofensiva na Ucrânia foi apenas um movimento de enorme importância na política imperialista que pretende marchar sobre a Rússia para atacar a China, o inimigo primordial. Era curta a janela temporal dos EUA para se sobreporem ao imperialismo chinês, que lhes disputa economicamente a primazia. Janela que parece ter-se estreitado nos últimos tempos, acelerando a ofensiva contra a Rússia. A.Wess Mitchell, ex-assistente secretário de Estado para os Assuntos da Europa e da Eurásia dos EUA, estima em três ou quatro anos o tempo necessário para a China “alcançar o refinamento militar necessário para prevalecer em um conflito” com os EUA. Ele deixa clara a necessidade, nesse período, de esgotar a Rússia para um próximo conflito com a China.  Realista, reconhece que uma guerra em “duas frentes”, contra a Rússia e a China, “superaria a capacidade das “forças armadas” estadunidenses. [MITCHELL, 2022, p. 63.]

Aproveitando o embalo belicista ucraniano, o imperialismo ianque disciplina seus aliados-súcubos e prepara campanha que aponta para um futuro confronto parcial com a Rússia, na Europa, seguido de ações idênticas em relação à China, no Indo-Pacífico. Pretende reconquistar militarmente, mesmo sobre um mundo em cinzas, sua hegemonia, que recua economicamente. Quer impor seu tacão sobre o mundo, através do século 21, com formas ditatoriais cada vez mais abertas de  dominação ainda difíceis de precisar.

O plano de ataque dos EUA prevê iniciativas econômicas, de curto alcance, e vastas ofensivas militares. De domingo a terça-feira, 26 a 28 de junho deste ano, reuniram-se em Elmau, no sul da Alemanha, os membros tops do clube imperialista EUA – Alemanha, França, Inglaterra, Japão, Itália, Canadá.  A grande decisão anunciada foi um plano mundial de inversões, proposto por Biden, de seiscentos bilhões de dólares, destinados aos países de economia capitalista atrasada – “Colaboração pela Infraestrutura Global e Inversão”. Um contraponto de ocasião à iniciativa de investimentos amazônicos já consolidada da “Nova Rota da Seda” chinesa.

Os EUA prometem 200 bilhões de dólares de recursos públicos e privados a serem aplicados em cinco anos. Será dado grande destaque para o combate ao império chinês no relativo à telefonia G5 e G6a. Os gastos monstruosos estadunidenses anticíclicos durante a epidemia de Covid-19, os investimentos bélicos na Ucrânia e na Europa, os déficits normais do país caEUAm já violenta desvalorização do dólar. Esta última golpeia os trabalhadores americanos e… os milionários investimentos chineses em títulos da dívida pública estadunidense. A Rússia, há muito, livrou-se desses títulos em favor de enormes reservas em ouro. O tsunami de liquidez do dólar e do euro espraiará a inflação mundialmente. Para o experiente ex-diplomata singapurense Kishore Mahbubani, os Estados Unidos devem temer mais a desmoralização do dólar como moeda-refúgio do que a guerra. (MAHBUBANI, 2021)

 

La China è vicina

No encontro na Alemanha, os membros do G7 renovaram as alusões à falta de transparência no comércio, ao roubo de tecnologia, ao trabalho forçado, à escravização de nações com empréstimos impagáveis, ao maltrato de minorias étnicas pelos chineses. No frigir dos ovos, o G7 abraçou a política econômica antichinesa dos EUA, que não lhe diz respeito e contribuirá à depressão de sua economia. Foi mais direta, agressiva e inovadora a reunião da OTAN realizada em 29 e 30 de junho. Em Madrid, o Pacto Atlântico deu enorme passo para sua internacionalização, seguindo o viés antichinês.

A reunião foi chamada para definir o novo “conceito estratégico” político-militar da OTAN e de seus futuros 32 membros para a próxima década. A orientação geral anterior, aprovada em Lisboa, em 2010, sequer se referia à China e abraçava hipocritamente a Rússia,  definida como nação parceira, convidada a participar na agressão ao Afeganistão. No mesmo ano, Yeltsin era defenestrado e assumia Putin, que sonharia por alguns anos em incorporar a Rússia à OTAN e à União Europeia.

