Valentim Facioli

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Por SIMONE ROSSINETTI RUFINONI*

Um perfil do professor, crítico literário e editor, falecido recentemente

“Bom como o diabo” – perfil de Valentim Facioli. Imagino que não agradaria ao Valentim um título sem transgressão e que apontasse para qualquer laivo conciliatório ou cristão.

Fui ter aulas noturnas de literatura brasileira, parte da grade de Letras na USP, e logo pude sopesar o brilho luciferino daquele que aprendi ser uma pessoa extraordinária. Olhava chispando e provocava o senso comum, a religiosidade tosca, a pouca leitura, o desânimo dos alunos do noturno. Começava e seguia atiçando, mas nunca desrespeitava ninguém. Dizia que estava cansado e com preguiça e dava uma aula incrível.

Pelo menos para quem era leitor e desconfiava das aulas que subestimavam os alunos, que nos tratavam como crianças. Ele não: Machado ia com ele, espicaçando, tirando e pondo tudo de novo no lugar. E, com os conteúdos, vinha a melhor crítica, aquela que pouco aparecia na graduação porque muitos talvez pensassem que não entenderíamos… vinha György Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Roberto Schwarz. Todos esses e muito mais.

Além da literatura, da teoria e da crítica literária, surpreendia também o conhecimento de história, sociologia, ciência política. Era especialmente informado sobre o pensamento de esquerda (Marx, Lênin, Trotski), a história do movimento operário, das lutas de classe e da revolução, da Rússia e da URSS (havia cursado russo na graduação). Anos depois, já amigos, eu provocava: quando começará a ler de novo em russo?

O cariz político das formas artísticas era lição sempre repisada. Não a análise oca, que se fechava em si mesma, mas o processo que desentranha do tecido textual o fundo latente da história. Participava desse empenho teórico e rigoroso sua práxis político-partidária, seu histórico como militante no trotskismo e na fundação do PT, suas origens humildes, sua verdadeira aproximação com as classes mais baixas e as pessoas simples.

Dois livros nos aproximaram, ao acaso. Levava comigo a biografia do Luis Buñuel. Para que curso está lendo isso? Para nenhum. Ah! Outro dia, Viagem à roda do meu quarto, de Xavier de Maistre (com prefácio dele). O Surrealismo foi um ponto em comum entre nós: ele tinha especial apreço pelo movimento e escreveu ótimos textos sobre o Surrealismo no Brasil. Um deles, enfeixou um bom livro hoje esgotado, Surrealismo e novo mundo (Ed. UFRGS, 1999); sobre esse, escrevi, por indicação dele, uma resenha para o jornal O Estado de S. Paulo.

O assunto vanguarda e revolução era pauta sempre retomada, em aulas, textos e conversas. A estranheza do engajamento heterodoxo do Surrealismo – rechaçado por Theodor Adorno, abraçado por Walter Benjamin – parecia propícia para pensar a literatura como forma e não mero reflexo (“não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária!”). As duas pontas de seu percurso – militante político e crítico literário – encontram-se na publicação do Manifesto Por uma arte revolucionária independente, deBreton e Trotski, organizado por ele (Paz e Terra).

Formou um grupo de Iniciação científica para estudar a crítica de Antonio Candido e Roberto Schwarz e me convidou. Foi um aprendizado e tanto por cerca de dois anos. Depois veio o mestrado e o doutorado. Ficamos amigos. Lia tudo que escrevíamos com entusiasmo (“Supimpa!” costumava dizer). Até poucos anos atrás, ligava para falar do que escrevi, do que os outros escreveram. Era excepcionalmente altruísta.

A sugestão de estudar Cruz e Sousa veio dele. No período de Iniciação científica, um dia lhe contei dos meus interesses pela literatura francesa finissecular (Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud) e pelos surrealistas. Mas disse que queria estudar literatura brasileira e não francesa. Daí lançou um dardo: leia Cruz e Sousa, não a lírica, a prosa! Li e foi o assunto de minha dissertação. A publicação do volume (no prelo) será dedicada a ele. Deu tempo de contar.

Ao tentar capturar o desenho fugidio da trajetória que acompanhei ao longo desses anos, arrisco: a meu ver, pode-se desentranhar do modo como se plasmou sua crítica e práxis o pensamento de dois escritores brasileiros: Machado de Assis e Mário de Andrade. De Machado, soube reter e desdobrar a ironia, o fio da desconfiança capaz de suspender a franja da ideologia; o ceticismo, que cortava sua leitura de mundo; o humor refinado e a melancolia. Mas além do bruxo, exerceu forte influência no seu modo de pensar e agir a figura de Mário de Andrade.

