A fala fascista do prefeito de Florianópolis

Imagem: João Roger Goes Pereira
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Por LAURO MATTEI*

Sob o pretexto de manter a ordem, o prefeito de Florianópolis institucionaliza a triagem social, transformando o direito de existir num privilégio condicionado à renda

1.

A história da colonização de Santa Catarina é marcada pela interpretação prevalecente de que foi obra exclusiva dos imigrantes europeus, especialmente dos colonizadores alemães e italianos. Na maioria das vezes esses intérpretes esquecem aquilo que o antropólogo e professor Silvio Coelho dos Santos sempre defendeu: quando esses colonizadores aportaram em solos catarinense tal território já era ocupado por, pelo memos, três etnias indígenas: Guarani, Kaingang e Xokleng.

Quanto aos povos colonizadores, é indiscutível o papel que todos tiveram no processo de ocupação territorial, no desenvolvimento de atividades econômicas e na construção de uma estrutura social que faz com que Santa Catarina se situe atualmente entre as unidades federativas com os menores índices de desigualdades do país. A esses povos nunca foi colocado nenhum impeditivo sobre suas condições socioeconômicas pretéritas pois, caso isso fosse adotado à época, poucos teriam tido a chance de se instalar no estado catarinense.

Além disso, é importante recordar algumas das principais características que marcaram – e ainda marcam – os comportamentos fascistas e nazistas. Em linhas gerais, pode-se dizer que são ideologias que negam o outro que faz parte de grupo social distinto; que discriminam grupos sociais marginalizados; que usam um vocabulário simplista para evitar pensamentos críticos; que usam intensivamente a propaganda para manipular a opinião pública; que usam de instrumentos políticos do Estado para se impor diante dos indivíduos vulneráveis, etc.

Vejamos agora como o vídeo do senhor Prefeito de Florianópolis divulgado no dia 02.11.2025 condiz com esses comportamentos. Em linhas gerais ele diz que “as pessoas que chegam à Florianópolis pela rodoviária” são submetidas a um controle do Estado (neste caso da Administração Municipal) e se não conseguirem comprovar que “tem emprego e local para morar” são enviadas as suas cidades de origem porque “essas pessoas não têm vínculos com a cidade”.

Ao mesmo tempo, o senhor prefeito se vangloria que tal medida já “devolveu mais de 500 pessoas” as suas cidades originárias, justificando que tais ações são adotadas para se “manter a ordem, as regras e o respeito a nossa cultura”. Além disso, afirma que tais medidas serão reforçadas ainda mais durante o próximo verão. Pergunto ao senhor prefeito: por que o senhor não estabeleceu o mesmo posto de triagem social no aeroporto de Florianópolis?

2.

É importante registrar que no dia 05.11.2025 o senhor prefeito divulgou um novo vídeo sobre o assunto afirmando que tais medidas visam evitar que Florianópolis se transforme em “um depósito de pessoas de rua” e que “se alguma cidade mandar para cá, nós vamos impedir sim” porque “outros municípios não podem enviar pessoas para cá sem compromissos”.

Diante da repercussão negativa dos vídeos do “prefeito Tik Tok”, ele concedeu entrevista a um canal de TV no dia 06.11.2025 reafirmando que está fazendo essa abordagem apenas “às pessoas sem rumo” porque ele “quer resgatar o vínculo dessas pessoas com seus familiares” e que os funcionários da estrutura da assistência social da prefeitura de Florianópolis estão ali “apenas para ajudar essas pessoas”. Que prefeito bonzinho não!

Para quem acompanha mais de perto a gestão administrativa desse senhor (está no segundo mandato) não vê como novidade essa postura política do prefeito. Por exemplo, no início do mês de outubro de 2025 foi divulgado o Boletim da Desigualdade nas Metrópoles (no. 16) produzido pelo Observatório das Metrópoles para o período 2021-2024. Neste caso, observou-se que a extrema pobreza no período cresceu apenas em duas metrópoles do país: Fortaleza e Florianópolis.

No dia seguinte à divulgação desse estudo o senhor prefeito divulgou uma nota afirmando que “nos últimos anos a cidade de Florianópolis se tornou um dos principais destinos de imigrantes do Brasil, o que deve ter afetado os resultados”. Novamente os migrantes são os culpados. Além disso, a nota enaltece o fato de que “a cidade de Florianópolis lidera o patamar da renda média do país”.

Neste caso, a nota do senhor prefeito esqueceu de informar um aspecto relevante apontado pelo estudo: que o grupo dos 50% mais pobres da cidade tem uma renda média inferior à metade da renda média do conjunto. A consequência disso é que o Índice de Gini aumentou no período, indicando que a concentração de renda na cidade está aumentando.

3.

Outro ponto importante nesse comportamento político do senhor prefeito a ser destacado diz respeito ao grave problema habitacional enfrentado pelos moradores de Florianópolis, cidade que se situa entre aquelas com os cinco metros quadrados mais caros do país.

Quando o IBGE divulgou, com base nos dados do Censo Demográfico de 2022, a expansão acelerada de favelas na área conurbada da capital catarinense (que comporta quatro municípios), imediatamente o prefeito aprovou um projeto de habitação popular com apoio financeiro do Programa Minha Casa Minha Vida (Governo Federal) denominado de “Programa Floripa para Todos”.

Além de ser um projeto populista, uma vez que contemplara apenas 800 famílias diante da existência de milhares de famílias que sobrevivem em condições desumanas, são estabelecidas diversas regras de acesso com destaque para o fato de que os interessados precisam comprovar que já residem em Florianópolis a mais de cinco anos e quem tem renda e emprego.

Esse conjunto de fatos relativos ao comportamento do senhor prefeito de Florianópolis pode ser enquadrado como eugenista, uma vez que tal autoridade pretende “melhorar o bem-estar da cidade” por meio da promoção da discriminação e exclusão de determinados grupos sociais via seleção prévia entre os “aptos” e os “não-aptos” a residir na cidade.

Por fim, a atitude do senhor prefeito também não deixa de ser um comportamento segregacionista cuja essência remete ao ato de separar ou isolar os indivíduos tratando-os de forma desigual com base em suas características sociais específicas.

Tal comportamento pode ser individualizado como pode ser institucionalizado pelos órgãos governamentais, tanto por meio de leis como por ações específicas por parte de agentes do Estado, como é o caso do atual gestor da cidade de Florianópolis.

Lamentavelmente observa-se que uma parcela expressiva da população da capital catarinense apoia tal comportamento político, o que nos remete ao enorme desafio que temos de enfrentar para acabar com as desigualdades, não somente em Florianópolis e em Santa Catarina, mas no conjunto do país.

*Lauro Mattei é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do programa de pós-graduação em Administração, ambos na UFSC.


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