Naquele então, vinte anos após a dissolução da URSS, a OTAN descumpria já a promessa de manter-se afastada das fronteiras da Rússia, como proposto. E, em 1999, massacrara a Sérvia e sua população – 78 dias de bombardeamento – e, em 1990 e 2003, atacara o Iraque. Também em 2003, interviera no Afeganistão, por primeira vez fora da Europa, zona estatutária de sua ação. Mais tarde, faria o mesmo na Líbia, arrasada como nação e sociedade autônoma. O massacre de civis nessas operações possivelmente jamais será contabilizado.

Em Madrid, procedeu-se à esperada abominação geral da Rússia, definida como a “ameaça mais direta e importante à segurança, paz e estabilidade na área euro-atlântica”, que  pretende “garantir suas esferas de influência e controle direto” “através da coerção, da subversão, da agressão e da anexação” de outros estados. A definição de nação a ser abatida permitiu a consolidação e expansão do já enorme controle dos EUA sobre a OTAN. O exército europeu, sem os Estados Unidos, proposta eterna da  França, foi enviada para a Cochinchina.

 

OTAN dos cinco oceanos

Decidiu-se, unanimemente, a ampliação das forças militares de terra, mar e ar dos EUA na Europa, com um aumento dos atuais cem mil soldados ianques estacionados no Velho Continente. Acordou-se aumentar as forças de intervenção rápida da OTAN, em 2023, de quarenta para trezentos mil soldados. E estabelecer um Quartel General estadunidense na Polônia. Iniciativas que apontam para um novo confronto parcial com a Rússia, sempre na Europa, o sonho  estadunidense.

O realmente novo foi a constituição da OTAN, de fato, ainda que não estatutariamente, como ponta de lança do imperialismo estadunidense contra a China. Sem jamais ter sido citada como nação inimiga, ela foi definida como opositora estratégica dos “interesses, segurança e valores” dos Estados Unidos e aliados. Modificação radical das orientações de nações como a Alemanha e a Itália, que mantinham relações econômicas não raro estreitas com uma nação em forte expansão econômica. E a milhares de quilômetros do Velho Mundo.

O documento conclusivo retoma ipsis litteris a retórica estadunidense. A China é acusada de empregar “instrumentos políticos, econômicos e militares para aumentar sua posição global e projetar seu poder”, mantendo-se “opaca sobre sua estratégia, suas intenções e seu fortalecimento militar”. Tudo para obter ou “controlar setores tecnológicos e industriais-chaves”. Como a Rússia, manteria “operações híbridas e cibernéticas” e de “desinformação”, para obter o “controle de sectores tecnológicos e industriais-chaves”. Uma nação que se organiza para “minar” e “debilitar a ordem internacional”.

A definição da China como inimigo estratégico não foi retórica. Na reunião participaram a Áustria, o Japão, a Coreia do Sul e a Nova Zelândia – e, em espírito, Taiwan. Todas elas nações estranhas ao pacto militar da OTAN e membros destacados da aliança indo-pacífica dos EUA contra Pequim. E, em formulação geral da reunificação em marcha dos dois complexos militares, definiu-se que os sucessos do Indo-Pacífico “podem afectar diretamente a seguridade euro-atlântica”.

 

O inimigo principal

Portanto, todo conflito no Indo-Pacífico com a China dirá respeito à OTAN, mesmo que não a obrigue a uma intervenção direta. Serão organizadas manobras militares navais coletivas naqueles mares, visitados ainda mais amiúde por belonaves da Inglaterra, da França, etc. Tudo sob a justificativa de defender o direito de navegação internacional, em águas reivindicadas pela China. É portanto claro o sucesso dos EUA no esforço de unificar a OTAN e as suas articulações militares naquelas regiões contra a China.