E, nesse sentido, parece-me ter havido o cruzamento de vetores díspares. Penso que, se Machado falava pelo flanco irônico e demolidor, Mário respondia pelo veio generoso e altruísta. A face de pedagogo, de acolhimento, de ouvinte. O primeiro Mário, aquele da aposta na promessa de país. Mas não qualquer promessa, essa era via povo, via produção artística das classes menos favorecidas.

Daí que, para além da luta social e da postura de esquerda, havia o apego diferenciado pelos desafortunados, o interesse pelas manifestações de cultura popular, pelas vozes dos desvalidos. Até hoje não se ouve falar na faculdade sobre cultura popular, assunto que agora parece ter se dissolvido na emergência de novas pautas. Valentim Facioli acolheu e orientou o primeiro estudo sobre Patativa do Assaré na USP, que depois publicou. (Cláudio Henrique Salles Andrade. Patativa do Assaré: as razões da emoção, Nankin).

Sob sua influência, Mário sempre foi um escritor de minha predileção. Sobre ele iria fazer meu doutoramento, mas acabei mudando completamente de tema. Hoje acho que ali, de certa maneira, pode ter sido um ensaio de emancipação. Escolhi um autor católico (Cornélio Penna), muito embora, claro, o tenha abordado de modo materialista. Quando contei que mudaria o tema achei que ele ia reclamar; mas não, ele acolheu e depois publicou a tese pela Nankin.

Da longa convivência com Machado de Assis tirou lições de literatura e de vida. Ensinava (teoricamente) e entendia (na prática) a “teoria do medalhão” machadiana como ninguém. Avesso ao elogio e à autopromoção sabia muito bem como se fazem medalhões, tinha histórias valiosas. Publicou modestamente, apenas como “roteiro de leitura”, o livro Um defunto estrambótico, sobre Memórias póstumas de Brás Cubas. O volume traz muitas inferências críticas e articulações que ultrapassam o propósito didático. Gostava desse livro e o chamava de meu defuntinho. (Um defunto estrambótico: análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás Cubas, Edusp/Nankin).

Em seus anos de maior produtividade, escreveu um pouco de ficção. Poemas e prosa. Pouco divulgava, mas me lembro de um que, pouco antes de ele partir, sugeri que retomasse e concluísse. Era um experimento ficcional cuja história era a de Rimbaud no Rio de Janeiro (ele grafava procurando reproduzir uma pronuncia estropiada do francês: algo como “Raimbó no Rio”). O navio ébrio do menino endemoniado teria feito uma parada no Brasil, onde conheceria o bruxo. Eram cartas de Rimbaud sobre o Rio! A ótima ideia e o texto promissor foram deixados de lado, porque precisava publicar os bons trabalhos dos outros, claro. Você acha que vale a pena mexer nisso? Perguntava. As coisas que produzia pouco interessavam, ele era assim.

Ainda Rimbaud: o episódio pessoal de quando lhe enviei um postal com a famosa foto do poeta, aquela da moldura oval. O postal não chegou e comentei: Valentim, o postal sumir não foi meio surrealista? Depois viajei de novo e mandei o mesmo postal, que chegou. Havia pensado em repetir o envio. Não deu tempo.

O trabalho como editor da Nankin foi outra etapa muito particular. Ao se aposentar, dedicou-se mais ainda à leitura dos outros e à edição de trabalhos acadêmicos. Também por isso não tocou seus projetos pessoais. A editora mal se sustentava, na verdade ele sempre a promovia com seus recursos. A sede, à rua Tabatinguera, tornou-se um lugar de encontros, de conversas, regadas a vinho, uísque, cachaça. Ele chamava de tertúlias. Reuniam-se os ex-orientandos e outros. A conversa era sobre literatura e política, arte e vida pública. Até anoitecer, que saudade.

São muitas lembranças e nem tudo é possível racionalizar. Mas não deixo de considerar que há algo de egoísta em lamentar a partida de pessoas que se pautaram pelo olhar disposto a construir o outro pelo que este tem ou deveria ter de melhor. É um pouco de nós que se vai porque queremos ser lidos e vistos como ele nos via. O eu melhorado que de nós se forjou estilhaça-se.

Por fim, valho-me da lição de Mário de Andrade para pensar o legado de Valentim Facioli, por meio da “dialética do cabotinismo” (“Do cabotinismo”, in O empalhador de passarinho). Contra a ideia de máscara x face, diz o modernista: a anteface elevada que logramos faz-se parte intrínseca de nossa subjetividade, uma vez que somos tão somente experiência. Assim, se nossos motivos nobres confeccionam nosso eu, podemos ser também o que de mais alto se viu em nós? Ir ao encalço da imagem que um homem “bom como o diabo” cunhou de nós, pode ser boa meta, talvez inalcançável.

Simone Rossinetti Rufinoni é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Favor e melancolia: estudo sobre “A menina morta”, de Cornélio Penna (Edusp/Nankin). [https://amzn.to/3TCDf60]


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