Sob o comando imperial dos EUA, a OTAN se transforma de ex-ponta de lança de guerra vencida, em 1989-91, contra a URSS e os países do “socialismo real”, em aríete contra a China, seu inimigo estratégico. Provocações militares, tendo eventualmente a ilha de Formosa e sua independência como escusa, sobretudo no estreito de Taiwan e no mar da China Meridional, repetirão eventualmente a operação ucraniana, para dessangrar igualmente a China, sempre longe do território estadunidense.

São difíceis de prever os próximos movimentos dessa verdadeira Quarta Guerra Mundial em precipitação, que envolverá o mundo como um todo, de forma indireta ou direta. O certo é que o imperialismo estadunidense acelera o uso de seus recursos para sufocar, no campo militar, o desafio à sua autonomia proposto secundariamente pela Rússia e estrategicamente pela China, sobretudo no campo econômico. O projeto estratégico do clube imperialista EUA é desorganizar as economias, as sociedades e os Estados russo e chinês e submetê-los como nações neocoloniais globalizadas, como proposto.

 

A esquerda e a Quarta Guerra Mundial

A vitória histórica da maré liberal, em 1989-91, ensejou dissolução e fragilização de organizações, partidos, sindicados, direitos do mundo do trabalho. A mais grave sequela daquela derrota histórica foi a  descrença dos trabalhadores em seu programa para a superação da ordem capitalista e reorganização racional do mundo.

A queda da URSS e a consequente crise do stalinismo determinaram a consolidação e o avanço da contrarrevolução mundial e não a esperada e fantasiosa apoteose do marxismo revolucionário. No novo contexto, partidos comunistas e social-democratas colaboracionistas abraçaram o social-liberalismo ou simplesmente desapareceram, como nos casos exemplares do Partido dos Trabalhadores brasileiro e do Partido Comunista Italiano.

A esquerda revolucionária vive crise orgânica, política e ideológica jamais conhecida na história do movimento operário. Sua derrota antecedeu e foi exacerbada pela  triunfo da maré contrarrevolucionária e a desorganização objetiva e subjetiva dos trabalhadores. Organizações marxistas e marxistas-revolucionárias (trotskistas) desmilinguiram, assumiram programas pequeno-burgueses, romperam seus frágeis vínculos ideológicos e orgânicos com os trabalhadores.

 

Ladeira abaixo

A liliputização e degeneração política do marxismo-revolucionário radicalizou-se nas últimas décadas. No Brasil, o cretinismo eleitoral, a dependência do financiamento do Estado, a hegemonia das políticas identitárias chegadas dos EUA reproduziram-se como cogumelos em clima quente e terreno úmido. A manutenção dos aparelhos partidários e, através deles, de projetos pessoais desligados do movimento social e do mundo do trabalho transformou-se em objetivo estratégico.

As crises no país sucedem-se crescentemente graves, enfrentadas pelas organizações que se reivindicam da esquerda revolucionária com declarações retóricas e declamatórias sobre o socialismo e a revolução, em uma versão, no melhor dos casos, pequeno-burguesa. Para elas, o fundamental é disputar as eleições, eleger deputados e vereadores regiamente  pagos pelo Estado, que financia com polpudas côngruas também os partidos institucionalizados da esquerda dita radical.

O conflito interimperialista China-EUA e os sucessos atuais na Ucrânia são de importância fulcral para os trabalhadores e para a luta pelo socialismo. Fora as exceções de regra, eles, são enfrentados, em forma escolástica, apoiadas em leituras textuais descontextualizadas sobretudo de Lenin e Trotsky. Tudo sob a pressão devastadora  das classes médias influenciadas pela mídia tributária do grande capital e de segmentos médios, sobretudo jovens, que povoam essas organizações.

 

Três grandes posições

No Brasil, grosso modo, na esquerda, são três as grandes posições sobre o conflito envolvendo Rússia, China, OTAN e os EUA, e a guerra na Ucrânia. Facções da esquerda colaboracionista propõem comumente a Rússia e a China como baluartes anti-imperialistas e garantias de uma saudável e duradoura multipolaridade. Para não poucos, a China seria uma nação socialista de novo tipo ou, no pior dos casos, não seria imperialista. Ela proporia e manteria novos laços econômicos colaborativos entre as nações. Essas posições são comuns entre ex-stalinistas saudosos; neostalinistas defensores de longa via capitalista a um socialismo para além do horizonte; segmentos da esquerda colaboracionista afinados com os interesses do capital chinês no Brasil. É o caso de largas parcelas do PT, do PCdoB e do PCB. [MAESTRI, 2021, p. 97 et seq.]

Por sua vez, a esquerda que se define como revolucionária e mesmo marxista-revolucionária divide-se em duas grandes posições, que não raro se entrelaçam em questões pontuais. Para a primeira, a  China e a Rússia são Estados burgueses e imperialistas e a pugna com os EUA é um mero conflito interimperialista tradicional. Qualquer coisa como o embate da Tríplice Entente e a Tríplice Aliança na I Guerra Mundial. Um confronto que não interessa aos trabalhadores, que só perdem com a guerra. A política a ser seguida é a independência em relação aos dois “blocos imperialistas” e o derrotismo revolucionário, proposto por Lenin na Grande Guerra. Deve-se lutar para transformar esse confronto em luta armada dos trabalhadores pelo poder.

A questão é mais simples para não poucos grupos e organizações que se reivindicam marxistas e marxistas-revolucionárias. A intervenção da Federação Russa na Ucrânia é operação criminal, com objetivo expansionista, de nação imperialista. Ela agride a autonomia nacional ucraniana, que deve ser defendida sem restrições, devendo-se exigir um maior fornecimento de armas, “zona de exclusão aérea” pela OTAN, etc. A Rússia deve ser totalmente derrotada. Ao máximo, e em surdina, reconhece-se que o apoio da OTAN não é totalmente inocente. Alguns grupos que apoiam essa política acendem uma vela em defesa do direito de autonomia das repúblicas do Donbass e das populações da Crimeia.

 

Cegueira seletiva

Tentemos delinear telegraficamente as principais inconsistências dessas posições. O caráter capitalista da Rússia e da China não necessita maior demonstração. Só os cegos pela ideologia não o veem. O mesmo se pode dizer sobre o status atual imperialista da China, poderosa nação capitalista com fortes núcleos monopólicos públicos e privados exportadores de capitais. Suas multinacionais se esparramam pelo mundo, avançando cada vez mais vorazmente no Brasil. Não se pode dizer o mesmo da Rússia, como proposto, atualmente nação semicolonial industrializada, sem exportação internacional significativa de capitais. Praticamente não há multinacionais russas espalhadas através do mundo.

Os capitalistas da Rússia e da China exploram duramente os trabalhadores, em seus países ou fora deles. Certamente suas vitórias no confronto com o bloco imperialista EUA não trarão a independência e emancipação de seus trabalhadores. O que não quer dizer que eles não tenham interesses próprios no desenlace do conflito. E muito. O confronto militar de 1914-1918 foi sobretudo entre as seis grandes nações imperialistas que disputavam uma hegemonia compartilhada do mundo. Ele ocorreu num contexto em que forças produtivas materiais do capitalismo ainda se desenvolviam, enquanto eram questionadas pelo proletariado revolucionário.

A proposta de “derrotismo revolucionário” pressupôs a existência na Rússia tzarista de partidos revolucionários com dezenas de milhares de membros e simpatizantes. A vitória da Alemanha seria, como foi, a antecâmara do assalto ao poder pelos trabalhadores e camponeses.  No atual conflito, o bloco imperialista EUA procura, estrategicamente, arrasar a independência e a autonomia nacional das nações russa e chinesa, em busca de dominação internacional predatória, ensejada pelo esgotamento orgânico do desenvolvimento capitalista.

 

Imperar sobre o século XXI

O bloco imperialista ataca a China, que questiona economicamente a hegemonia estadunidense, e a Rússia, que luta apenas por sua autonomia e sobrevivência. Não haveria conflito militar se não houvesse a agressão estadunidense à autonomia russa e chinesa. Trata-se de projeto, como proposto, de imposição de uma nova ordem neocolonial globalizada, que se difundirá pelo mundo, certamente em um viés fascistizante. As formas de dominação burguesas tradicionais esgotam-se com o esgotamento estrutural do dinamismo capitalista que as originou.

Esta nova ordem aprofundará a níveis difíceis de prever a exploração dos trabalhadores russos e chineses, como ocorreu na Rússia, após 1991; na China, sobretudo nos primeiros anos da restauração capitalista; na Ucrânia, nas décadas que se seguiram à sua independência. No atual período de refluxo e desorganização dos trabalhadores e de inexistência de partido revolucionário, a proposta de “derrotismo revolucionário”, para preparar a sublevação dos trabalhadores russos, ucranianos e poloneses, é sandice retórica inominável. O “derrotismo revolucionário” nas atuais condições é mera retórica esteticista, apoiando, nos fatos, o bloco imperialista agressor.

De certa forma, essa palavra de ordem, na atual situação, repete as visões de Amadeo Bordiga [1889-1970], que negava outro nível ou espaço de luta social além do confronto direto da classe trabalhadora com os patrões. [MAESTRI, 2020, p. 87 et pas.] Também contra ele Lenin escreveu Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Segundo tal visão, a questão nacional e de seu direito à independência, que tanto interessou e preocupou o marxismo revolucionário antes e imediatamente após 1917, interessaria aos trabalhadores apenas quando as nacionalidades estivessem para serem superadas pela revolução mundial.

 

Abraçando a contrarrevolução

Em alguns poucos casos, o desconhecimento do conflito na Ucrânia como operação meticulosamente preparada pelo imperialismo estadunidense para dessangrar a Rússia, em direção ao ataque à China, pode ser explicado como produto de analistas obtusos e despreocupados com o estudo da realidade. Em fevereiro de 2022, no início do conflito, o citado A. Wess Mitchell, ex-alto funcionário estadunidense, propunha, sem tergiversações: “A Ucrânia é uma oportunidade estratégica para o Ocidente […].” “Os EUA devem utilizar [a Ucrânia] para desfibrar, secar e empobrecer a Rússia […].” “Devemos empreender um programa de armamento a longo termo dos ucranianos, como fizemos nos anos oitenta com os mujahidins contra a URSS.” [MITCHELL, 2022, p. 63.]

Não é o caso de organizações, não poucas marxistas-revolucionárias, que defendem  apoio condicional ao governo Zelensky; o esforço milionário de guerra da OTAN naquele país; a derrota da Rússia e a desorganização de seu governo e de seu Estado. Neste caso, não se trata de obtusidade analítica, mas de políticas com raízes profundas. Em verdade, essa leitura não é nova. Ela é abraçada por grupos políticos, autodenominados revolucionários, que se constituíram apoiando subjetiva e objetivamente o bloco imperialista em sua campanha contrarrevolucionária vitoriosa, desde antes da destruição da URSS.

Essas organizações saudaram e aplaudiram os mujahidins contra a Revolução no Afeganistão, em fins dos anos 1970. Apoiaram a contrarrevolução na Polônia, propondo o Solidariedade e Walesca como agentes da revolução política, desde inícios de 1980. Festejaram, por décadas, a destruição da URSS e dos Estados de economia nacionalizada e planificada, como a marcha da revolução antistalinismo. Abraçaram os ataques e operações imperialistas contra a Iugoslávia, a Sérvia, o Iraque, o Egito, a Líbia, Cuba, Nicarágua, Venezuela, e por aí vai.

Cavalgaram por décadas ao lado do imperialismo, jurando não conhecê-lo. Apresentaram apoio à contrarrevolução contra a independência e autonomia nacional de nações que se opunham de algum modo ao imperialismo como luta contra seus ditadores terríveis – Milosevich, Fidel Castro, Bin Laden, Saddam Hussein, Khomeini, Gaddafi, Bashar al-Assad, Chaves, Maduro. Todos eles estariam sendo questionados por insurreições populares, revoltas operárias, movimentos democráticos imaginários. Em 14 de outubro de 2013, quando da agressão à Síria, a direção da LIT apoiava publicamente os EUA e seus aliados, defendendo exigir do imperialismo armas pesadas aos revolucionários sírios – “Exigir ou não armas do imperialismo?” [LIT-CI, 2013]

 

Cavalgando com o imperialismo

Esse apoio à contrarrevolução, travestido de democratismo hipócrita pequeno-burguês, tem se mantido, sem desvio, em alguns casos, há mais de meio século. Não se trata, definitivamente, de erros ou de derrapagens de interpretação política, considerando os sucessivos desastres em que as agressões imperialistas resultaram para os trabalhadores, povos e nações agredidos. Constitui abandono e ataque consolidados aos interesses da revolução, em favor da contrarrevolução, por grupos autoproclamados revolucionários.

Impõe-se análise mais precisa das raízes de classe, interesses de aparatos, apoios financeiros que sustentam essas práticas contrarrevolucionárias. Certamente essas organizações não descontam mesada no guichê da CIA. O caminho mais fácil tem sido enviar delegados para os frequentes encontros, congressos, reuniões de apoio internacional às “residências democráticas”  impulsionados pelo imperialismo, no combate aos governos, aos povos e aos Estados  venezuelanos, cubanos, sírios, líbios, russos, etc.

E, nessas reuniões, que foram e são realizadas no Brasil, na Turquia, há pouco, na Polônia, etc., delegados revolucionários entram em contato com insuspeitos institutos internacionais financiadores da luta antiautoritária no mundo. A Fundação Ford é apenas a mais conhecida. O imperialismo, que financiou os “novos filósofos franceses”, maior prazer tem em financiar os aguerridos “marxistas” do imperialismo. E eles, de consciência tranquila e bolsos cheios, partem para avançar sua prática revolucionária, trotando ao lado do imperialismo. Afinal de contas, os bolcheviques não fizeram empréstimos para assaltar o poder? Esses órgãos financiadores dos companheiros de viagem da contrarrevolução começam a ser estudados em detalhados trabalhos acadêmicos, como o de Wanderson Chaves, A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950 – 1970).

Destaque-se que, relativamente ao Brasil, em geral, essas organizações, como foi o caso do PSTU e outras organizações semelhantes, negaram e chegaram mesmo a apoiar, ainda que passivamente, o golpe de 2016, em razão do indiscutível caráter social-liberal do governo petista. [PSTU, 2016.] Esqueciam um pequeno detalhe. O golpe era contra os trabalhadores e a nação, não contra o PT, que muito logo se acomodaria a ele. [MAESTRI, Contrapoder, 2022.] Em 1964, teriam se mantido neutros, pois o governo derrubado era declaradamente capitalista e o presidente do Brasil, João Goulart, fazendeiro forte, aburguesado e poltrão. [MAESTRI, 2019, p. 179 et seq.]

 

Uma política para os trabalhadores

A defesa da independência de uma nação atacada pelo imperialismo não depende do caráter de seu Estado e de seu governo. Comunistas da Terceira Internacional lutaram e morreram ao lado das tropas de Haile Selassie e da Etiópia, soberano e Estado feudalistas. [SCIORTINO, 2012.] Em 1938, quando Getúlio namorava o nazifascismo, Trotsky propôs: “Existe atualmente no Brasil um regime semi-fascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, entretanto que, amanhã, a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. Eu pergunto a você de que [lado] do conflito estará a classe operária? Eu responderia: nesse caso eu estaria do lado do Brasil ´fascista´ contra a Inglaterra ´democrática´.” [TROTSKY, 1938.]

A esquerda revolucionária mundial apoiou e defendeu corretamente, de armas nas mãos, a República burguesa espanhola, contra o golpe sustentado pelo nazifascismo. Posição que León Trotsky apoiou, propondo que, para sustentar a República, era necessário fazer a revolução, enquanto os stalinistas propunham aliança com a burguesia e com os agrários democráticos, deixando a revolução para depois da vitória da República. O que crucificou aquela revolução, a República, e entronizou o franquismo por longas décadas.

A defesa incondicional dos Estados russo e chinês diante da agressão do clube imperialista ianque não deve ser estendida, jamais, à defesa de suas direções nacionais, no relacionamento com as classes trabalhadoras, que devem seguir igualmente em sua luta pela emancipação social, ainda que interessadas na independência nacional de seus países. E, sobretudo, não deve levantar falsas ilusões. A derrota do imperialismo EUA na Rússia e na China possivelmente impedirá a imposição de ordem semifascista sobre os trabalhadores daqueles países e sobre o mundo, por algumas décadas. O que não é pouco. Mas a tendência é que a China siga seu caminho, agora despejado, para transformar-se em imperialismo hegemônico, em substituição aos EUA, em um prazo difícil de ser estabelecido.

Portanto, no contexto daquela solução, total ou parcial, as contradições entre o mundo do trabalho e o do capital continuarão dominando a história e influenciando todas as esferas da vida social e política, à espera de solução necessariamente internacional das contradições pelas classes proletárias, caso ela ocorra. Impõe-se, portanto, com uma terrível premência, acompanhamento e interpretação acurados do desenvolvimento da atual ofensiva do clube imperialismo, assim como do difícil período que vivemos e que se abre diante de nós. Necessitamos da tal análise concreta da situação concreta, sobre a qual sempre falamos e raramente realizamos.[1]

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês (1949-2021).

 

Referência


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CHAVES, Wanderson. Questão Negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970). Curitiba: Editora Appris, 2019. 295p.

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KARAGANOV, Sergej. “Se perdessimo, la Russia rischierebbe di spaccarsi”. LIMES. Rivista italiana di Geopolitica. Roma, n. 4, mag. 2020.

KORTUNOV, Andrej. “In Ucraina ha falido la diplomazia”. LIMES. Rivista italiana di Geopolitica. Roma, n. 4, apr. 2020.

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LIT-CI. Exigir ou não armas do imperialismo? 14 de outubro de 2013. Disponível em: <https://litci.org/es/exigir-ou-nao-armas-do-imperialismo/>

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MAESTRI, Mario. O Identitarismo Negro Está Comendo a Esquerda por uma Perna. Contrapoder. 31 out. 2020. Disponível em: <https://maestri1789.wixsite.com/mariomaestri/post/um-candidato-negro-do-capital-na-trincheira-da-esquerda>

MAESTRI, Mário. Abdias do Nascimento: quilombola ou capitão do mato. Ensaios de interpretação marxista sobre a política racialista para o Brasil. Porto Alegre: FCM Editora, 2018.

MAESTRI, Mário. Revolução e Contra-Revolução no Brasil: 1530-2019. 2. ed. ampliada. Porto Alegre: FCM Editora, 2019. Disponível em: <https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil>

MAESTRI, Mário. Antonio Gramsci: a vida e a obra de um comunista de esquerda. Com um capítulo de Luigi Candreva. 3. ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2020.

MAESTRI, Mário. O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês. (1949-2021). O Conflito EUA-China no Mundo e no Brasil. Porto Alegre: FCM Editora, 2021. 142 p.

MAESTRI, Mário. O direito à defesa. Contrapoder.  19 abr. 2022.

MAHBUBANI, A China venceu? O desafio chinês à supremacia americana Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

MANDEL, Ernest. Le troisième âge du capitalisme. France: UGE, 1976. 3 vol. PETRONI, Federico. Sconfiggere la Russia sì, ma fin dove? LIMES. Rivista Italiana di Geopolitica. Roma, n. 5, mag. 2020.

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TROTSKY, Leon. Mateo Fossa. Entrevista: 23 set. 1938. Disponível em:  <https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/09/23.htm>

 

Nota


[1] Agradecemos à leitura da linguista Florence Carboni.

 

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